KANT E POPPER - OBJETIVIDADE E SUBJETIVIDADE EM PSICANÁLISE

A conceituação filosófica dos termos objetividade e Subjetividade foi especialmente trabalhada por Kant, que usa a palavra "objetivo" para indicar que o conhecimento científico deve ser justificável, independentemente de capricho pessoal. Uma justificação será objetiva se puder, em princípio, ser submetida a prova e compreendida por todos. Diz Kant: "Se algo for válido para todos os que estejam na posse da razão, seus fundamentos serão objetivos e suficientes" (8). Aplica a palavra "subjetivo" para os nossos sentimentos de convicção (de vários graus).

Estes sentimentos surgem, por exemplo, de acordo com as leis da associação, acrescentando ele ainda que "razões objetivas também podem atuar como causas subjetivas de juízo, à medida que possamos refletir acerca dessas razões, deixando-nos convencer de seu caráter racionalmente necessário". (8)

Popper, por sua vez, sustenta que as teorias científicas nunca são inteiramente justificáveis ou verificáveis, mas que, não obstante, são suscetíveis de se verem submetidas a prova. Em conseqüência, a objetividade dos enunciados científicos reside na circunstância de poderem ser intersubjetivamente submetidos a teste.

Neste livro, Popper reconhece que Kant foi "talvez o primeiro a afirmar que a objetividade dos enunciados científicos está estreitamente relacionada com a elaboração de teorias - com o uso de hipóteses e de enunciados universais... Só quando certos acontecimentos se repetem, segundo regras ou regularidades, tal como é o caso dos experimentos passíveis de reprodução, podem as observações ser submetidas a prova - em princípio - por qualquer pessoa". (14) Na teoria popperiana, por ele denominada " Teoria do Método Dedutivo de Prova", uma hipótese só admite prova empírica - e tão somente após haver sido formulada. O trabalho do cientista consiste em elaborar teorias e pô-las a prova. Com isso ele quer dizer que "o estágio inicial, o ato de conceber ou inventar não reclama análise lógica, nem dela é suscetível" (16), só importando a justificação de validade ( o quid juris?, de Kant).

Ele afirma que não existe um método lógico de conceber idéias novas porque toda descoberta encerra "um elemento irracional ou uma intuição criadora, no sentido de Bergson". (15).

Indo além, Popper afirma não haver enunciados definitivos em ciência, o que concorda com Kant, pois a coisa em si, a verdade absoluta, é incognoscível, sendo o conhecimento em ciência sempre aproximativo e passível de ser mudado. Errar em ciência é inevitável.

Em Psicanálise, o desenvolvimento científico não é diferente das demais ciências, não havendo desacordo com os critérios de Kant ou de Popper. A realidade de que a Psicanálise pode tomar conhecimento é a realidade das apresentações psíquicas da pulsão, e não das pulsõesm em si mesmas.

Freud disse a respeito que "o objeto interno é menos incognoscível do que o mundo exterior...como o físico, tampouco o psíquico necessita ser em realidade tal como nos parece. Todavia, nos agradará descobrir que a retificação da percepção interna é menos rebelde do que a retificação da percepção externa, e que o objeto interno é menos incognoscível do que o mundo exterior". (7)

Nas palavras de Karl Popper: "Todos os enunciados teóricos (nota minha: e portanto também os da Psicanálise), assim como todos os enunciados científicos são objetivos, não reclamam nem são suscetíveis de análise lógica porque todo enunciado, enquanto descoberta, encerra necessariamente um elemento irracional ou uma intuição criadora, não havendo possibilidade de um método lógico de conceber idéias novas" (15). Assim sendo, o que vai determinar a permanência ou o desaparecimento de qualquer enunciado psicanalítico será, exclusivamente, a sua justificação de validade, através de provas empíricas.

