Na sala dos professores*

A primeira coisa que ocorreu aos mestres, sem que nada se dissessem, sem nenhum acordo prévio, foi iniciar uma reunião na sala dos professores. O diretor não estava convidado, como sempre. Ali seria o lugar e o templo para uma reflexão sobre os acontecimentos, se todos não falassem, pontuados por choros, e gritos, e todos ao mesmo tempo.

A um observador externo, mais pareceria uma sessão espírita, onde não houvesse invocação de espíritos, pois todos espíritos, encarnados nos mestres, já estavam presentes. Dos endemoninhados aos enlouquecidos, dos raivosos, dos magoados, aos histéricos. O ar está repleto de nuvens carregadas, maduras e clementes de um raio.

- Eu peço a palavra – ergueu a voz, e o corpo e a cabeça, o professor de Português, Santiago.

- Porra de palavra – resmungou Gusmão, ao lado. – Ninguém quer ouvir discurso. Eu quero é saber quem matou!

“Professor... professor”, ouve-se dos que gostariam de evitar escândalo. Não sabem os quase escandalizados que Gusmão assim fala, com tapas à mesa, à procura de um tambor, no que lhes parece uma grosseria, não sabem que Gusmão assim fala porque ainda tem princípios, que por educação o seu tom anárquico ainda não vestiu o conteúdo, que é, mais simplesmente, “eu quero é meu dinheiro”. E por educação, por ilustração de espírito, Gusmão veste fórmulas mais palatáveis, intermediárias, quando diz:

- Vocês já pensaram como vai ficar o Colégio, depois dessa ... dessa... tragédia da menina? Pensem, pensem como vamos ficar.

Ele é compreendido no que gostaria de dizer, porque aqui e ali vêem-se repelões de cabeça, como se mortos encarnados expulsassem do crânio pensamentos impróprios, pouco piedosos.

- Minha gente, minha gente – tenta se fazer ouvir a professora Rosa, de Desenho. – Minha gente, vocês acham mesmo que a pobrezinha foi morta?

- Pois se já estava dura. Endureceu, morreu, pelo menos com qualquer animal é assim – responde o professor Cássio, de Inglês.

- Mas se ela morreu, se ela foi morta, alguém matou, não é? Tem até assassino agora aqui no Colégio? – surpreende-se a professora de Biologia, dona Celestina, gorda, com ares de feminilidade, de frágil, em sua gordura desamparada.

- Eu quero é saber quem matou – berra Gusmão.

Ouve-se um bater de palmas.

- Atenção! Atenção! Parem! Ouçam! Nós estamos com uma questão muito grave – as veias do pescoço, a jugular de Santiago ressalta-se. – Uma jovem morreu neste colégio...

- Uma criança, professor. E ela não morreu: foi morta – corrige o professor de Inglês.

- O professor agora é médico-legista? – devolve-lhe Santiago.

- Quem matou? Tem um assassino entre nós? Tem que haver um culpado - ouvem-se de vários cantos da sala. Que falam, em atropelo, como se vozes saíssem das paredes. Em um crescendo.

- Só pode ter sido um desses moleques.

- Esses meninos são uns demônios!

- Eu não duvido nada. Quem faz o que eles fazem ...

- Isso aqui tá parecendo uma escola pública. Isso é coisa de favelado, minha gente.

- Vamos botar ordem! Que zona é esta? – intervém o professor Antônio Luís, de História, subindo a uma cadeira. Mas não se faz ouvir. Então pula para a mesa. Fica em pé sobre a comprida mesa, derrubando uma garrafa térmica de café.

- Professor, que é isso? – choca-se a professora Celestina. – Nós temos que manter uma compostura.

- Que compostura, professora? – devolve-lhe Antônio Luís. – Com um crime entre nós, a senhora vem me pregar compostura?! – E grita: - Uh! Uuuh!

O professor de História afrouxa o cinto da calça. Então todos param. Faz-se um raivoso silêncio. Dir-se-ia que os mestres mordem-se, e por assim estarem ocupados, realizam a impressão de fazer silêncio. Antônio Luís segura a calça, agora frouxa, no que ele julga ser uma ameaça, mas que não passa, para os demais, de um feroz suspense. O que virá do ensandecido? Descerá finalmente a calça? Passeará de cueca e correrá na escola esvaziada? Ou, melhor, pulará para a rua, como um macaco eloqüente, num louco e solitário protesto?

- Senhores, prestem bem atenção – começa Antônio Luís. – Um crime foi cometido entre nós. Que bobagem, poderá alguém dizer. – Faz pausa. – Esse alguém não está tão errado assim não. Porque os conscientes já notaram que o crime contra essa criança foi apenas mais um crime. Eu não me refiro aos crimes que se cometem em todos os lugares, todos os dias. Eu me refiro aos crimes internos, daqui mesmo, do Dom Vital, de todos os dias. Calma, professor, vão me dizer, mas até aqui nenhum desses crimes havia tirado a vida de ninguém. É? Mas o que dizer de o professor trabalhar o mês inteiro, e chegar no dia do pagamento nem vale receber?

- Apoiado! Apoiado! – grita-lhe o mestre de Matemática.

