Dois bandidos (I)*

Dos bandidos que interessavam à delegada, ela havia eleito dois: o professor Gusmão e o Mestre Santiago. Com evidente inclinação pelo último. Já pelo título, já pelo nome, a elevação de Santiago à categoria de Mestre era tão-somente irônica. A delegada o havia posto no centro do coração com ódio, com repulsa, por vingança. Ela iria pegá-lo. De uma forma ou de outra. De uma forma e de outra. De qualquer forma. O seu instrumento, o seu cão de caça para o cerco ao animal, seria o professor Cássio. Mal sabia a delegada que nisto, de encurralar a vítima, de aprisioná-la em rede cerrada, Cássio é que era o verdadeiro Mestre.

Franzino e minúsculo, o professor Cássio era uma fortaleza, de intriga. Por se saber reduzido, ele não se alteava como os franzinos do gênero Kant: ele tirava partido da pequenez física por um declive, pois ele se fazia e era o confidente, de homens e mulheres. Onde outros destroem pelo estrondo, pelo som do trovão, pela força que arrebenta elos de ferro, o professor Cássio destruía somente falando aos ouvidos. Cochichava. Cochichar era o seu modus faciendi.

Ele era aquele que telefona, delata e se esconde. E sorri, à vítima. O caráter era plástico, no sentido de amoldável, como um ator que se envolve no papel até ganhar a personalidade do representado, e a partir daí transforma-se na vida e na pessoa do personagem. Era como se nele não houvesse um terceiro, um cérebro que vê, como o do narrador que descreve. Era como se. Daí que se confundia, tornava-se um ser de crenças e valores igual à vítima, e defendia os seus pontos de vista como se os próprios pontos de vista fossem, com igual, às vezes até maior, convicção. Como dizê-lo? Isso era uma tática espertíssima de sobrevivência. Pois se diz do camaleão que não é verde, quando ele se acha entre folhas verdíssimas? Pois se diz do animal hermafrodita que não é fêmea, quando procria em funções de fêmea? Nele, a passagem do estar para o ser era um passo delicadíssimo. Se mal o comparamos, ele era como um artístico verbo To Be. Ele era o que estava, ele estava no que era. Aí era, estava e se situava a sua harmonia. De farsante, claro, mas de um farsante que era a própria farsa.

Dissemos antes Como Se. Esse Como Se é ofuscante. Engana até a gente que dele fala. Queremos dizer, o terceiro, o olho que vê no cérebro, no momento em que ele representava, não estava de todo ausente. Hibernava, “morria”, de acordo com as conveniências. Ocorre-nos dizer: se para ele, por imperativo de sobrevivência, para bem se sair de uma enrascada, não houvesse outra saída a não ser a mais eloqüente representação, o olho “morria”, como uma lagartixa que amputasse o próprio rabo, para em melhores dias o regenerar. E isso, porque ninguém pode viver sem uma moral, era uma justificativa aos próprios olhos. Se para melhor equilíbrio do frágil corpo, não houvesse mais necessidade do rabo, ele seria essa nova espécie de lagartixa sem apêndice. Ele realizaria nele mesmo a evolução.

Um ser assim, perguntamos nós que o narramos, um ser assim tem identidade? – Sim, se consideramos que ele tem a memória do que era, um tipo especial de memória, ressalvamos, porque mutável. Os dados factuais deixam de ser fixos, porque sujeitos a freqüentes revisões. “Naquele tempo eu julgava desse modo”, ele se dizia, para acrescentar, “hoje, não, pois sei que estava enganado”. E o dedo factual do passado caía-lhe como uma luva, à luz do novo comportamento. Caía-lhe como uma luva em duplo sentido, tanto no de assentar, de se harmonizar em novo conteúdo, quanto no de vir ao chão, onde jazia, descartado, em razão do antigo significado. Será, perguntamo-nos finalmente, será que isso não se dá com toda a gente? Os dados de nossa memória não são, sempre, quase todos, cambiantes? Então digamos, para tentar atingir a especificidade de Cássio, digamos então que ele possuía uma grande capacidade de enganar, com uma absoluta ausência de escrúpulos tidos como de boa moral, há séculos, por toda a gente.