Sobre a forma de validação empírica proposta por Popper, bem como sobre sua "crítica" ao que julgou ser a Psicanálise, vou discorrer mais à frente. Por ora vou me ocupar com a questão definitória do que seja objetividade e subjetividade em Psicanálise.

São subjetivos, em Psicanálise, o mundo interno do analisando, bem como o do analista, e ambos são vivenciados na relação intersubjetiva do analisando com o analista, no setting. A subjetividade do analista - mundo interno, caráter, experiência, referencial teórico, conceitos, contratransferência - interage com a subjetividade do analisando, na relação transferencial, sendo esta interação o que vai produzir o primenro fato objetivo em Psicanálise - que a fundou e tornou possível -, a compreensão objetiva pelo psicanalista daquilo que se passa na transferência e será comunicado ao analisando.

Esta compreensão objetiva é a matéria prima da interpretação.

Na psicanálise, a explicação objetiva de significado - a Interpretação - é construída ou intuída pelo analista através (e se nutre) de tudo aquilo que é subjetividade no par analítico. A subjetividade, em Psicanálise, comporta também uma subdivisão em duas categorias: há uma subjetividade primária, ligada ao mundo interno, caráter, fantasias inconscientes, transferência, tanto do analista quanto do analisando; e há uma subjetividade secundária, que é o referencial teórico e a experiência aprendida em análise e supervisão pelo psicanalista. Quando o psicanalista entra no consultório, tudo aquilo que ele tem de objetivo - o referencial e a experiência - fica em off, passando a compor sua subjetividade secundária (vai para o pré-consciente). Se o analista, no setting, pensar em teoria psicanalítica, por exemplo, a análise vai para o brejo, como a vaca. A subjetividade secundária é a ferramenta essencial e sine que non para que o analista possa trabalhar. O referencial teórico e a experiência, que são objetivos, estão no Terceiro Mundo de Popper (vide adiante), todavia durante a ação no setting transferencial, passam necessariamente a ocupar lugar no Segundo Mundo de Popper, estrategica e necessariamente (vide adiante), que é o Mundo das experiências subjetivas ou pessoais: é este o grande mediador entre o Primeiro Mundo de Popper - os representantes psíquicos inconscientes da pulsão - e o Terceiro Mundo de Popper - o Mundo das teorias em si mesmas, de suas relações lógicas, da interpretação objetiva de significado.

A objetividade da teoria psicanalítica, por exigência da técnica, só se dá até a porta do consultório. Durante a seção de psicanálise a técnica impõe que o psicanalista "esqueça" a teoria, afastando-a para o pré-consciente.

A presença da teoria na interpretação somente vai se dar pela via indireta da intuição do analista, vale dizer, através da interação de toda a sua subjetividade (primária e secundária) com a subjetividade do analisando, no choque intersubjetivo do setting analítico. É, no entanto, a subjetividade secundária o que diferencia o psicanalista do observador leigo.

Esta interação entre a subjetividade e a objetividade, em Psicanálise, ou, para Popper, entre o Segundo Mundo - mediador - e o Terceiro Mundo tem sido mal compreendida e gerado equívocos até para alguns psicanalistas que tive oportunidade de ler. Já li artigos de psicanalistas que afirmam que a interpretação psicanalítica é arbitrária, tal como a criação de um ficcionista, e que, por isso, a Psicanálise deve desistir de seu estatuto de Ciência.

Isso mostra a importância central do entendimento do que seja a objetividade e a subjetividade da interpretação, não só pela conseqüência que tem para a técnica, como também para definir ou não a Psicanálise como Ciência. Por tal razão vou debater mais este assunto. Eu disse acima que a interpretação vem permeada pela subjetividade do analista (bem como pela do analisando). Como é o analista quem a intui e constrói, em palavras, é bem verdade que uma interpretação é, também, uma criação do analista, como passam a sê-lo, por exemplo, as fantasias inconscientes do analisando, quando percebidas no setting e reveladas pelo analista ao paciente.

