Eduardo Mendoza lança 'A assombrosa viagem de Pompônio Flato'

Adelto Gonçalves* e Alvaro Costa e Silva, JB Online

RIO - Em 1975, três meses antes da morte do generalíssimo Francisco Franco, a Espanha, entre satisfeita e perplexa, descobria um romance que, por sua originalidade, contrastava com tudo o que se escrevia no país à época. Chamava-se La verdad sobre el caso Savolta, até hoje não traduzido no Brasil. E seu autor, Eduardo Mendoza, passava a ocupar um lugar no altar reservado às promessas literárias.

Era o momento em que a literatura espanhola, sem medo de reconhecer a influência dos grandes escritores do boom latino-americano, como Gabriel García Márquez , Julio Cortázar e Mario Vargas Llosa, reciclava-se e passava a apresentar um produto novo, diferente do que se fazia desde o fim da Guerra Civil .

Trinta e cinco anos depois, Mendoza não é mais uma promessa. É um autor consagrado. No total, já deu à luz 17 títulos, tendo vendido cerca de um milhão e meio de exemplares. Só o recente A assombrosa viagem Pompônio Flato, que o autor define como uma “novela de humor” ou “de avión”, passou dos 500 mil exemplares. Como seus livros “vendem como churros” – para repetir aqui uma típica frase mendozina – ele vive de direitos autorais há três décadas, privilégio reservado a poucos, mesmo na Espanha.

São números que comprovam uma ascensão digna – guardadas as devidas distâncias – de Onofre Bouvila, personagem principal de A cidade dos prodígios, que sai da miséria para se tornar um dos chamados próceres da Barcelona modernista que, ao fim do século 19, inventava-se a si mesma para se mostrar ao mundo como cidade cosmopolita.

Hoje, além de indiscutível ponto de referência na literatura espanhola, Mendoza, mesmo a contragosto, é leitura obrigatória em programas escolares. Seus romances El misterio de la cripta embrujada (1979) e El laberinto de las aceitunas (1982), embora não alcancem a transcendência de La verdad sobre el caso Savolta e A cidade dos prodígios (1986), são igualmente renovadores na forma, embora, a exemplo de ambos, resgatem a tradição picaresca e até uma esquecida fórmula cervantina – a de utilizar como paródia uma linguagem anterior à de sua época.

Além de deixar evidente, a partir de seus próprios títulos, a influência do gênero policial – mais especificamente, o romance negro americano – seus livros resgatam não só a tradição do romance popular como a do romance gótico, ficção romântica que dominou a literatura inglesa durante o fim do século 18 e início do 19, geralmente ambientada em cenário lúgubre e desolado, no qual se desenrolam enredos de mistério e terror. Naquelas duas obras, é um detetive louco quem “escreve” os livros, não no momento em que ocorrem as aventuras, mas na hora em que são contadas.

Para tanto, Mendoza recupera um personagem bem espanhol, o pícaro, uma espécie de Lazarillo de Tormes, romance de autor anônimo. O pícaro de Mendoza repete um truque de Miguel de Cervantes que, por sua vez, colocou Dom Quixote a falar um idioma que já não era o de seu tempo, mas um castelhano primitivo, reconstruído com erros e tonterías, o que, hoje, por causa da distância, é difícil de perceber. Assim, o detetive louco de Mendoza escreve um espanhol de paródia, pois procura falar de uma maneira elegante e culta, mas que soa ridícula porque já fora do seu tempo.

Foi esse tipo de literatura descompromissada que tornou Mendoza popular entre os jovens leitores, a ponto de suas noites de autógrafos provocarem filas quilométricas. Desde então, ele investiu cada vez mais nesse tipo de romance descontraído. É o caso de Sin notícias de Gurb, extraterrestre que se perde na Barcelona pré-olímpica sem deixar vínculos com seus companheiros e que, para sobreviver, adota a forma humana, a da cantora Marta Sánchez. Só por aqui já se pode imaginar a série de confusões em que se mete o alienígena.

Antes disso, Mendoza havia publicado, em 1989, La isla inaudita, romance bem diferente dos demais. Repetiu a experiência em El año del dilúvio (1992), em que confirma essa preocupação de se renovar, ao reconstituir um episódio vivido nos anos 60 num povoado catalão entre um proprietário rural e chefe político falangista e uma religiosa “cheia de dúvidas e boas intenções”. Dos anos 90 é também Una comedia ligera (1996), em que reproduz a vivência que teve no ambiente teatral, ao imaginar um famoso comediógrafo, Carlos Prullàs, cujas peças começam a ficar fora de moda, a viver as contrariedades de quem entra no outono da vida. É de lembrar que desde 1990 Mendoza vive com a atriz Rosa Novell.