- Isso é nada, é pouco? – continua Antônio Luís. – O que dizer dos notáveis, dos professores que recebem escondido, e caladinhos fazem de conta, pros colegas, que nada receberam? O que dizer do jogo duplo, que alguns fazem, entregando colegas à direção? O que dizer do comportamento de alguns de nós, que embromam, ou dizem que sem salário não dão aula, punindo o aluno pela falta de governo dessa direção? Será que têm a honestidade de não cobrar as aulas que não deram? Senhores, há um clima propício à safadeza, à putaria. A morte dessa criança é fruto dessa lama, professores. Todos nós somos culpados.

Ouvem-se gritos:

- Protesto! Não apoiado!

- Olhem, e digo mais – insiste Antônio Luís. – Quando a polícia chegar, (“cala a boca”, ouve-se), sim, quando a polícia chegar, se eu for chamado a depor, eu vou dizer: - Delegado, todos nós somos suspeitos.

O professor de História quase é derrubado. Há intentos, ameaças de arremesso de objetos, xícaras, garrafa, copos, contra o mestre.

- Um jabuti de olhos grandes! – grita-lhe o professor Cássio. – Uma tartaruga do tamanho de um poste, com as orelhas pretas de cachorro em pé! O que o senhor disse é um absurdo igualzinho a isto, professor. O senhor deveria dizer: delegado, todos nós somos suspeitos, mas o culpado sou eu. O senhor! (Aplausos) O senhor é o único culpado.

- Uma criança foi morta. E talvez estuprada. O senhor por favor me respeite.

- O senhor é doido? – volta Cássio. – Eu não estou dizendo que o senhor arrancou as calças da menina e matou a menina. Sei lá ... O que eu estou dizendo é que todos nós somos vítimas. – E erguendo a voz. – Agora vem o senhor e quer fazer das vítimas os culpados. Que culpa temos nós de um tarado matar uma menina? – E dirigindo-se à professora Rosa: – A senhora é tarada? – E ao professor Antônio Luís, com ênfase: - O senhor é tarado, professor?! Hem?

O professor Antônio Luís fica vermelho, com os olhos esbugalhados. Fecha e abre os punhos.

- Quer que eu lhe pergunte isso em inglês? – continua Cássio. – O senhor é tarado?

- Calma – fala o professor Santiago, com a voz trêmula. – O inimigo não está entre nós. É muito bom nós nos agredirmos, enquanto Saulo palita os dentes. O culpado de toda essa situação é o diretor. Nós temos que nos preservar. Ninguém sabe como essa mocinha morreu. O que é a gente tem a ver com isso? Nosso problema é salário. Aliás, não é nem salário. É receber no fim do mês. Há quantos meses nós não recebemos? É isso que tem que ser denunciado. Morreu, enterra-se. Horrível. Mas temos que cuidar dos vivos.

- Professor, não é assim ... – tenta intervir a professora Rosa.

- Minha amiga ... – Santiago responde, aos soluços. – Professora, vamos cuidar dos vivos, por favor. Hoje saí de casa sem o dinheiro da passagem do ônibus. Saí de casa sem café. Estou aqui, – e revira os bolsos – quatro reais! Quatro, que um aluno me emprestou. Isto é que é um crime, professora: um mestre sem dignidade! Um educador que não tem como sobreviver. – E seus olhos marejam. – Sexta-feira eu fui a Saulo pedir um vale. Eu disse a ele que estava até sem dinheiro da passagem. Sabem o que ele me deu? Mandou a secretária me entregar dois vales, dois vales-transporte! É isso, professora. Dar aula a essa corja, a essa canalha, sem ter nem dinheiro para viajar com fome.

Santiago começa a chorar, primeiro com lágrimas, irreprimíveis, que lhe descem na face, depois em um pranto alto, descontrolado. Há uma consternação geral. O clima de calor, de incêndio, de paixões que levariam os mestres a uma explosão sem rumo, de, quem sabe, sair em passeata pelas ruas até o cansaço, voltando ao portão do colégio sem uma bandeira; o clima que poderia levá-los a tocar fogo nos móveis e seqüestrar o diretor, arrastá-lo por correntes e cordas, para que fosse resgatado com o pagamento dos salários de meses longínquos, esse clima arrefeceu com o pranto urrado do mestre de português. Nele, no mestre e no pranto, todos se vêem, e no seu drama de pobre-diabo, com tinturas de farsa, de viúva que vai à cama por prazer sob alegação de sobrevivência, todos se identificam e se comprazem. Os homens dirigem-lhe palavras de conforto. A professora Celestina, maternal, abriga-o a seu lado, e esse abrigar é semelhante a trazê-lo para o seu largo regaço, de mãe, fêmea e matrona. Ela também chora, em seu gesto de carinho. A professora Rosa chora, baixinho, mas chora, recompondo as coxas descobertas na saia curta, endireitando-se, para melhor compor o quadro santo do choro. Os homens choram, a seu modo choram, emitindo pigarros, tossindo, engasgando-se. Somente o professor Antônio Luís tem os olhos secos. Ora olha aquela cena, ora dela tira os olhos. Porque se sente mal, porque tem impulsos de vômito, que ele reprime erguendo o rosto para o que há além do teto da sala dos professores. Assim continuariam, assim ficariam, até que se resolvessem por uma lista de socorro à urgência do professor Santiago, se um pigarro mais alto não os fizesse olhar para a porta. Ali, em pé, encontra-se o diretor Saulo Paes de Andrade. Alto, gordo e solene. Em silêncio, fitando-os. Dá-lhes um tempo, e, grave, anuncia:

- Queridos mestres, tenho uma notícia desagradável para vocês. A menina está morta.

* Da novela inédita O Caso Dom Vital.

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