Hugo Chávez, Brasil e a miséria da imprensa

A Revista Consciência.Net acompanhou a passagem do presidente venezuelano Hugo Chávez no Brasil, dia 30 de janeiro de 2005, durante o V Fórum Social Mundial. Ao contrário de muitos dos jornalistas – cerca de 300 -, estávamos interessados em conhecer algumas idéias do presidente. Não tivemos a intenção de torná-lo um Deus vivo na Terra, muito menos um “ditador fanfarrão”. Aliás, quem dera tivéssemos mais ditadores que conseguissem vencer referendos populares em meio de mandato – conseguido duas vezes por meio do voto popular - e ter apoio de 65% de sua gente.

Notável a decisão da assessoria de Chávez em dividir as cinco perguntas a que tinha direito a imprensa entre: meios comunitários (2), meios venezuelanos (1), agências (1) e meios brasileiros (1). Um dos sorteados entre os comunitários foi o FAZENDO MEDIA (www.fazendomedia.com), excelente publicação de circulação nacional, idealizada por estudantes da UFF. Na pergunta, deram um cutucão na Rede Globo, denunciando que esta deu total apoio ao golpe de Estado de 11 de abril de 2002 na Venezuela. Golpe medíocre, que “nem 48 horas durou, foram 47”, brincou Chávez.

“Jornalistas imparciais”

O Fazendo Media já prepara textos sobre o evento, que foi de fato marcante. Na página www.fazendomedia.com, a primeira reflexão sobre os 'jornalistas imparciais':

“Esses são seres estranhos. Não que sejam insensíveis, coitados. A questão é que eles foram doutrinados a raciocinar por meios tortos e a crer em estruturas ilusórias como se fossem reais. Por isso acreditam no mito da imparcialidade, por isso se dizem imparciais. No momento em que esses pobres diabos se assumem imparciais, podem até não saber, mas estão se colocando num lugar mais alto, mais importante que as demais pessoas. Isso porque, ao se dizerem imparciais, admitem a existência de apenas uma versão dos fatos, de apenas uma posição pré-determinada, de apenas uma verdade - a sua verdade. Não seria exagero concluir que tais jornalistas se acham os donos da verdade.” (www.fazendomedia.com)

Aliás, não é nenhum privilégio o fato de a mídia alternativa ter direito a dois questionamentos – a imprensa deste tipo de mídia foi maioria no Fórum. É simplesmente democrático. Poderíamos até formular um cenário em que a grande mídia deveria ter apenas 5% das perguntas em coletivas. Seja ela venezuelana, brasileira ou estadunidense. Ligariam para o Rupert Murdoch e perguntariam: “E aí, o que eu falo chefe?”

Ah, se o governo brasileiro fosse assim... pensando nos meios alternativos como estratégicos para a transformação social e a justa divisão de bens. “Nosso presidente nem sequer recebe a imprensa, na maior parte das vezes”, diz um jornalista independente dos Estados Unidos. Lá é pior.

Lamentável é o nível ingorância e mediocridade desses “jornalistas imparciais”, tá bem definidos pelo Fazendo Media. Com mentalidade neocolonialista, esta é uma das classes mais perigosas para a democracia atualmente - quando, na verdade, deveria ocorrer o oposto. Com certeza foram para a redação, irritados, escrever que Chávez é um perigo para o mundo e que George Bush, vá lá!, não é tudo isso o que dizem por aí.

“Today”

De uma jornalista na fila de credenciamento: “Chávez logo logo se torna um ditador”. Eu, sem me intimidar: “Como alguém que passou por oito provas democráticas pode ser considerado um ditador?” Ela - uma porta com formas humanas - diz que não é bem por aí, “não é disso que eu tô falando”. Depois, para esclarecer a dúvida de um jornalista asiático, me pergunta: “Como é mesmo 'hoje' em inglês?”

Só não falo de onde ela é porque dá pena. Mas quem quiser, em off, eu divulgo. Porque mais incrível do que passar por oito provas democráticas e ser considerado “ditador” é passar por uma faculdade de comunicação e não saber como que é “hoje” em inglês.

Na tentativa de entrar no auditório lotado – e desconhecendo as teorias de Newton -, outras bestas colonializadas gritavam “censura, censura”. São pessoas que nunca passaram por censura – só pela auto-censura, todos os dias – e ficam a gritar palavras de ordem na primeira oportunidade que a arrogância é contestada. Não querem apenas ser donos da verdade: querem a verdade, os espaços, as mentes e tudo o que vier pela frente.

Resultado: todos entraram e ficaram bem acomodados. Acomodados até demais. Alguns visivelmente in-comodados com essa “infantilidade” que é o tal do “esquerdismo”. Os jornalistas conscientes – os parciais – sabem, para além da publicidade manipuladora, que o que ocorre na Venezuela é uma revolução democrática que está humanizando uma pequena parte da América Latina e contagiando os povos do continente, na busca por dias melhores. E o que é uma revolução? Chávez, simples, define: “Uma aceleração do processo”.