Todavia, o fato de o analista utilizar-se de seu manancial intuitivo teórico, experiencial e vocabular para dar corpo, em palavras, à fantasia inconsciente que ele percebe em seu analisando durante a transferência, embora seja um ato criador, não lhe confere qualquer tipo de propriedade sobre aquela fantasia intuída ou construída, trata-se unicamente da fantasia do paciente. Aqui, ao contrário da ficção criada pelo literato ou pelo romancista, a criação através da interpretação psicanalítica não tem como ser arbitrária. A liberdade de criar que tem o analista guarda-se pelo limite da objetividade. Não há o mesmo tipo de licença poética ou literária de que dispõe o escritor leigo.

É justamente Popper, enquanto não se dedica a falar do que acha que é Psicanálise, que dá o suporte necessário para que eu faça minha afirmação sobre a necessidade de objetividade para a interpretação psicanalítica. Discorrendo sobre Interpretação, de modo genérico - sem cogitar de Psicanálise - Popper diz: "as atividades ou processos cobertos pelo guarda-chuva do termo compreensão são atividades subjetivas, ou pessoais, ou psicológicas.

Devem ser distinguidas do produto (mais ou menos bem sucedido) dessas atividades, de seu resultado: o estado final da compreensão, a interpretação. A interpretação será sempre uma teoria, por exemplo, uma explicação histórica apoiada por uma corrente de argumentos" (15)

Sobre o caminho que Popper percorreu para chegar à conclusão de que a interpretação é uma teoria e, como tal, objetiva, ele nos fala à página 152 do mesmo livro (15). Alí ele argumenta a favor de Platão, quando este introduziu um mundo tripartite em sua Filosofia, ou, na preferência de Popper, "um Terceiro Mundo". Popper adere à Filosofia pluralista de Platão.

Nesta página supra-citada de seu livro e nas que se seguem, Popper explica que nesta filosofia pluralista o mundo consiste em, pelo menos, três submundos ontogeneticamente distintos: o Primeiro é o mundo material, ou mundo dos estados materiais; o Segundo é o mundo dos estados mentais; e o Terceiro é o mundo dos inteligíveis, ou das idéias no sentido objetivo - é o mundo de objetos de pensamentos possíveis, das teorias em si mesmas e de suas relações lógicas, dos argumentos em si mesmos e das situações de problema em si mesmas.

Popper diz ainda que um dos problemas fundamentais dessa Filosofia pluralista refere-se à relação entre estes três mundos. Os três relacionam-se de tal modo que os dois primeiros podem interagir e os dois últimos também. Assim, o Segundo Mundo, que é o mundo das experiências subjetivas ou pessoais interage com cada qual dos outros dois Mundos. O Primeiro e o Terceiro mundos não podem interagir senão pela intervenção do Segundo, sendo este, pois, o mediador entre o Primeiro e o Terceiro.

Por fim, fala Popper: "Sugiro que algum dia teremos de Revolucionar a Psicologia, encarando a mente humana (nota minha: a mente do psicanalista) como um órgão para interagir como os objetos do Terceiro Mundo (nota minha: a Teoria Psicanalítica), para compreendê-los, contribuir para eles, participar deles e levá-los a relacionarce com o Primeiro Mundo (nota minha: os representantes psíquicos da pulsão, as fantasias inconscientes)" (16). Na página seguinte, Popper conclui: "As teorias, ou proposições, ou asserções são as entidades lingüísticas mais importantes do Terceiro Mundo".(16)

Quando se perde de vista a necessidade de objetividade de uma interpretação transferencial ela deixa de ser psicanalítica e o "intérprete" passa de psicanalista a guru. Em outras palavras, a prática deixa de ser psicanalítica e passa a ser de dogmatismo. Poderíamos até chamá-la de "psicanalismo", parafraseando Lênin para dizer que o psicanalismo é a doença infantil da Psicanálise (11).

