Os criminosos *

De fato, os mestres do Dom Vital eram suspeitos. Todos. Se houvesse um Código Penal do Ensino, eles estariam enquadrados em um ou outro dos seus artigos. Como tal Código ainda não há, enquadremo-los num sistema mais simples. Digamos que houvesse imperativos naturais para a formação de almas saudáveis. Digamos que haja: os mestres os descumpriam, sistematicamente. Ou melhor, eles os cumpriam, astuciosamente.

Ao imperativo natural, Serás Verdadeiro, eles o traduziam para um Gerarás Constrangimento em Indivíduos sem Defesa. Assim, nas salas o professor Gusmão proclamava, ao saber que no fim do mês não receberia o salário: “se não têm dinheiro, não tem aula”. E ficava sentado, contando anedotas à sua imagem e semelhança, o que quer dizer, escabrosas. Ou então, na turma do 3º ano científico, passava exercícios de Potência, de Aritmética, da 4ª série do fundamental. Assim, ainda, o professor Santiago, esquecendo-se das lições dos clássicos, desfiava miseravelmente a sua miséria para os alunos, gritando-lhes os meses que o Colégio não lhe pagava.

O imperativo Amarás a teu Aluno sofria a interpretação de um ... Insinuarás Fornicação, a torto e a direito. Assim, as professoras acariciavam, deixavam-se acariciar, abraçar, beijar, numa palavra, despertavam afetos e forças pouco pedagógicos em alunos mais crescidos. Os professores, por sua vez ... suspendamos. Por enquanto, suspendamos. Aqui o comportamento dos mestres, dos homens feitos em relação às alunas, já é matéria do próprio Código Penal. De passagem, acrescentemos que levavam mais longe o imperativo Amem-se, entre eles mesmos, se se permite a redundância. O que quer dizer, os mestres entredevoravam-se, das mais diversas maneiras. Dos joelhos aos cabelos, dos seios às costas, sem distinção, de carnes machas e fêmeas. Mas voltemos aos naturais imperativos.

Ao categórico Viver é uma Ordem, eles o traduziam para um Sobrevive, Mestre. Essa passagem, essa transformação seria sutil, quase um terreno contíguo cujos limites são imprecisos, se não quisesse dizer mais simplesmente: “Para sobreviver, professor, trai, trai sempre. A começar por teus colegas: dirige-te à secretaria, recebe teu salário em separado, na moita, e depois veste uma cara de coitado com fome, instigando palavras maldosas contra a direção do colégio. Mais adiante, trai mais uma vez a teus confrades, leva de volta os comentários que estimulastes, e dá a esse retorno o caráter de fidelidade e recompensa por teu privilégio. Aproveita o teu dia, a isto chamarás ”. Diria o diretor Saulo que tal comportamento não se tornava mais amplo em razão mesmo da ausência de dinheiro no caixa da secretaria. Como se ele se visse obrigado a fazer uma seleção, para o ato de trair.

O terreno em suma era fértil. Havia um caldo propício à cultura do crime. O problema é que um inquérito policial disso não trata. Para esse procedimento burocrático, do processo escarificado, a questão é técnica. “Tais indícios, tais provas”, sem comentário remetam-se à Justiça. E, no caso, por exemplo, não existe pena prevista para a delação. O próprio dicionário faz-lhe sinônimo o legítimo ato de denunciar um crime, retirando-lhe o conteúdo de trair uma confiança ou um segredo. O delatar, de um ponto de vista policial, é um comportamento até virtuoso, a ser estimulado.

Não há crime tampouco em uma pessoa, em estado miserável de bens, mostrar-se dessa maneira ao alunado. Seria como impedir ao sol a iluminação dos remendos de uma camisa. Nem há muito menos punição possível a indivíduos adultos que se comem, de todos os modos e maneiras. Nem mesmo para a troca de abraços e beijos, entre mestres e discípulos, cada vez mais calorosos. Somente a mente mórbida, alheia ao Código e ao processo, poderia nisso ver um rito iniciatório. Que se pode fazer contra a ereção em adolescentes bobinhos? Que se pode fazer contra as fantasias de mocinhas sem experiência? Nada disto é crime. Tudo isto é relevável. A delegada poderia até tomar conhecimento dessa atmosfera, queremos dizer, disso ela ser informada, mas jamais semelhantes fatos poderiam ser arrolados nas conclusões do seu inquérito. Beijar, trair, faltar ao amor-próprio, nada disto é ilegal. Pois o crime há de ser concreto, objetivo, previsto, tipificado. Ora.