Como ser “imparcial” para seu chefe

Não sei se você sabe, mas é importante esclarecer sobre como “jornalistas imparciais” constróem suas notícias - imparcialmente definidas pelo dono do veículo onde se trabalha - num processo mental de difícil definição, mas de eficácia impressionante.

É assim: eles passam boa parte do tempo lendo artigos e entrevistando pessoas conservadoras. Não há um mundo para além do que o mercado diz ser correto. Evidentemente que o mercado se disfarça de coisas como “responsabilidade social” e “humanitarismo”. Palavras como “democracia”, “direitos humanos” e “paz” são constantes – quanto maior for o saque contra os povos, mais freqüente será o uso dessas expressões.

Pois bem. Estes jornalistas passam boa parte do tempo deles nesse mundo. Estão sendo pagos para isso. De repente, o cara é escalado para cobrir uma coletiva do presidente Hugo Chávez. “Vai lá, vê se tem alguma coisa interessante”, diz o chefe. Se não tiver, paciência. Coloca aquela matéria sobre as iguanas de New Orleans mesmo. Mas de qualquer forma lá está ele, o jornalista imparcial, que quer fazer alguma coisa boa, alguma coisa que lhe dê status tanto pessoal quanto financeiro.

Como o Hugo Chávez é uma pessoa extremamente inteligente – como se pode notar rapidamente -, quase nenhum jornalista imparcial vai entender o que ele está dizendo. Que história é essa? O mercado me disse que só havia um caminho, e agora vem esse camponês indígena falar que não. O Chávez - é bom entender - é a cara de seu povo. Um típico camponês indígena. Um homem que não pôde estudar muito porque veio de baixo. Era pobre e – horror! - inteligente. A grande mídia SIMPLESMENTE não pode aceitar que pobre seja inteligente.

Pois bem, vamos continuar. O cara quer uma matéria. Ele está lá, encostado na parede, tendo que ouvir as longas respostas de Chávez e não consegue entender quase nada. Está quase dormindo e, de certo, sua mente há muito foi adormecida pela doutrinação do mercado. A não ser que – e aí está toda a questão – o presidente venezuelano fale alguma frase que caiba no discurso do mercado. Não necessariamente ele quis dizer isso. Você precisaria entender as outras partes da resposta para dizer “ah, foi isso o que ele quis dizer”.

Mas, veja bem, se ele diz “os militares são muito importantes para a soberania da Nação”, eu – o jornalista imparcial - posso muito bem dizer que ele quer implantar uma ditadura na Venezuela, aproveitando-se do apoio do povo (decorrente evidentemente do tal do “populismo” comunista). E o Chávez, hábil articulador de palavras, quis dizer “xenofobismo”, e não “soberania”.

Faz sentido, pois trata-se de um homem do povo e, portanto, burro. Ele quis dizer xenofobismo, porque ele não foi à faculdade e não pode saber o que é soberania. O Eduardo Galeano, o José Saramago,o Millôr Fernandes e o Luis Fernando Verissimo também não freqüentaram a universidade, mas esse é o tipo de informação que não pode circular por aí, porque senão a massa pode achar que tem condições de ser 'inteligente' como eles.

Esse me parece um bom discurso – populismo, ditadura, xenofobismo -, meu chefe vai adorar, e olha que eu usei as palavras do próprio presidente.

É fácil reconhecer os “jornalistas imparciais”. Quando algum “esquerdista” estiver falando, ele fará expressões de irritação com o rosto ou ficará tirando conclusões idiotas, por coincidência muito parecidas com as conclusões de seus chefes. A mediocridade não lhe permite ouvir em silêncio considerações de 'inimigos' sóbrios.

Em tempo: os/as jornalistas conscientes não precisam ficar demisiadamente preocupados/as. O governo venezuelano conhece muito bem os discursos manipuladores da imprensa mundial. Chávez é um comunicólogo-nato. Sabe tanto que já se sente à vontade para ironizar as “críticas”. E os inteligentíssimos “jornalistas imparciais” nem sequer percebem.

“Somos da imprensa oficial”

As 'Acta Diurna Populi Romani', que adquiriram regularidade quando Júlio César assumiu o Consulado de Roma, foram instituídas com o objetivo de ridicularizar os representantes do Senado Romano. No ano 69 a.C., o imperador Júlio determinou publicar o que era discutido nas sessões — antes sigilosas —, além de mandar divulgar os atos de interesse do povo, comunicar nomeações, divórcios, vitórias na guerra.

'Publicar', nessa época, era 'deixar ao conhecimento do público', colocando a mensagem em lugar onde pudesse ser lida. Essa decisão deflagrou um processo que, mais tarde, viria a dar origem aos conceitos que hoje caracterizam a imprensa no mundo ocidental.

Estabeleceu-se, então, o jornalismo oficial, com os 'actuarii' - os profissionais que redigiam as notícias para a Acta. As Acta, recheadas com os atos e deliberações imperiais, vitórias militares, além de dados administrativos, podem ser vistas como as antepassadas dos diários oficiais.