Para dar exemplos da objetividade de uma interpretação Psicanalítica sou obrigado a remeter o leitor aos textos (3) e (4) que não cabem nem no tamanho nem na estética deste ensaio. O leitor que puder ler o artigo (4) verá que à página 884, quando interpreto que o paciente estava procurando uma mulher sem rosto definido, apenas dei uma forma verbal a esta fantasia inconsciente que o analisando me fizera intuir com sua comunicação imediatamente anterior, na seção psicanalítica. Qualquer psicanalista, com formação análoga à minha, se fosse dizer alguma coisa, naquele momento, só poderia dizer o mesmo que eu disse. Quem começa a me dar a justificação de validade de minha interpretação é próprio paciente: em primeiro lugar, imediatamente, pois segundo o supervisor, psicanalista André Green: "à partir desta interpretação a seção toma um rumo muito interessante... o paciente recolocou em ao seus mecanismos de defesa específicos : de imediato ele não se lembrava mais do rosto da mulher do ônibus; e depois ele a associa com sua irmã..."(4).; em segundo lugar, a médio prazo (Cf. pág. 873), pois o paciente incorpora para si esta representação adquirida com minha interpretação, agora ele já consciente do que era a sua fantasia inconsciente, e o tema que mais tive de trabalhar, por ser o mais insistente à partir de então, foi precisamente o da busca pelo paciente de uma "mulher sem rosto"(4). Em terceiro lugar, a longo prazo, porque este dado influiu decisivamente na melhora clínica do paciente (Cf. pág. 874). Em quarto lugar, tenho que voltar a Popper.

A pergunta que Popper faria se estivesse agora em meu lugar seria: de que modo devo proceder para melhor criticar minha interpretação, em vez de defendê-la contra a dúvida? Respondo que submetendo-a a prova: apresentando-a em um seminário clínico (Cf. pág. 873), publicando-o na Revista Brasileira de Psicanálise, pois, segundo Popper, "todo enunciado científico empírico pode ser apresentado de maneira tal que todos quanto dominem a técnica adequada possam submetê-los a prova. Se, como resultado, houver rejeição do enunciado, não basta que a pessoa nos fale acerca de seu sentimento de convicção, no que se refere às suas percepções. O que essa pessoa deve fazer é formular uma asserção que contradiga a nossa, fornecendo-nos indicações para submetê-la a prova. Se ela deixa de agir assim, só nos resta pedir-lhe que faça novo e mais cuidadoso exame de nosso experimento, e que reflita mais demoradamente".(15)

As explicações objetivas de significado dadas ao paciente acima mencionado foram construídas através do discurso (sentido amplo, verbal e não verbal) inconsciente daquele analisando. O discurso inconsciente só vem a ser significante na relação transferencial, que é interlocução. A interpretação objetiva da transferência destaca e evidencia o sentido latente existente nas palavras ou no comportamento do analisando.

Uma alegação que poderia surgir aqui, principalmente de pessoas menos afeitas à Psicanálise, ou por observadores desatentos, seria a de que este paciente seria único e, portanto, a experiência pessoal com Psicanálise não tem como ser testada e reproduzida com outro paciente, sendo isso, enfim, o que não permite sua transmissão e cientificidade.

Esta, no entanto, seria uma afirmação falaciosa, enraizada no nosso narcisismo - o mesmo que nos fez resistir tão violentamente à Afirmação de Copérnico, e depois Galileu, de que a Terra girava em torno do Sol. A unicidade e a individualidade de cada ser humano é uma aquisição tardia, gradual e incompleta ( a Memória dos Freitas que o diga!) na evolução ontogenética.

Uma maior individuação, uma maior diferenciação são alcançadas por Indivíduos de maior sensibilidade, principalmente se estiverem libertos da doença mental e da Memória dos Freitas. Estes últimos podem chegar a um melhor conhecimento - e reconhecimento - de si mesmos, bem como do mundo externo ao self. Tal evolução mental não é, diga-se de passagem, apanágio dos bem psicanalisados.

