Prática Forense

Um dos exercícios mais interessantes para o aluno do curso de Direito é quando o professor expõe uma determinada situação de fato para que seja enunciada a solução jurídica apropriada. Vejamos um exemplo: o presidente de um determinado país, cujo regime político é o democrático, mantêm uma longa, notória e constante associação com diversos partidos e organizações políticas de todo o continente, boa parte deles dedicados ao narcotráfico, ao seqüestro, ao contrabando de armamento, ao terrorismo e a outros crimes considerados hediondos pela legislação nacional. O líder dessa associação é um antigo ditador e sua finalidade última é a implantação de regimes totalitários em todos os países da região.

Os principais nomes do partido do presidente, inclusive o próprio, nutrem as mais íntimas relações com o tal ditador desde quarenta anos. Muitos deles treinaram guerrilha e espionagem no país do ditador e tentaram implantar pela força um regime semelhante ao do ditador em seu país natal. Embora eleito democraticamente, o governo desse partido não só manteve como aprofundou suas ligações com aquela ditadura totalitária e com a associação continental que ela dirige, bem como tem tentado minar em seu próprio território as liberdades e direitos constitucionais, como a liberdade de imprensa, a liberdade de produção e divulgação artísticas na mídia audiovisual e a liberdade nas universidades. Além disso, nosso governo hipotético sustenta com verbas públicas uma organização paramilitar dedicada a invadir e destruir a propriedade privada, com a qual sempre travou relações orgânicas. Analisando tudo isso, e considerando a Constituição e as leis nacionais, o aluno deve enunciar, em nosso exercício hipotético, que medidas jurídicas deveriam ser tomadas para remediar tão grave ameaça ao Estado Democrático de Direito.

Muito simples, conclui o nosso jovem jurista. Afinal, há não muito tempo um outro presidente tinha sido apeado do poder por meio de trâmites rigorosamente constitucionais, sob acusação de corrupção e desvio de dinheiro público (crimes, aliás, nunca provados), delitos muito menos graves do que aqueles cometidos pelo atual presidente. É só lembrar o precedente e aplicá-lo ao caso atual. A primeira providência é a instalação de uma comissão parlamentar de inquérito no Congresso Nacional, à qual são assegurados constitucionalmente amplos poderes de investigação para apuração de fato determinado. O fato determinado é evidentemente o vínculo público e notório do partido governante com organizações estrangeiras criminosas e seu líder ditatorial, que põem em risco o regime democrático e a segurança nacional. Como o partido do governo é minoritário no Congresso, não conseguiria impedir a constituição e funcionamento da CPI, que, aliás, certamente contaria com a ajuda inestimável de uma imprensa investigativa ciosa de suas prerrogativas e ansiosa por perseguir e revelar indícios e pistas, além do apoio da Igreja, da ordem dos advogados e de outras entidades importantes da sociedade civil, conhecidas por sua intransigente defesa das liberdades democráticas.

Apurado o fato determinado, o que não seria difícil visto que a associação delituosa da qual faz parte o presidente da república tem até site na internet com atas, deliberações e resoluções devidamente assinadas, o respeitado líder de um partido de oposição apresentaria acusação formal de crime de responsabilidade contra o presidente perante a Câmara dos Deputados, o foro designado pela Constituição. A acusação seria facilmente recebida por dois terços dos deputados, em face da grande pressão do povo indignado com as estarrecedoras revelações da CPI e da imprensa. O processo, conforme o procedimento formal, seria então remetido ao Senado Federal, cujo presidente, atendendo ao desejo popular, admitiria a acusação, ato que afastaria o presidente de seu cargo até a decisão final dos patrióticos senadores. Diante das provas fartas de autoria e materialidade, o réu seria condenado pela quase unanimidade dos votantes, para grande júbilo da nação. O ex-presidente se auto-exilaria em terras de seu amigo ditador e seu partido cairia num total e merecido ostracismo, não conseguindo eleger mais ninguém. Final feliz.

Tudo muito bonito, mas o nosso aplicado estudante, que presumimos um cidadão do país imaginário onde se desenrolam os acontecimentos fictícios acima narrados, seria categoricamente reprovado por ignorar o princípio elementar de que o Direito não é aplicado num vácuo social. É preciso levar em conta as circunstâncias culturais e políticas que envolvem a situação de fato antes de sair aplicando nela os formalismos jurídicos e judiciais. A resposta certa para a questão seria simplesmente que não existe solução jurídica apropriada, pois a Constituição e as leis invocadas pelo aluno são absolutamente inaplicáveis, letra morta mesmo. O problema é que no suposto país em questão o partido do governo, além do velho ditador e da liga estrangeira de terroristas, são de esquerda e quem o acusa de tramar uma estratégia ditatorial esquerdista com cúmplices esquerdistas seria automaticamente rotulado de direitista. O estudante deveria saber muito bem que ninguém no país teria coragem de correr esse risco. O carimbo de “Direita” atrai sobre o carimbado infâmia imediata e universal. Ele seria imediatamente denunciado como um nazista, um fascista, um monstro ideológico pelos partidos de oposição, pela imprensa, pela Igreja, pelos empresários, pelos banqueiros, pelos estudantes e até pelos clubes de futebol. Amigos e família evitariam o direitista como a um leproso. Suas propriedades seriam invadidas pela milícia paramilitar ligada ao governo e ele ainda sofreria uma minuciosa fiscalização no seu imposto de renda que o levaria ao xilindró.

É por causa desse medo, desse terror pânico de ser considerado direitista que ninguém importante faria nada para impedir que uma ditadura esquerdista se apoderasse tranqüilamente do tal país imaginário. O aluno, se de fato inteligente, perceberia que nem um milagre poderia salvá-lo de virar súdito de um regime totalitário e trataria de emigrar o quanto antes para terras mais seguras. Afinal, não dá para ir de jangada pelo oceano dessa nação hipotética até Miami.

Alceu Garcia, advogado

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