Revolução na América Latina: bicicleta e a humanização das cidades

Em toda a América Latina, a bicicleta é usada por homens e mulheres. Mas no Uruguai são mais mulheres

De repente, no meio da manhã e com um sol um pouco inclemente, um carro 4×4 bege brilhante, para sem dúvidas existenciais sobre uma ciclovia localizada em San Isidro, o bairro mais rico de Lima e de todo o Peru. Minha bicic toleta honrada, verde e humilde, acaba bloqueada quase até as últimas consequências por uma toupeira motorizada e, aparentemente, cega.

Por Ramiro Escobar La Cruz*

Foto: Ernesto Benavides

- Senhor, não está vendo que é um uma ciclovia?

- Este... desculpe, mas estou esperando que minha esposa saia da loja.

-Não pode parar aqui.

- Eu sei, mas é só um minutinho...

Um membro da Serenazgo (serviço civil municipal, desarmado, que colabora aqui com a segurança pública) está perto e vem em meu auxílio. Convence o motorista a sair, quando outro veículo - neste caso, um táxi vermelho também toma de assalto o espaço destinado, por lei, aos ciclistas. Finalmente, o guarda se rende: "Nunca dão bola".

A última pedalada

Cenas semelhantes, ou ainda piores, podem ser registradas em vários países da América Latina e do Caribe. Em Assunção, a capital do Paraguai, no dia 5 de janeiro, dois ciclistas foram atacados com paus e pedras, perdendo seu precioso veículo. No México, a cada ano morrem cerca de 200 ciclistas, especialmente na tumultuada Cidade do México.

O problema nesta capital tornou-se tão tragicamente habitual que Bicitekas, um movimento de cidadãos que promove o ciclismo e que registra estes incidentes, costuma colocar oferendas pelos companheiros mortos no lendário Dia dos Mortos que é comemorado em todo o país. As coroas colocadas no chão, exatamente em forma de bicicletas, lembram a última pedalada. No Brasil, os ativistas colocam as ghost-bikes, bicicletas pintadas de branco, no local onde um ciclista perdeu a vida.

No mesmo México, a cidade de Guadalajara registrou, no final de 2015, seis mortos a mais que no ano passado: 27 ciclistas caídos contra 21 em 2014. Em Medellín, Colômbia, os ciclistas mortos em 2014 foram 12, de acordo com a Secretaria de Mobilidade desta cidade. A maioria deles, incrivelmente, em ciclovias (que naquele país são chamados de ciclorutas).

Em Lima, onde as viagens de bicicleta não são tão comuns, os martírios ciclísticos não foram tão frequentes, mas podem aumentar se ficarmos calados frente ao ataque motorizado, como o que tive que enfrentar em San Isidro. Em maio de 2015, dois ciclistas morreram atropelados quando viajavam em duas rodas. Uma das vítimas, Gladys Pareja, também era bombeira.

Foi atropelada primeiro por um carro particular, que fugiu, e depois um ônibus de transporte público passou por cima dela. Os bombeiros nem sequer tinham dinheiro para transferir o corpo da vítima para Tingo María, sua terra natal, localizada na selva peruana. A vida do ciclista urbano na América Latina é, resumindo, uma emergência permanente, a luta contra o vento e os elementos.

Motorizados, claro. De acordo com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em um relatório sobre Cicloinclusão divulgado no ano passado, em 50% dos acidentes viários na região estão envolvidos motociclistas, pedestres e ciclistas. Estes últimos não contribuem com a maior quantidade de vítimas, que estão andando de carro ou de moto. Mas são (somos) talvez os mais ignorados.

Quase uma praga

Eu me iludo. Há alguns meses atrás, uma organização regional com sede em Lima me convida, como jornalista, a uma reunião sobre a mudança climática. Feliz, vou de bicicleta, convencido de que nas alturas da política, até mesmo internacional, já está instalada a ideia de que essa humilde criação do barão alemão Karl Freiherr von Drais, no início do século 19, estava se impondo.

- Bom dia, venho a uma conferência sobre o aquecimento global.

- Sinto muito, mas você não pode entrar de bicicleta, por aqui entram muitos diplomatas...

O problema terminou através da intermediação do próprio secretário-geral da organização. Meses antes, ocorreu um episódio semelhante na sede de um organismo mundial, em outra reunião sobre o clima. Depois, aconteceu a mesma coisa em uma universidade, que tem latas para separação de lixo, mas - tudo indica - pouca capacidade para distinguir o que é sustentável.

Praticamente qualquer ciclista na região poderia fazer relatos análogos. Santiago Mariani, um cientista político argentino que vive em Lima, e também é um ciclista sofrido e militante, ensaia uma explicação para tal negligência generalizada. "No Peru - afirma - o uso da bicicleta é desaprovado porque é usado pela classe baixa, que não pode ter um veículo, como meio de transporte".

É isso mesmo: se você quiser manter o status, se quiser ser um latino-americano orgulhoso de sua economia supostamente próspera nestes tempos, não pode andar de bicicleta, tem que ter um carro. As cidades, por isso, são planejadas pensando em faixas, vias expressas, viadutos, trevos. Tudo é feito para aumentar geometricamente, os veículos automóveis.

O BID volta a entrar em ação e propõe o seguinte: "Para que as ciclovias urbanas sejam uma opção viável, devem fazer uma rede com conexões extensas, tanto entre si como com o transporte público". Em outras palavras, a integração é o caminho. Se a bicicleta quer conquistar seu espaço, com força e direito, é preciso ser parte do conjunto da rede viária.