Pode, igualmente ocorrer por outros caminhos, como os dos que conseguem romper exitosamente pela esquerda com a Memória dos Freitas mesmo sem nunca frequentar uma seção de análise. No entanto, a Psicanálise, quando bem indicada e bem feita, pode ser definida como uma ciência em defesa intransigente da criatividade, que é a marca característica dos espíritos evoluídos. Ainda assim, mesmo os espíritos mais diferenciados e criativos, como o foram Freud e Melanie Klein, só para citar poucos exemplos, não ficam totalmente imunes à Memória dos Freitas, que é representada por padrões inconscientes de repetição, o que quer dizer que não é possível uma completa individuação e unicidade: o self nunca se diferencia totalmente de suas raízes(2) nem do objeto(3).

Por outro lado, quanto menos dotado de sensibilidade, conhecimento e inteligência, o indivíduo torna-se menos original, mais repetitivo e de pouca ou nenhuma criatividade. Isto se acentua se há doença mental. Quem já foi, como eu, psiquiatra do INAMPS em lugares diferentes do Brasil, como Pernambuco e Rio de janeiro, notou que os pacientes usam a mesma forma de expressão para comunicar suas aflições e, quando conseguimos interpretá-las, lá estão as mesmas fantasias. Nesse caso, a unicidade de cada indivíduo até existe, mas é bem menos acentuada do que se imagina.

E aqui volto a falar da patologia de meu paciente, cuja análise menciono neste ensaio. Como toda doença mental, ela tem muito pouco de única, e se repete, de modo semelhente, em todos os pacientes como ele. Foi isso o que tornou possível fazer da psicanálise uma ciência, e seus experimentos serem passíveis de reprodução em qualquer lugar do mundo.

A razão porque os indivíduos repetem, em qualquer lugar do mundo, as mesmas fantasias, as mesmas formas de expressão das doenças e outros comportamentos, com as mesmas formas de expressão, está no segundo registro de memória, uma descoberta psicanalítica que descrevi em outro trabalho (2).

Sobre a inevitabilidade da repetição, mesmo nos espíritos mais evoluídos e criativos, gostaria de citar um exemplo dado pelo psicanalista Prof. Dr. Antonio Muniz de Rezende, em seu livro "Bion e o futuro da Psicanálise".

Embora o autor estivesse ali desenvolvendo o assunto por um vértice Diferente - e muito rico - o exemplo que dá, a meu ver, ilustra o que estou falando agora. Diz ele: "Gostaria mesmo de contar coisas que me acontecem e poderiam acontecer a qualquer um. Estou lá no meu escritório trabalhando, de repente tenho uma idéia original! E escrevo. Só que dois meses depois, pego um livro, e lá está a mesma idéia, às vezes com as mesmas palavras".(17)

Por último é necessário que eu fale de Popper como crítico daquilo que ele achou que era Psicanálise. Ao tentar falar desta ciência, Popper escorregou feio no próprio método, violando-o. Por exemplo: é dele a asserção que transcrevi linhas acima, afirmando que todo enunciado científico empírico pode ser apresentado de maneira tal que tantos quanto dominem a técnica adequada possam submetê-los a prova. No entanto, sabe-se lá porque, resolve refutar os enunciados psicanalíticos sem ter sequer a vivência de transferência e sem dominar a técnica adequada e, mais ainda, apenas fala acerca de seu sentimento de convicção, no que se refere às suas percepções, sem formular qualquer asserção que contra diga os enunciados psicanalíticos - tudo o que seu método desaconselha.