O diabo é que em meio a tantas coisinhas insignificantes a delegada tinha um cadáver. Ficara um corpinho de aluna em meio a tantas coisinhas menores, como um rastilho de pólvora que recebe calor e afinal se inflama. Como gases de fezes fechadas que explodem. Mas como o inquérito poderia ir aos gases? Para a Lei, por comportamento moral, ninguém é criminoso. O Código Penal tem lacunas, melhor dizendo, tem rombos extraordinários, crimes não tipificados, ou crimes mal caracterizados, ou até mesmo prevê penas a comportamentos moralmente justos. A delegada estava literalmente às tontas. Não por dúvida filosófica, nem por questionamentos éticos, que a sua prática e formação a isto não chegavam. Mas por questões técnicas mesmo. O máximo a que ela havia chegado era: que houvera um crime, porque havia um cadáver com sinais de esganadura, e que fora praticado por homem, porque havia marcas de sêmen na calcinha da vítima. Destes pontos em diante, o inferno. Inferno de conjecturas, num quadro de caos administrativo e pedagógico. E tudo sob pressão do escândalo público. O homicídio no Colégio Dom Vital, para ela, nada possuía de didático.

“Peça por peça”, ela se dizia. Pedaço por pedaço, cacos, ela queria dizer. Ora, se ela descesse à vida pregressa de cada mestre, certamente ela encontraria elementos cada vez mais motivadores do crime. “Sim, mas por que há de ser um professor?”, ela se perguntava. “Por que não o diretor? Por que não o vigia, o porteiro? Pela hora provável do crime, poderia ser um empregado sem qualificação. Mas eu não sei ainda a hora de chegada de cada professor no dia do crime”. E voltava aos mestres.

Havia uma intuição que a dirigia aos professores. Infelizmente, aqui não há lugar para discutir como se forma a intuição num delegado de polícia. Mas deve ser anotado que ela se forma por experiência, quase estatística, dos casos de sua delegacia. O que quer dizer, os casos de estupro, de sedução de menores, que ela conhecia, eram sempre feitos por pessoas próximas, por pessoas em quem a vítima depositava confiança. E daí, nessa intuição, com um certo rastro de preconceito, a delegada não via como um servente ganhar a estima, a confiança para jogos amorosos, de uma criança de classe média. Estabelecido esse preconceito, ela o justificava com dados factuais. “Para consumar o estupro, o porteiro teria que abandonar o posto. (Houve isto? Certamente, não.) O vigia já havia largado. (Nesse dia ele largou no seu horário? Se não, como saiu sem ser visto?) Não, não foi o vigia”. E voltava aos mestres.

Havia um fascínio, quase perverso, quase sexual, que a fazia voltar aos mestres. “E o diretor? Não, ele não me parece ser um homem atraído pelo sexo oposto”, e dizendo-se isto, ela queria também dizer que era uma mulher atraente, a quem o Dr. Saulo sequer dirigira um olhar mais interessado. Cruzara as pernas, ele parecera entediado. Como se esse erro não bastasse, o indivíduo era apegado a religião, e solteiro. Ou seja, a delegada o via, na melhor das hipóteses, como um ser misógino. “Não, não foi o delegado”. E voltava aos mestres.

Isolada em sua sala, lhe dava vontade de desapertar a cinta, para melhor refletir. “Vejamos. Peça por peça”. Pedaço por pedaço.

“O professor Gusmão ensina matemática. Como ele é?”. E numa folha de papel ofício ia anotando. “Moreno, alto, gordo. Franco. Casado”. Bem casado? A resposta veio de pronto: “Mas quem é bem casado?”. E continuou: “Cássio. Inglês. Casado. Tem filhos na escola”. E continuou: “Santiago. Português. Casado. Tem filhos”. E, preguiçosamente, escreveu ainda: “Antônio Luís. História. Tem filhos”. Então a delegada se deu conta de que estava afundando em sulcos na lama, que o carro não se movia. As linhas no papel apenas tentavam distinguir indivíduos idênticos, em uma mesma situação, em igual colégio. Então ela deitou para um lado o telefone, para que acusasse sinal de ocupado, apoiou o queixo em sua mão, e se pôs a lembrar a conversa com o diretor.

Supondo que ele falasse a verdade, ela considerou, todos os professores seriam perfeitamente criminosos. A começar pelo professor Cássio, com sua dupla jornada de trabalho, de informante para a direção, e de solidário colega para os mestres. “Um homem assim não poderia fazer tudo?”. Mas nesse ponto, antes de avançar para uma sólida suspeita, a doutora sentiu um vácuo, uma pontada no estômago. Porque seres assim, ela não se dizia, mas esse era o conteúdo do vazio e da pontada, seres assim são úteis, são até confiáveis, e de um ponto de vista policial, são indispensáveis. Esses delatores devem apenas possuir um limite para a sua ambigüidade, embora possam, até, ultrapassar o limite da lei. Porque, se o ultrapassam, será relevável, um ponto a ser obscurecido e jogado ao lixo como recompensa pelos serviços prestados. Pois como poderia a polícia sobreviver, ter sucesso, sem o bandido? Então a doutora Carla o descartou, e sentiu assim preencher o vazio do peito. “Não pode nem deve ser este”. Mas ... e se ele fosse o assassino? “Não pode”. E para não se dizer que assim ele seria o criminoso absoluto, a doutora Carla saltou o vácuo, rumo ao próximo.

