Ilana Goldstein: Estudo sobre Pierre Bourdieu

Pierre Bourdieu, badalado intelectual francês falecido em janeiro deste ano, lutou, ao longo de seus 71 anos e cerca de 300 publicações, contra todas as formas de dominação e de mascaramento da realidade social.

Deslindou, em A Reprodução, o funcionamento do sistema escolar francês que, ao invés de transformar a sociedade e permitir a ascensão social, apenas ratifica e reproduz as mesmas desigualdades. Em Sobre a Televisão – best-seller na França, tendo vendido 150.000 exemplares no ano de 1996 – questionou o círculo vicioso da informação televisiva: um canal copia o outro, os mesmos convidados estão em todos os canais e a necessidade de audiência impede a inovação.

A Distinção (1979), seu livro talvez mais citado nos meios acadêmicos, tratou dos mecanismos de diferenciação simbólica entre as diversas posições e grupos sociais, mostrando que o desejo de se "distingir" (de quem está em posições inferiores hierarquicamente) reflecte até nas marcas de roupa escolhidas e nos julgamentos estéticos proferidos por alguém.

Em todas as suas análises, uma das originalidades de Bourdieu foi tentar complexificar a ideia marxista de uma sociedade cindida em duas, "classe dominante versus classe dominada". A sociedade é constituída, para Bourdieu, de vários micro-campos, esferas relativamente independentes, cada uma com valores particulares, regras internas e princípios de funcionamento. Todo "campo" - campo da arte, campo intelectual, campo da moda, campo da economia etc. – é permeado por conflitos e concorrência por posições, pois os subgrupos competem pela conquista e pela manutenção de posições "superiores" hierarquicamente – aquelas que têm o poder de determinar o que é "belo" (campo da arte), o que é "chique" (campo da moda) ou o que é "científico" (na Universidade). A vitória nessa batalha simbólica permanente depende da quantidade de "capital" específico do agente dentro daquele campo. Esse capital é o dinheiro apenas no campo econômico, mas reside na fama e na retórica no campo da mídia, é o diploma ou o prestígio no campo da ciência e assim por diante.

Mas há um outro aspecto – nada teórico - a destacar, dentre as contribuições de Bourdieu. Foi em torno dele que surgiu o movimento Raisons d´agir. Tudo começou durante o apoio a uma greve francesa, no final de 1995, quando um grupo de pesquisadores – Pierre Bourdieu, Frédéric Lebaron, Keith Dixon, Loic Wacqant e outros - percebeu a importância de divulgar reflexões e análises que contradissessem os discursos econômicos hegemônicos difundidos diariamente pela televisão, alardeadores da irreversibilidade da globalização, das supostas "vantagens" da supressão de direitos trabalhistas e do triunfo inevitável do neo-liberalismo. O projeto de reforma da previdência na França, que gerara os protestos e greves de 1995, foi contido com sucesso, dando ânimo ao referido círculo de acadêmicos.

O mote do grupo Raisons d´agir – atualmente em fase de recuperação, após a morte de Bourdieu - é que, se o capital, o desemprego e a precarização social se globalizam, então intelectuais, sindicatos e todos os movimentos sociais também podem - e devem - se organizar internacionalmente, colocando limites ao modelo neoliberal. A intenção do grupo é criar um espaço público, de encontro e discussão, para sem-teto, imigrantes ilegais, desempregados, sindicatos, ecologistas, intelectuais, artistas e todos que queiram discutir alternativas às políticas neo-liberais, a fim de evitar que a Europa unificada signifique um "retorno ao século XIX".

Portanto, para além da contribuição sociológica, a polêmica e a admiração que rondam o nome de Pierre Bourdieu estão ligados à sua atuação pública e à sua atitude engajada nos últimos anos. Contra-Fogo, por exemplo, publicado em 1999, tem o formato de um panfleto político: pequeno, retangular, página estreita, fácil de ler. Naquele que talvez seja o "artigo-tese" do livro, escreve o sociólogo-militante: "Seria preciso que todas as forças sociais críticas insistissem na incorporação, aos cálculos econômicos, dos custos sociais das decisões econômicas. O que custará a longo prazo em termos de demissões, sofrimentos, doenças, suicídios (...)" (Contre-feux:45). Neste livrinho, Bourdieu analisa as estratégias retóricas do "discurso neoliberal", que se apóia, não por acaso, em expressões de liberdade e relaxamento. O autor denuncia que a imprensa francesa costuma substituir o termo "patronato" por "forças vivas da nação", que ao invés de "demissão", fala-se em "enxugamento" - dando a idéia de algo saudável. O termo "flexibilização", por sua vez, esconderia o sonho de qualquer empregador: trabalho noturno, trabalho nos fins-de-semana, jornadas irregulares, férias não-remuneradas, a multiplicação de empregos precários e mal-pagos.

É por tudo isso que, em maio do ano passado, o diretor Pierre Carles lançou um filme intitulado "A Sociologia é um esporte de combate", que até hoje está em cartaz em algumas salas de Paris. O documentário de 2 horas e meia se propõe a mostrar ao grande público o dia-a-dia do "sociólogo-combatente", acompanhando passo-a-passo seu cotidiano: reuniões com estudantes, tardes de autógrafo, entrevistas na rádio, e, principalmente, participação em greves e debates com jovens marginalizados. Embora haja os que ataquem a sua rigidez teórica, a linguagem hermética de seus textos, seu ego exaltado (e o séquito de bajuladores que vivia à sua sombra), Pierre Bourdieu nos deixa um belo exemplo de coerência entre vida e obra e de aproximação entre produção intelectual e actuação política.

ILANA SELTZER GOLDSTEIN

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