Quando vamos buscar as "críticas" de Popper à Teoria Psicanalítica, o que observamos é que ele critica fanáticos dogmatistas, cujas asserções toma equivocadamente como sendo da Psicanálise. Como veremos abaixo, Popper se tornou presa fácil do próprio dogmatismo que critica e, como todo dogmático, passa a falar do que não entende, produzindo textos bizarros como este a seguir, citado por Saporiti: (19)

Diz Popper: "Ela (nota minha: a Psicanálise) é uma interessante metafísica psicológica...mas ela nunca foi uma ciência. Devem existir muitos casos exemplares das teorias de Adler e de Freud. Mas o que impede a teoria deles de ser científica, no sentido aqui descrito, é muito simplesmente que essas teorias não excluem nenhum comportamento humano possível. Seja lá o que for que alguém faça é, em princípio, explicável em termos de Freud ou de Adler. .. Esse ponto é muito claro, nem Freud nem Adler fazem nenhuma exclusão quanto aos possíveis comportamentos de alguém, sejam quais forem as circunstâncias exteriores. Quer um homem tenha sacrificado sua vida para salvar uma criança que se afoga (um caso de sublimação), quer ele a mate por deixá-la se afogar (um caso de repressão), isso não poderia ser nem predito nem excluído pela teoria freudiana. A teoria era compatível com tudo que pudesse acontecer, mesmo sem nenhum tratamento especial de imunização". (19)

O que vimos acima foi Popper tentando refutar o que ele imagina serem idéias psicanalíticas com um argumento lógico, o que sua teoria condena. Por outro lado, a onisciência que ele atribui à Teoria Psicanalítica nunca foi reivindicada por Freud. Onde Popper foi buscá-la? Tal onisciência seria sinônimo de inconsciência - o oposto do que a Psicanálise procura como meta. Freud, já em 1914, opunha "neurose narcísica" à "neurose de transferência", afirmando que não podia incluir em suas teorias os pacientes portadores de "psiconeuroses narcísicas" e disse ainda Freud que ele não aceitava e não recomendava que psicanalistas recebessem pacientes com tais perturbações para serem submetidos à Psicanálise. Esta colocação, por si só, já refuta amplamente a proposição de Popper acima exposta de que "essas teorias (nota minha: a Psicanálise) não excluem nenhum comportamento humano possível.

Seja lá o que alguém faça é, em princípio, explicável" (19) Fica também patente, no texto de Popper ora em refutação, sua ignorância sobre os conceitos psicanalíticos, bastando ver a maneira desastrosa como ele define sublimação e repressão.

À medida que Popper procura criticar o dogmatismo (psicanalismo) de "seus amigos que eram admiradores de Freud (sic)"(9) e confunde opiniões e conceitos tão equivocadamente sobre a teoria de Freud, contamina-se, ele mesmo, com o fanatismo dogmático ignorante. Além do mais, Popper mistura Freud, Adler e Marx no mesmo saco! Suas "críticas" dirigem-se a outro tipo de dogmatistas fanáticos, que ele nomina como sendo seus "amigos que eram admiradores de Marx", os quais, pela descrição de pensamento que deles nos faz Popper, sem dúvida, nada tinham de marxistas, tanto quanto o primeiro conjunto de "amigos" nada tinha de psicanalista.

Antes de transcrever o texto popperiano, julgo oportuno ocupar um parágrafo para comentar sobre o fanatismo-dogmático. A Psicanálise, tanto quanto o Marxismo, viu, no decorrer do século XX - sem nenhuma responsabilidade sobre isso, tanto da Teoria Marxista quanto da Psicanalítica – surgirem fanáticos em quatro grandes grupos: Psicanalismo, Anti-Psicanalismo, Esquerdismo e Anti-Marxismo. Sobre o Esquerdismo, Lênin foi obrigado, no começo do século, a escrever seu livro "Esquerdismo, doença infantil do Comunismo"(11).

Sobre as outras três categorias de fanático-dogmatistas ainda falta literatura. É importante que se diga (e, absolutamente, não é este o caso de Popper), que em todos esses quatro grandes grupos se infiltraram muitos oportunistas, procurando levar vantagens, algumas vezes sem qualquer tipo de escrúpulo.

