O dedo americano

Na foto, aparecia um indivíduo calvo, fardado, com ar galhofeiro, ele próprio um flagrante de obscenidade.

O eufemismo dos jornais, o gesto obsceno, é o que os brasileiros chamam de “dar o dedo”, um insulto, a que às vezes acrescentam a exclamação, “aqui pra você!”. Os norte-americanos, mais explícitos, expressam com tal gesto um “fuck you”. Pessoas com raiva em geral, de vários lugares do mundo, concordam que o gesto deve ser feito com o dedo médio em riste, como um cacete, um pênis, que parte da mão para humilhar e agredir os desafetos. Onde portanto o obsceno? Pessoas com raiva agem como loucas, agem conforme o impulso do momento. Ninguém diz de um soco que deu, ou recebeu, no calor de uma luta entre iguais que tal explosão é uma obscenidade. Até mesmo os palavrões, as chamadas palavras de baixo calão, ocupam um lugar necessário em climas e alturas em que o absurdo seria a educada ternura. Onde portanto o obsceno? O obsceno se dá quando um ato ou palavra estão fora do lugar. Quando ferem a decência porque se transportam da intimidade, da grossura íntima, para a frente das câmeras, por exemplo.

É dos jornais: “Durante procedimento de identificação dos americanos, ... (nome do herói de Miami)..., 53, fez um gesto obsceno ao segurar sua ficha em frente ao corpo para ser fotografado”, com um dedo médio destacado para a câmera, com um fuck you, a notícia quer dizer. E prossegue: “ A tripulação apoiou o gesto do seu comandante e começou a comportar-se de maneira jocosa, com risos e piadas, de maneira a desabonar a atitude dos policiais federais e do sistema de identificação brasileiro”. Dir-se-ia que estavam muito à vontade, em casa. Na chácara, na granja, ou no grande quintal do resto mundo, poder-se-ia dizer. “Ah os brasileiros, que comediantes incríveis!”, pareciam dizer. E com isto, às gargalhadas, a bater com os pés no solo da sua propriedade, queriam dizer que a comédia, a ópera-bufa começou quando um juiz brasileiro, o Dr. Julier Sebastião da Silva, obrigou todo turista americano a ser identificado nos portos e aeroportos brasileiros. What? Sim, todo turista americano passou a ser fichado, com foto numerada e impressão digital. Mas por quê? Ora, apoiado na reciprocidade, princípio básico das relações internacionais dos povos. Se lá somos fichados, maltratados, presos durante horas no recinto de um wc nos aeroportos, nada demais que os de lá sejam aqui pelo menos fichados. Sim, mas essa reciprocidade é possível até mesmo entre brasileiros e americanos? Real? “Ah... Seremos também cucarachas? Ah, ah!”. E haja batida de pé, e gargalhadas.

Faz sentido. Se olharmos com frieza, se conseguirmos sair da pele da gente brasileira, da pele da gente latina (dói, mas tentemos), veremos que o comportamento desses americanos faz sentido. Cucarachas voam para lá, mas os que descem para cá, ainda que voem, nem por isso se confundem a cucarachas brancas. Não diremos nem mesmo, ainda que a imagem nos ocorra, que se a voantes esses americanos se assemelhassem, melhor se assemelhariam a vampiros. Tratemo-los respeitosamente, sem pensar em reciprocidade. Até por uma razão simples: o prefeito do Rio de Janeiro, que os recebe a rosas e declarações de amor, já disse que eles trazem divisas, grana, money, dólares. E quem isso tem, sem dúvida nenhuma é um homem, não é exatamente um vampiro com as asas pejadas de cédulas verdes .

Quando esses americanos sorriem, gargalham e zombam em nossos aeroportos, eles assim agem porque antes foram provocados. Eles não são particularmente maus. Vai ver, se nos apresentarmos para carregar suas malas, se nos baixarmos para engraxar os seus sapatos, se lhes conseguirmos belas morenas, daquelas cujo sexo se abre para um ET das galáxias, acreditem, ninguém conhecerá no mundo um ser mais cordial e generoso que o americano. No clichê da foto cara a sua volta à América, ele se acha com uma camisa florida, de chapéu de palha, com o braço posto no ombro de um nativo, mais baixo que ele em mais de um sentido: latino, pobre, com a esperança de gorjeta em dólar. Nessa foto, ele sorri, e nos tem tanto amor quanto a animais perdoados da morte num safári. “Reciprocamente”, sorrimos. Na foto há um encontro de sorrisos, e uma luz ao fundo, que vem não apenas do sol tropical. É a luz de um conceito, do que eles entendem, understand, sobre a reciprocidade. A saber: reciprocidade é aquela que dá a gratidão. Ou seja, se ainda podemos ser mais claros: se me dás moedas, eu jamais morderei as tuas mãos.

Esse americano que gargalha e zomba do seu fichamento é o americano típico, da grande América, a imperial, que não foi educado para respeitar a gente de outros mares, de outras línguas, de outras cores. O que no mundo é riqueza para ele é uma vasta pobreza, de que se serve. Quando um comandante da American Airlines nos enfia um dedo na cara, dizendo-nos, fuck you, ele não é particularmente agressivo, mal-educado ou arrogante. Não. Ele apenas nos diz: - Como ousam? Fuck you! Quem vocês pensam que são? You, fuck you! Olhem-se, mirem-se na ponta deste dedo, fuck you. Visto de outra maneira, a distância, esse herói de Miami nos diz que o mundo ainda não é tão diferente daquele das décadas de 60 e 70. Ele nos diz, sim, o muro de Berlim caiu, sim, a União Soviética não existe mais, mas nem por isso os preconceitos e os privilégios caíram por terra. A direita ainda existe, saibam. Primeiro eu lhes digo, fuck you. Depois, aperto o botão kill, e mando-os para o inferno como bonequinhos de video game.

Então só nos resta dizer a esse americano incomodado por nossa grande petulância: – Você se lembra do que escrevíamos nos muros daqueles heróicos tempos, man? A este seu dedo nós respondemos com nossas restauradas forças: Yankees, go home. Por força do agradecimento. Para não morder nem arrancar o teu dedo.

Urariano MOTA

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Author`s name Pravda.Ru Jornal
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