Já em La aventura del tocador de señoras (2001), o autor ressuscita o detetive louco de El misterio de la cripta embrujada, tirando-o de um manicômio para começar uma nova vida como cabeleireiro no moderno bairro barcelonês de Raval, até que um crime o obriga a retomar a velha mania das investigações improvisadas para escapar de uma acusação que o dava como assassino. Ainda em 2001, Mendoza publicou Baroja, la contradicción, ensaio biográfico em que procura entender o que representa Pio Baroja na narrativa espanhola. E, em El último trayecto de Horacio Dos, volta a exercitar a “novela de humor”, além de repetir o tema das viagens espaciais.

Nascido em Barcelona, filho de um advogado e também advogado por formação, Mendoza viveu 10 anos em Nova York (de 1972 a 1982), época em que trabalhou como tradutor da ONU. Seis meses antes de retornar a Barcelona, foi requisitado pelo primeiro-ministro Felipe González para que o assistisse durante viagem que faria aos EUA para se encontrar com o presidente Ronald Reagan. O que os dois líderes discutiram tête-à-tête no Salão Oval da Casa Branca só se vai saber quando os arquivos daqueles anos forem abertos ao público. Até porque o próprio tradutor/intérprete, embora hoje afastado do ofício, faz questão de manter o sigilo profissional.

Mas a verdade é que aqueles anos de incerteza para o mundo capitalista – em que os regimes comunistas do Leste Europeu ainda pareciam propensos à vida longa – acabaram por dar a Mendoza o tema de um novo romance, Mauricio o las elecciones primarias (2006). É o que se pode ler em Mundo Mendoza, excelente perfil biográfico escrito pelo jornalista Llàtzer Moix.

Em 2007 Mendoza publicou Quién se acuerda de Armando Palacio Valdés em que, à maneira de Jorge Luis Borges em Prólogos com um prólogo de prólogos , reuniu as 24 apresentações que escreveu para os títulos que escolheu para a coleção Maestros Modernos Hispánicos, da editora Circulo de Lectores. Depois de A assombrosa viagem de Pompônio Flato, o autor catalão já publicou Tres vidas de santos, em que reuniu relatos escritos em momentos distintos e muito separados no tempo. Apesar do título, o livro nada tem a ver com hagiografia ou a “vida dos santos” da Igreja. É mais uma das bromas mendozinas.

Escreveu em catalão três obras de teatro: Restauració, que estreou em 1990 e ganhou tradução em castelhano (Restauración) em 1991; Greus qüestions, colocada em cena em circuito alternativo em 2004; e Glòria, que ainda não foi levada à cena. É ainda autor de dois livros sobre cidades: e Barcelona modernista , escrito em parceria com sua irmã Cristina, historiadora, um livro-guia indispensável para quem quiser conhecer a capital catalã do fim do século 19 e as invenções arquitetônicas um tanto estranhas dos magos da art nouveau Antoní Gaudí e Lluís Domènech i Montaner .

Nas águas portentosas de Pompônio

Por Alvaro Costa e Silva

Como bem sabe Pompônio Flato, de todas as maneiras de purificar o corpo que o destino nos envia, a diarréia é a mais pertinaz e diligente. Ainda mais se estamos no século 1 da nossa era, viajando pelos confins do Império Romano em busca de águas de efeitos portentosos. A sorte (ou falta dela) leva o personagem a Nazaré, onde está prestes a ser crucificado um carpinteiro, cujo filho, um menino singular, pede-lhe ajuda. Paródia tanto do romance histórico quanto do policial e da hagiografia, A assombrosa viagem de Pompônio Flato (Planeta, 208 páginas, R$ 46) é mais uma prova do talento e da vitalidade de Eduardo Mendoza, autor catalão que conversou com o Ideias sobre o humor na literatura, Roma Antiga e os Jogos Olímpicos do Rio, em 2014.

Com A assombrosa viagem de Pompônio Flato, o senhor satiriza um tipo de livro em moda atualmente, no qual qualquer pessoa pode se transformar em detetive. Por que então não pôr logo o menino Jesus para investigar um crime?

Foi o meu ponto de partida. E como sempre amei o mundo clássico – Grécia, Roma, a Terra Santa – foi uma viagem divertida para lugares bem conhecidos.