Vejamos agora como Popper abandona, mais uma vez, seu próprio Método Dedutivo de Prova para, em vez de falsear as proposições das teorias que "critica", reprovar o comportamento de seus "amigos" e sair cassando a licença científica de Freud, Marx e Adler (que diga-se de passagem, a teoria de Adler nada tem a ver com a de Freud, exceto na cabeça de Popper).

O texto de Popper que se segue é citado no livro de Saporiti: (19)

"Foi durante o ano de 1919 que comecei a experimentar crescente insatisfação, a propósito de três teorias: a teoria Marxista da História, a Psicanálise e a Psicologia Individual. E comecei a ter dúvidas sobre o estatuto científico em relação ao qual elas tinham pretensões. Meu problema tomou, de início, a seguinte forma: o que será que está errado com o Marxismo, a Psicanálise e a Psicologia Individual? Porque são elas tão diferentes das teorias físicas, da Teoria de Newton e, especialmente, da Teoria da Relatividade?...dentre nós, poucos, naquela época, teriam dito que acreditavam que a Teoria da Gravitação, de Einstein, fosse verdadeira. Esse fato demonstra que aquilo que me preocupava não era uma dúvida relacionada à verdade dessas teorias, mas sim que era algo diferente ... Talvez fosse um ressentimento meu por achar que essas três teorias, muito embora pretendessem ser ciência, apresentavem, na verdade, mais afinidade com os mitos primitivos do que com a ciência. Elas se pareciam mais com a astrologia do que com a astronomia.

Eu descobri, então, que os meus amigos que eram admiradores de Marx, Freud e Adler mostravam-se, todos eles, impressionados com um certo número de pontos que essas teorias tinham em comum e, particularmente, por seu aparente poder explicativo. Essas teorias pareciam ser capazes de explicar praticamente tudo o que pudesse acontecer no campo ao qual elas faziam referência.

Estudar uma delas parecia ter o efeito de uma conversão intelectual ou de uma revelação, abrindo seus olhos para uma verdade nova, escondida daqueles que não tinham sido iniciados. Uma vez, porém, que você tivesse seus olhos abertos, você passaria a ver confirmações dela por toda parte: o mundo estaria repleto de verificações da teoria. Qualquer acontecimento que tivesse lugar iria confirmá-la" (Popper, 1962).

Os "amigos" de Popper, que ora ele critica, investindo-os como porta-vozes do Marxismo e da Psicanálise, ainda cometeram a façanha de se mostrar impressionados com um certo número de pontos que a Psicanálise e o Marxismo tinham em comum! Popper não se deu ao trabalho de explicar que pontos são esses. No entanto, é bom lembrar que Freud nunca concordou com o Marxismo, sendo um anti-comunista histórico, e os clássicos marxistas abominam a Psicanálise, e esta foi proibida terminantemente na União Soviética, e ainda o é em Cuba, na Coréia do Norte, não existe na China, Vietnam e outros paises comunistas.

Em suma, a Teoria do Método Dedutivo de Prova, de Popper, é um grande patrimônio para a humanidade ainda hoje. Pensando isso, neste ensaio, procuro mostrar o legítimo estatuto de Ciência que tem a Psicanálise, exatamente ancorado na teoria popperiana. Isto, contudo, me obriga a denunciar a incursão equivocada de Popper arrogando-se capaz de fazer a crítica e a refutação das teorias marxista e psicanalítica.

Em se tratando de Psicanálise, usando novamente as palavras de Popper, "todo enunciado científico empírico pode ser apresentado de maneira tal que todos quanto dominem a técnica adequada possam submetê-lo a prova" Penso que, para testar empiricamente a Psicanálise, o experimentador – como em qualquer ciência - tem de estar devidamente equipado com a teoria e a técnica adequada. O que, em Psicanálise siginifica, pelo menos, que o experimentador tenha uma formação psicanalítica similar à que temos na International Psychoanalytical Association. Caso contrário, ele não poderá testar nada. Cada macaco só é objetivo no seu galho.