Até 1808 eram proibidas a impressão e a circulação de qualquer tipo de jornal ou livro no Brasil. O "Correio Braziliense", primeiro jornal cuja edição era feita por Hipólito da Costa a partir de Londres, entrava clandestinamente, nos porões dos navios que transportavam mercadorias e escravos.

Todo o cerco da Coroa Portuguesa ao incipiente jornalismo brasileiro temia a propagação de ideais de liberdade, igualdade e fraternidade que fervilhavam na Europa, especialmente na França, com os quais Hipólito mantinha uma certa identidade. Para isso existia a imprensa oficial: para cercear a liberdade, a igualdade e a fraternidade.

Auto-censura e censura econômica

Com o passar dos tempos, o poder estabelecido começou a perceber que este tipo de prática era pouco eficiente. Quanto mais se proibia, mais havia interesse tanto pela divulgação quanto pela leitura. Daí você entende porque, em parte, não se proíbe quase nada hoje em dia na Comunicação. A liberdade de empresa no mundo capitalista não possui limites exatamente por ser estratégica para minar outras liberdades – como a de pensar, por exemplo.

Aceitam-se informações inverídicas diariamente, simplesmente porque os empresários têm de ter 'liberdade' para comprar quantos jornais, tevês e rádios quiserem. Não importa mostrar que a Venezuela é uma das mais fortes democracias do mundo, porque os poderosos têm a liberdade de dizer que não é, que não acham isso, e fodam-se os fatos. Quem quiser entrar na nossa redação para mostrar estes fatos será expulso imediatamente, pois a imprensa é livre para demitir quem a contesta com a realidade.

Sim, eles estão ocupando e destruindo a soberania do Haiti, mas foda-se. O povo haitiano é um bando de miseráveis que não sabem o que querem da vida, assegura a mídia, e por isso precisam ser tratados como aquela criança que não sabe atravessar a rua. Mesmo que os fatos demonstrem que trata-se de um dos povos mais revolucionários do continente, com vitórias incontestáveis e um poder inacreditável de organização e mobilização. Sim, nosso governo apóia essa invasão, mas é também o governo que deposita milhões em nossa conta bancária todo mês. Eles pagam adiantado, então nada podemos fazer.

Pois bem. Imprensa oficial. Esse é o assunto. Depois deste pequeno histórico, fica fácil deduzir quem é a imprensa oficial hoje em dia. Talvez não seja oficial para quem vê tevê. Quem vê cinco horas de tevê por dia ou lê apenas jornais da grande mídia poderá pensar que imprensa oficial é aquela imprensa do governo, onde estão os jornalistas cujos salários são pagos pelo governo. Mas pense bem: essa descrição não se parece com a mídia privada? Compare o orçamento das tevês públicas com o orçamento da Rede Globo. Quem paga a Rede Globo e, portanto, os jornalistas da Rede Globo? Você já se fez esta pergunta?

Não foi à toa – tudo o que eu disse foi para chegar aqui – que um jornalista de tevê, ao tentar convencer o segurança de que era importante que entrasse no ginásio porto-alegrense Gigantinho, durante o V Fórum Social, soltou a seguinte pérola: “Nós somos imprensa oficial, somos da RBS [filiada da Globo no RS] e da Band, deixa a gente entrar pelo amor de Deus”.

Registra-se que o autor da frase acredita no que disse. Não era propriamente uma mentira – pelo menos não para ele. Foi este mesmo instinto que permitiu o guarda estadual deixar passar um repórter do Zero Hora (jornal da RBS) – e apenas ele -, em detrimento de todos os outros que ali estavam, dando depois uma desculpa diante dos protestos, pouco antes do evento começar: “Ele pegou o carro e foi embora, vocês não viram?”

Portanto, você pode até pensar que imprensa oficial é só o que se diz na tevê. Mas caso você decida ter uma perspectiva histórica, descobrirá que a imprensa oficial é, na prática e na teoria, a grande imprensa. Nós – o povo – somos os que pagamos essa gente. Nós ajudamos a mantê-los por meio da publicidade do governo federal, que por sua vez utiliza nosso dinheiro.

São eles que ajudam governos, empresas e setor financeiro a nos convencer de que as coisas estão indo bem no Brasil, que há pobreza porque sempre foi assim. A pobreza é - subentende-se de forma clara - algo “natural”, quase que “divino”. Tão divino que a maior parte dos jornalistas praticam a pobreza todos os dias, escrevendo textos medíocres e tratando seus leitores como miseráveis desnutridos.

BIBLIOGRAFIA. Thais Mendonça (UnB). Cronologia da Notícia (de 740 a.C a 2020). GT História da Jornalismo, abril de 2004. Rede ALCAR AVISO: Em breve, matérias sobre a coletiva de imprensa e a palestra de Hugo Chávez em 30/1/2005, Porto Alegre.

Gustavo BARRETO

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