Nos dias que se seguiram à entrevista com a delegada, Cássio atacou simultâneo em duas frentes, para melhor harmonizar o seu objetivo: ao mesmo tempo em que insultava a delegada, que lhe realçava a prepotência, o ridículo, ele segredava, revelava-se um tarado, em observações e comentários aparentemente casuais. A todos, para se fazer ouvido, ele criticava os métodos da Doutora Carla, enquanto a Gusmão e a Santiago, em particular, em voz baixa, ele suspirava pelos encantos do sexo. A princípio, como um ser pansexual, para ganhar confiança, exibindo-se em sombras como um anjo em queda. Até então, o expediente era simples, embora de permanente eficácia: se me apresento na intimidade, aos sussurros, como um ser falho, coberto de execráveis feridas, abro a guarda de quem me ouve, para que me fale também dos próprios pecados, que a sociedade condena.

Simples e eficaz. Quando nada, ninguém pratica, todos os dias, o que o puritano mundo prega. E pabular, contar vantagem de insuspeitas potências, entre homens, é o trivial. Mais adiante, no entanto, é que Cássio passou a ser menos óbvio em sua danação de anjo frágil. Ele acerou a ponta da flecha, molhou-a no veneno específico, retesou o arco e soltou a corda. Cássio então passou a suspirar, a decantar a beleza e o encanto das ninfetas da escola aos principais suspeitos. De passagem, em busca do coração, tangenciando-lhes o peito.

O professor Gusmão, ou por costume de argúcia linear, ou em razão de possuir uma natureza que tendia ao escracho, não se fez de rogado. Gargalhava no corredor, à hora do recreio.

- Então, professor, com carocinho de pitomba, brotando – e apontava as próprias mamas descaídas -, já está bom?

- Fale baixo. Você é doido? – murmurava-lhe Cássio. E em voz sumida: - Isto é só pra quem gosta. Os outros não entendem.

- Eles não querem é entender, professor. O homem é animal.

- Claro, Darwin já provou há muito tempo.

- Que Darwin? E precisa de Darwin? O homem é é cachorro. Cachorro mesmo.

- Eu sei. – E baixando a voz: - Eu tenho vontade às vezes de ficar lambendo os mamilinhos, ao redor, sem nem chupar.

- É mesmo? O professor já provou?

- Lá vem você ... e eu ia contar?

- Vá, pode dizer – Gusmão convida, com os lábios úmidos. – Vá, é segredo profissional.

- Se você quer saber, já. É ótimo.

- Eu sabia! ... – Gusmão gargalha.

- E você?, não me diga que nunca ...

- Eu sou um cachorro velho, professor. Assim, ó ... – e desce a língua, e lhe faz movimento pelo queixo, pelos lábios, acima, abaixo, rápido, como um chicote de artista de circo.

Cássio sentia então um enjôo. Percebia que a doença do professor era apenas a vulgaridade. Gusmão seria vulgar em tudo, faria de tudo a terra, e da terra apenas o que fosse mais chão. O transporte para o céu, ou para o inferno, isto ele não acharia no cachorro. Para uma bacanal, para um festim de carne, vinho e sexo, ele seria o convidado. Para o sublime sem freios, para a transgressão religiosa, para o sepulcro que se profana, nisto ele não acharia Gusmão. O cachorro seria de outra têmpera: músculos, vísceras e arroto. O cachorro adestrado em matemática era o comilão, o garanhão, o danadão. Bem longe do danado, daquele que caiu em desgraça com o Senhor.

Gusmão, criminoso, não tinha como ferir a sensibilidade da inteligência. Passaria tangente, como as retas grosseiras que ele desenhava em sala de aula, tangente sem o conceito do limite entre a região que se toca e o intocado: sem o limite de um só ponto. Gusmão, estuprador, teria arrancado o hímen e arrombado a vulva da menina. Teria borrado toda a sua gala no sexo imaturo da criança, como se descarregasse a porra em boceta de anã. Ele era o linchador e o linchado. A turba revoltada e o ladrão da esquina. “Pare!”, Cássio teve vontade de gritar, não pelo feio ou por nojo àquela língua estendida, coisa autônoma que saltava como um açoite de molambo, desbotada, lacerada, não. Mas pelo que ela lhe revelava: o instinto de um homem que não poderia ter cometido aquele tipo de crime. “Basta! O que você faz já me serve. Você é um animal às claras, você não é de matar uma aluna no colégio. Você é de convidá-la, corrompê-la, gozar, não importa onde, bunda, coxa, axilas, até na vagina, desde que defendido por camisa-de-vênus. Gozar, é tudo o que você quer. E contar para todos a proeza do cachorro velho. Basta. Você não é o criminoso deste crime.”

- Assim, professor, ó ...- a língua de Gusmão dava pulos, cheia de saliva, obscena, repulsiva.

* Do livro “O Caso Dom Vital”

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