ÍCONE RUSSO - PORTA PARA O CÉU

A história do ícone começou no século XVI, quando o czar de Moscovo, Ivan, o Terrível, conquistou a cidade de Kazan, capital do Canato dos tártaros, tendo reduzido a cidade a cinzas. Uma menina, Matriona, encontrou o ícone numa das casas incendiadas. Naqueles dias toda a cidade era um monte ardente de brasas, mas a imagem da Virgem Maria, pintada numa pequena tábua de madeira, não chegou a ser tocada pelo fogo.

Este facto surpreendeu de tal maneira os contemporâneos, que o ícone foi imediatamente reconhecido como milagroso.

A notícia sobre o milagre espalhou-se por toda a Rússia.

Os peregrinos correram para Kazan para ver o ícone. Em breve tornou-se evidente que perante esta imagem de Nossa Senhora ocorriam verdadeiros milagres, que as orações diante da imagem livravam de doenças, concediam aos crentes a realização dos seus pedidos e ajudavam os pecadores arrependidos a resistir às tentações.

Desde então, o ícone da Nossa Senhora tornou-se um dos mais venerados na Rússia. Mas de repente ocorreu algo inconcebível - no início do século XX, na véspera do período revolucionário, o ícone foi roubado da igreja por um tal Tchaikin, que em breve foi detido, tendo reconhecido que havia vendido a moldura preciosa do ícone, gasto em bebedeiras o dinheiro e queimado a imagem.

A destruição do ícone deixou pasmado o país. O sacrilégio do ladrão foi interpretado como um prenúncio terrível para o Império, um sinal da próxima destruição do Estado e da Igreja.

Toda a esperança foi depositada nas duas cópias do ícone feitas ainda no século XVII que também foram reconhecidas como milagrosas. Conforme era considerado, um destes ícones salvou Moscovo da invasão polaca nos tempos do reinado do Falso Dimitri I e o segundo defendeu a Rússia na guerra com Napoleão.

Nos anos da revolução, estas relíquias também foram perdidas, mas um pouco antes da Segunda Guerra Mundial uma das cópias foi descoberta no estrangeiro. Primeiro o ícone foi guardado no convento de Fátima e depois entregue solenemente ao Vaticano.

Finalmente, a imagem milagrosa tornou-se o ícone predilecto do actual Papa João Paulo II, que orava diante dela nos seus aposentos no palácio papal do Vaticano.

Levando em consideração que a imagem de Nossa Senhora de Kazan segue a antiga tradição russa da pintura de ícones e difere absolutamente das imagens católicas, a veneração deste ícone pelo Sumo Pontífice da Igreja Romana já por si é um facto surpreendente.

Os ícones russos são uma antítese do espírito do Catolicismo. Em Roma os quadros inspirados em temas bíblicos são bastante apreciados. Cristo e os santos são apresentados como figuras realistas, pela cruz escorre o sangue. O paraíso é semelhante a uma cena pastoral ou a um baile num palácio real. Dum modo geral, o princípio básico duma tela católica é a (com)participação emocional nos acontecimentos bíblicos. E todo católico que contempla tal quadro vê nele uma história didáctica da sua fé.

Contrariamente, o ícone russo representa um sistema de sinais simbólicos. No ícone tudo é convencional: Jerusalém representa dos degraus para o espírito santo, Gólgota é um conjunto de toques de pincel uniformes. São sinais de Deus, mas não pedras verdadeiras. O sangue de Cristo não é vermelho, mas sim gotas de luz de salvação. Nos ícones russos é impossível encontrar um Cristo sem dentes, com a pele cheia de hematomas como na obra genial do pintor Matthius Grunewald no mosteiro de Isenheimer. Nesta pintura, as torturas brutais transformaram Cristo num pedaço de carne sangrenta, pregado à cruz pelos seus carrascos.

No ícone russo Cristo crucificado não aparece espancado com chicotes dos romanos, nem torturado desumanamente, nem é fixado na cruz com pregos - ele como que paira sobre o mundo, tem os braços abertos como que para abraçar a Humanidade. O ícone canónico não tem emoções, não é uma representação de factos verdadeiros, mas sim uma representação da verdade suprema, transluzindo o sentido e a essência dos acontecimentos.

No quadro da Madonna de Sisto de Rafael vê-se que o Menino Jesus tem peso. Pelo contrário, nos braços da Nossa Senhora executada pelo pintor russo medieval Dionyssius, Jesus é santo e não pesa nada.

O ícone canónico russo é difícil de ser entendido. O teólogo e príncipe Evgueni Trubetskoy caracterizou o ícone como uma "especulação em cores". O padre Zenon, pintor de ícones russo contemporâneo, afirma que "o ícone nada representa, ele só mostra". O seu sentido fundamental é transmitir a presença de Deus, não ser um quadro para os olhos, antes sim um olhar para Deus.

Os místicos ortodoxos consideram que o pintor de ícones não deve ofuscar Deus com a sua arte e, portanto, tem que "diluir-se" no acto de pintar. Só assim é que o ícone pode considerar-se verdadeiro. O ícone deve transmitir a força de Deus. E é esta qualidade da transmissão da força divina é que faz do ícone um anjo taumatúrgico que, ao descer dos céus à terra está perante pessoa em oração, a ler os seus pensamentos e a cumprir os seus pedidos.

É esta fé na fusão com Deus é que torna o ícone ortodoxo diferente do católico. Entre os católicos prevalece o culto da distância entre o ser e Deus, o culto do templo concebido como foco da pintura e música, da beleza e oração. E nisso também existe verdade e força. Entre os adeptos da doutrina ortodoxa vemos o culto da proximidade de Deus, o culto do mistério do acto.

A igreja romana pressupõe o contacto com Deus. Pelo contrário, a igreja ortodoxa pressupõe o silêncio e não admite nenhum diálogo, nenhuma conversa. A pintura católica é endereçada ao coração e à mente, elevando a pessoa aos céus. O ícone russo é endereçado, única e exclusivamente, a Deus devendo a própria representação transformar-se em nada, em vazio, apenas numa série de sinais. A missão do ícone é abrir as portas dum túnel mágico pelo qual Deus deve descer e instalar-se em você. Pois, quem olha para um ícone russo tem que como que ficar cego com a luz divina. "Não somos nós que contemplamos o ícone - é o ícone que nos contempla", dizia o teólogo Evgueni Trubetskoy.

As duas tradições, tanto católica como ortodoxa, têm as suas virtudes, sendo provavelmente impossível fazê-las aproximar-se sem perdas mútuas. No entanto, a odisseia emocional deste ícone ortodoxo, que passou pela devastação e fogo da revolução, pelos aposentos do Papa católico e foi depois devolvido por este ao mundo ortodoxo - tudo isso já é uma aproximação em si.

*observador político da RIA "Novosti"

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