Evitar o anacronismo foi uma preocupação ao escrever a novela?

Completamente. Odeio a simples piada de botar coisas do presente nos tempos antigos. Muitos filmes e quadrinhos usam esse recurso. Fui cuidadoso para evitar isso. Tudo o que acontece no romance tem referência em textos antigos verídicos.

O senhor reconhece que o livro tem três referências: os filmes A vida de Brian, de Monty Python, e Shakespeare apaixonado, com roteiro de Tom Stoppard; e os quadrinhos de Asterix. Em que medida foi importante cada um deles?

Conheci o Monthy Python na TV, anos 70, quando começou, e era fascinante. Era um humor direcionado para pessoas cultas e inteligentes. Por outro lado, nunca gostei de Asterix. É chauvinista, autocomplacente e voltado para o leitor simplório. Shakespeare apaixonado é uma doce comédia romântica que se salva pelo engenho de Tom Stoppard, a quem admiro. Os três trabalhos estiveram presentes enquanto escrevia Pompônio, e por razões distintas. Eu não queria imitar ou ir contra eles, mas eu sabia que jogávamos no mesmo time.

O humor é uma característica da sua obra. A literatura há de ser séria para ter valor?

Deve ser séria para ser valorizada pelo universo acadêmico, e portanto ser reconhecida oficialmente. Porque o humor é difícil de analisar. Ele se dissolve quando você tenta explicá-lo e foge das metodologias. Os acadêmicos apreciam o humor secretamente e ignoram-no em público.

O que mais lhe atrai na cultura romana antiga? De que escritores o senhor mais gosta? Gosta dos filmes da velha Hollywood? E de séries de televisão mais recentes, como Roma?

Tudo a respeito da Roma Antiga me atrai. Eu precisaria de um livro inteiro para enumerar. Digamos que Roma foi um grande império baseado numa idéia filosófica de mundo e numa concepção civilizada de sociedade. Admiro os grandes historiadores romanos – Tácito, Dion Cássio – mas também Cícero, Sêneca, Marco Aurélio. Eles deveriam ser ensinados no ensino básico, no lugar da informática. Sim, gosto dos clássicos de Hollywood; são ridículos, mas nos anos dourados Hollywood tinha uma noção de desproporção e grandiosidade mais adequada às lendárias glórias romanas do que os filmes mais novos - mais realísticos e menos efetivos. Todavia, os primeiros capítulos da série Roma foram bem feitos e divertidos.

Pompônio Flato é apenas o segundo de seus livros lançados no Brasil. O primeiro foi A cidade dos prodígios, nos distantes anos 80. Que outros títulos o senhor gostaria de ver traduzidos?

Ser lido por estrangeiros é o maior teste dos escritores. Todos querem ser traduzidos. Mas nem todos os livros viajam bem. Quanto à tradução de meus livros, deixo a resposta com as editoras brasileiras.

O senhor conhece Machado de Assis? De certa maneira ele é um escritor cervantino, como o senhor.

Sim, ele é bem cervantino. Mas também um excelente escritor dentro de seus próprios méritos. Conheço poucos escritores brasileiros, infelizmente.

Sabemos que o senhor é um grande viajante. Quando virá ao Brasil e, em especial, ao Rio?

Estive no Rio de Janeiro já faz um tempo. Não quero abusar do lugar comum, mas achei uma cidade linda, muito elegante, cosmopolita e viva em todos os aspectos. O único problema é que é muito longe de Barcelona, e não viajo com tanta facilidade quanto antes.

Estamos os cariocas nos preparando para sediar as Olimpíadas de 2016. E muitos analistas comparam a transformação que haverá na cidade à que houve em Barcelona para os Jogos de 1992. Que conselhos o senhor pode nos dar para enfrentar o desafio?

Conselho, eu? Bom, não acho que possa dar algum. Barcelona teve sucesso por causa das pessoas. A cidade inteira era uma eterna festa, aberta 25 horas por dia, e todos era gentis uns com os outros. Ninguém tentou lucrar enganando as pessoas. Turistas são indefesos mas não idiotas. Pelo que sei, os cariocas sabem receber muito bem, e não haverá mistério.

* Adelto Gonçalves é doutor em letras e mestre em língua espanhola e literaturas espanhola e hispanoamericana pela USP, com dissertação de mestrado sobre a obra de Eduardo Mendoza, defendida em 1992.

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