Conto: Vermelhôôô...

por Fernando Soares Campos

Baba, Ouriço e Mancha conversavam. Já passava das duas da matina. A temperatura naquele alojamento provavelmente atingira o pico das madrugadas calorentas daquele verão. Os pernilongos faziam a festa na pele dos outros adolescentes que dormiam amontoados, disputando pequenos espaços de um ambiente superlotado. O forte odor de suor misturava-se ao mau cheiro dos dejetos que transbordavam das latrinas.


Baba, 15 anos de idade, Ouriço, também 15, e Mancha, que já completara 16, são filhos de Ninguém, Não-Se-Sabe e Já-Morreu - não respectivamente, pois qualquer dessas "paternidades" pode ser atribuída a qual dos três se apresente, sem distinção. Na verdade, Baba e Mancha são irmãos pela sorte em comum, quer dizer, pelo mesmo azar, o de terem nascido sob o estigma dos dois pês: pretos e pobres. Ouriço, apesar de branco, é da família pela segunda via.


Quanto aos apelidos, Baba não sabe ao certo qual a origem do seu; diz que o chamam assim desde muito pequeno, no orfanato onde viveu até os doze anos. "Lá até as freiras me chamavam de Baba", afirma. Ouriço é assim conhecido devido ao seu cabelo tipo escovinha, eriçado. No caso do Mancha, pode-se facilmente identificar a origem do seu apelido: uma mancha cutânea, avermelhada, congênita, cobre parte do seu pescoço e do lado esquerdo do rosto; parece uma inflamação por queimadura com água fervente. Quando os colegas lhe perguntam: - "O que foi isso?", a resposta depende do seu estado de espírito, mas quase sempre responde: "Foi um chupão da tua irmã".


Além do calor, àquela hora estavam famintos. O jantar (uma sopa de legumes e um pãozinho francês) fora servido às seis da tarde; desde então, nem água.


Trocavam experiências. Falavam sobre suas perigosas aventuras no submundo do tráfico de drogas, onde Baba e Ouriço atuam. Estes foram presos quando vendiam sacolés de cocaína e trouxinhas de maconha na entrada da favela onde "plantam", conforme designam suas permanências nas bocas do narcotráfico.

 São vapores, o que na gíria dos traficantes é o mesmo que aviões, pequenos distribuidores de droga; mas espalham que são soldados, que guarnecem a boca com fuzis AR-15, G-3, 762 e outras armas de grosso calibre, sobre as quais falam com uma certa propriedade, citando peças e descrevendo o poder de fogo de cada uma, demonstrando conhecimentos a respeito da matéria. Dá prestígio. E no Educandário Padre Severiano - o EPS - onde agora se encontram cumprindo medidas sócio-educativas, judicialmente prescritas, é sempre bom ter prestígio entre os colegas. Pode fazer a diferença entre os que sofrem mais e os que conseguem sobreviver em condições menos sufocantes.


Mancha está em outra: atua no ramo de acessórios e componentes automotivos. É um exímio depenador de carro. Conhece todas as marcas de CD player existentes na praça. Garante que só cata os mais sofisticados. Gaba-se de ter depenado o carro de uma famosa apresentadora de televisão. Sempre que fala sobre este ganho, diz: "Pô! quando eu era bebel, queria ir no programa dela, mas nunca consegui. Me vinguei!"

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http://assazatroz.blogspot.com/2007/07/vermelh.html

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