“O professor Santiago. Vejamos ...”. Aqui ela se lembrou das exibições públicas de miséria do professor, e nesse lembrar a delegada agia como um cão que fareja, que cheira a própria urina e não distingue de imediato o líquido. “Ser pobre não é crime. Mas essa falta de pudor, esse ...”, e radicaliza: “... esse escracho...”, ela pára, como um cão, porque a sua antipatia contra o miserável que reclama ajuda, a impossibilidade que ela sente para o fundamento científico da suspeita, retilínea, como um Lombroso ético, tal desvio de comportamento, tal crime, não encontra antecedentes em sua experiência. Então o cachorro da suspeita, por não achar um núcleo de osso, vai à procura de um rabo, do próprio, enrodilhando-se em busca de apêndices, de insinuações.

“O bilhete. Os bilhetes”. Ela quer dizer, as anotações nas provas das alunas, as palavras corteses escritas pelo professor Santiago, de estímulo, de parabéns. “Nisto pode haver malícia”. Como prová-lo? E a doutora se curva. Fecha os olhos, crispa as mãos. Ah, como seria bom um processo criminal da Inquisição sem este nome, que aliasse a arbitrariedade de uma tortura sem corpo ao interrogatório: um processo de tortura da alma, sem marcas, sem rastros, impossível de se tornar objetivo ao relato de qualquer advogado do torturado. Um processo que fosse, no cérebro do suspeito, a lembrança de uma serpente, à qual a delegada faria alusões por sinais, fazendo-o chorar, berrar, mijar-se de medo. Ah, então seria fácil. “Vamos”, ela iria proferir, de pé, “ou você se lembra do que fez, ou se lembra Daquela ...”. A língua correria solta. Se um processo assim fosse inventado, as soluções dos crimes seriam bem mais ágeis, e certeiras. Como um bote, como um ataque de serpente. De olhos fechados, a delegada se vê com poderes de um Basilisco. Abre-os.

“Sou uma delegada. Investigo. Deixemos de fantasias. Vamos aos fatos”. E de um salto vai ao professor de matemática. Pesado, ofegando em cima da vítima. “Por que o professor Gusmão? O que ele tem de suspeito?”. O diretor já lhe respondera: “Ele é feio, muito feio”. E daí? Será um júri popular, que suspeita do réu pela aparência? Isto é uma investigação, doutora, ela se diz. E daí? “Daí que, apesar de feio, ele tem sucesso com as meninas”. Só pode ser desonestidade, segundo o diretor. Gusmão troca notas por favores e carinhos das meninas. Isso é mesmo tão incomum? Será que somente por isso, e a partir disso, Gusmão chegaria ao estupro?

Um lado da doutora diz que não, que tal comportamento, de tão comum, jamais evoluiria para o homicídio, pois se o professor conseguia intimidade de alunas somente com a ameaça de notas ruins, não haveria por que conseguir sexo à força. Um outro lado diz que sim, que esse canalha de professor era insatisfeito, que, à maneira dos viciados, ainda que conseguisse um certo prazer nas carícias, ele queria sempre mais, podendo chegar à consumação do crime. Então, oscilando entre os dois lados, ela se resolve por uma zona de sombra: “Depende”. E põe ao lado do nome do professor uma interrogação. O que vale dizer, o professor de matemática era uma perfeita incógnita.

Vai ao nome do professor Antônio Luís. Este, assegurou-lhe Saulo, era um subversivo. Certo. Mas um subversivo é um tarado, um pedófilo? Então a doutora Carla, embora não tenha muitos e seguros elementos sobre essa categoria de suspeitos, considera que esse tipo de gente deve ter alguma espécie de código de ética. No entanto, antes de passar a outro nome, dá meia-volta, como um cão que não pode desprezar um osso. “Sim, mas o que é que tem? Subversivo também é gente. É feito gente. Tem de todo tipo. Depois da queda do muro de Berlim, tudo é possível. Ele bem que podia ser um subversivo desenganado.” Sim, continua, e daí? Ele poderia ser um subversivo dos desequilibrados, dos que contestam tudo, da moral aos bons costumes. Dos que passam por cima dos valores da família, do gênero dos terroristas. Sim, poderia ser um subversivo de tara. De tara, ela se repete. E suspira, porque, com o devido perdão da rima, a tara lhe era cara.

A doutora Carla então observa, com um resto de sensatez, com o resto do que sobreviveu a tantas conjecturas, que possuía ao fim bolas de sabão, que se desfaziam ao contato da realidade. Ela não se disse, mas viu ao fim que possuía um amontoado de preconceitos, misturados aqui e ali a alguma intuição, que nasceu não daquele crime, mas da experiência de solução dos crimes na especializada de Crimes contra a Infância e a Adolescência. Então ela se disse: “Vamos aos depoimentos Vejamos o que os mestres dizem deles mesmos”.

* Da novela “O Caso Dom Vital”.

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