BIBLIOGRAFIA

1. BIEBEL ET AL. (1990) - El mito del liderazgo mesianico. El caudilo en America Latina, in MITOS - INTERPRETACIÓN PSICOANALÍTICA DE MITOS LATINOAMERICANOS, Ed. Grupo de Estudios Psicoanaliticos de Mitos de America Latina, Buenos Aires, pp. 51-60.

1.1 FREITAS, EDNEI - Psicofarmacologia Aplicada à Clínica, 3° Edição, EPUB Ed. (www.epub.com.br), Rio de Janeiro, 2000, págs. de 3 a 70.

2. FREITAS, EDNEI - A Filogênese, Boletim Científico n° 3 do GEPR, Biblioteca da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, senha n° WS 640, também presente no livro citado em 1.1

3. FREITAS, EDNEI - Sobre a Identidade, Ed. Boletim Científico da Sociedade Psicanalítica do Recife, n° 22, págs. de 27 a 53.1995

4. FREITAS, EDNEI - Um caso clínico supervisionado por André Green, Ed. Revista Brasileira de Psicanálise, vol XXIX (4):páginas de 873 a 892, São Paulo, 1995

5. FREUD, SIGMUND - (1907) Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen, E.S.B>, vol IX, páginas de 17 a 95. Ed. IMAGO, Rio de Janeiro, 1976

6. FREUD, SIGMUND - (1914) Sobre o narcisismo, uma introdução,E.S.B., volume XIV páginas 105 e 106, Ed. IMAGO, Rio de Janeiro, 1976

7. FREUD, SIGMUND - (1915) O Inconsciente. Ed. IMAGO, E.S.B., volume XIV Rio de Janeiro, 1976

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9. KLEIN, MELANIE - (1955), Sobre a identificação, in INVEJA E GRATIDÃO E OUTROS TRABALHOS, Ed. IMAGO, páginas de 169 a 204, Rio de Janeiro, 1991

10. LÉVI-STRAUSS, C. - A eficácia simbólica, in ANTROPOLOGIA ESTRUTURAL, Ed. Tempo Brasileiro, páginas de 204 a 224, Rio de Janeiro,1970

11. LÊNIN, V.I. - (1920) Esquerdismo, doença infantil do comunismo, Ed. Símbolo, páginas de 9 a 144, São Paulo, 1978

12. MALLEA, E. - (1937) História de una pasión argentina, Ed. Sudamericana, Buenos Aires, 1984

13. MASSUH, V. - (1982) La Argentina como sentimiento, Ed. Sudamericana, Buenos Aires, 1982

14. POPPER, KARL - (1934) A lógica da pesquisa científica, Ed. Cultrix, páginas de 46 a 49, São Paulo, 1989

15. POPPER, KARL - (1934) A lógica da pesquisa científica, Ed. Cultrix, página 106, São Paulo, 1989

16. POPPER, KARL - (1971) Conhecimento Objetivo, Ed. Itatiaia, páginas de 152 a 158, Belo Horizonte, 1975

17. REZENDE, A.M. - Bion e o futuro da Psicanálise, Ed. Papirus, páginas de 46 a 47, Campinas, 1993

18. SANTOS, J.F. (1996) A jornada argentina de um homem feio, in A INEXISTENTE ARTE DA DECEPÇÃO, Ed. Agir, páginas de 121 a 140, Rio de Janeiro, 1996

19. SAPORITI, E. - A cientificidade da psicanálise. Popper e Peirce, Ed.Escuta, páginas de 66 a 67, São Paulo, 1995'

EDNEI JOSÉ DUTRA DE FREITAS, Ph.D.

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