Não ser uma exceção. De acordo com um documento intitulado Biciciudades, desenvolvido por pesquisadores da American University e membros da Iniciativa por Cidades Emergentes e Sustentáveis (ICES, promovidos também pelo BID), para que isso funcione - em cidades como São Paulo, Santiago e México - as autoridades começaram a restringir o uso de carros.

Duas ou quatro rodas?

Em Bogotá também se faz apelando ao número da placa, como em São Paulo. Mas, claro, há resistências. Na Cidade do México, os afetados optaram por comprar mais carros para fugir da restrição e em nome, supostamente, da liberdade. No auge do vandalismo motorizado, uns comandos anônimos atacaram uma cicloestação no bairro Benito Juárez da megacidade.

Colocaram cartazes ameaçadores em defesa dos estacionamentos para carros e até encheram de excremento parte do local destinado aos ciclistas. Aconteceu na covarde madrugada do dia 17 de fevereiro de 2015, no calor de um debate que lentamente vai se instalado na atmosfera pública e tenta responder à questão sobre o que podemos fazer com nossas cidades incontroláveis.

Enchê-las de mais carros exigindo mais faixas e avenidas? O BID, o Banco Mundial, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e alguns poucos municípios latino-americanos chegaram à conclusão de que não, de que a única salvação para a megalópole enlouquecida é fazer da intermodalidade no transporte a última esperança.

Por esse caminho, a humilde bicicleta tem um papel central, apesar das reações febris de alguns doidos pelo volante. Atualmente, em toda a região existem 2.513 quilômetros de ciclovias, de acordo com o BID. A rede mais longa está em Bogotá, que tem 392 km, embora algumas partes precisem ser rastreadas de forma quase arqueológica.

Datam do primeiro mandato como prefeito de Antas Mockus (1995-1998), que foi um grande promotor da bicicleta, saga que continuaram outros prefeitos como Enrique Peñalosa. Cruzam bairros perigosos, como parte da localidade de Santa Fé, e por áreas mais acomodadas, algo que este jornalista pôde comprovar graças a um passeio de bicicleta por esta cidade andina.

A segunda maior rede de ciclovia está no Rio de Janeiro, onde são 307 quilômetros, que transportam diariamente 3,2% da população (em Bogotá são 5%). Mas a cidade que, em toda a região, recebe os aplausos ciclistas é Rosario, a terceira mais populosa da Argentina, onde 5,3% de seus quase um milhão de pessoas anda em duas rodas.

Nem um pedal para trás

Não é muito, comparado com Amsterdã, onde 40% da população se move no modesto, mas dedicado e limpo veículo, marcando uma tendência que, lentamente, pode estar aumentando. Especialmente considerando que as cidades latino-americanas não aguentam mais a doença dos carros que invadem faixas, cidades e até ciclovias.

De acordo com o BID, para que aconteça a cicloinclusão, é preciso entrar em conjunção quatro fatores, que são como as peças para que o ciclismo urbano se mobilize: a infraestrutura e os serviços, os aspectos normativos e a regulação, a participação dos cidadãos e a operação (gestão e controle da intermodalidade). Nenhum deles pode, digamos, parar de pedalar.

O primeiro, é claro, refere-se a criar faixas especiais para bicicletas. Sejam separadas (marcadas com tinta sobre uma faixa ou separadores físicos), compartilhadas com carros ou especiais (as que são apenas para bicicletas). Mas também postos de serviço, reparação e assistência, como as que foram destruídas por alguns fanáticos na Cidade do México.

No aspecto normativo, é preciso uma legislação clara para o contingente ciclista, que os usuários devem conhecer, para não cometerem - eles também - atrocidades. No Rio de Janeiro, por exemplo, não é permitido levar outra pessoa no modesto veículo de duas rodas. A ideia fundamental, no entanto, é que a bicicleta não esteja em desvantagem tão evidente.

Isto é, que fique claro que não se pode invadir impunemente ciclovias, ou esmagar sem piedade qualquer ciclista, porque está perturbando o trânsito. Laura Bahamón, uma ativista do ciclismo de Bogotá, argumenta que só o fator da diferença de velocidade entre um carro e uma bicicleta já constitui um problema e aumenta em muito o risco de acidentes.

De fato, a participação é essencial para que tudo isso rode. Além do mais, sem a ajuda de movimentos de ciclistas urbanos quase heroicos provavelmente nada disto seria discutido. Gente em bici do Uruguai, Bicitekas do México, Cicloaxiondo Peru, Ciclaramanga de Bucaramanga (Colômbia), Ciclocidade, no Brasil, entre outros grupos, estão na batalha.

O futuro que roda

Não é exagero argumentar que os ciclistas estão em uma luta. Cotidiana, incompreendida, difícil. Até com vítimas. Marc Augé, um antropólogo francês devoto da bicicleta, diz que "o ciclismo é um humanismo". Transforma as cidades tornando-as mais respiráveis, as pessoas devolvendo seu sentido de jogo, as sociedades colocando-as mais perto da realidade.

Porque, no final do percurso, tudo isso é feito para beneficiar o corpo, a mente e o ecossistema mundial, não só na América Latina. Em Lima, lugar das minhas lutas, apenas 0,3% das viagens diárias são feitas de bicicleta. É uma das porcentagens mais baixas da região, embora a cidade seja plana, chova muito pouco e não custa muito ter uma.

- Senhor, parou em uma ciclovia.

- Só um minutinho...

Desta vez somos três ciclistas que questionamos o invasor. Não estamos sozinhos e sabemos que, talvez, a única revolução que a América Latina pode se permitir hoje é a da bicicleta.

*Ramiro Escobar La Cruz é jornalista

Fonte: El Pais

 

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