Crônicas de uma Vitória Popular

Estamos enviando o primeiro informe escrito depois do resultado do referendo da Venezuela, escrito pelos companheiros do PSOL :Luciana Genro e Roberto Robaina, que estavam em Caracas acompanhando o Processo do Referendo.

Na madrugada do dia 16 começou nas ruas de Caracas e de toda a Venezuela a festa da vitória do 'NO' no referendo revogatório.

Foi uma festa popular. Nos dirigimos de carro para o bairro de El Valle, um dos mais combativos territórios bolivarianos. Trata-se de um dos típicos 'cerros de Caracas', nossas favelas brasileiras, no caso com uma diferença substancial, qualitativa: nos cerros da Venezuela há uma forte consciência de massas antiimperialista, uma impressionante auto-organização popular e uma decisão amplamente majoritária de defender Chavez e derrotar os golpistas, as oligarquias, os grandes empresários e seus agentes políticos.

Depois de muitas horas na fila de votação, milhares de trabalhadores mantinham sua disposição de seguir nas ruas. Foram horas e horas de espera, em filas que começaram a se formar às 04 horas de manhã do dia 15, domingo. O povo foi conclamado a despertar às 3 horas da manhã pelo comando Maisanta e pelo presidente Hugo Chavez e, precisamente, às 03 da manhã, em toda a Venezuela, se escutou o toque das cornetas - sim, as cornetas tocaram em todo o país - e junto com elas fogos de artificio anunciavam o dia da batalha de Santa Ines.

Os famosos 'cerros de Caracas', sem dúvida, foram sua vanguarda. Centenas de milhares de ativistas da chamada revolução bolivarina já estavam de pé. O povo respondeu imediatamente e antes das 06 da manhã, horário inicial da votação oficial, filas se formavam em todos os locais de votação. O Exército, normalmente visto nas ruas das cidades latino-americanas em momentos de golpe, reprimindo e assassinando o povo, estava a postos nos locais de votação para garantir que a vontade popular se expressasse com tranqüilidade nas urnas. A burocracia no processo de votação (o eleitor tinha que assinar, colocar a digital no papel, no computador e só depois votar na máquina eletrônica e aguardar a impressão do voto), mas sobretudo a alta presença popular, superior a todos os outros pleitos da história do país e a baixa abstenção, se comparada com a tradição de abstenção nos pleitos da América Latina e da Venezuela em particular, explicam as gigantescas filas. Mas a paciência popular não teve limite. Em média, as pessoas esperavam mais de 7 horas nas filas. Mais do que a paciência, o destaque maior deve ser dado à vontade impressionante de participar. Tal vontade e afluência massiva fez com que todos os observadores internacionais tirassem o chapéu. Havia centenas deles.

Mesmo o Centro Carter e a OEA não puderam desconsiderar a jornada heróica. Por volta das 16 horas, em entrevista coletiva, tanto Jimmy Carter quanto César Gavirria reconheciam que se tratava de um impressionante esforço, uma jornada exitosa.

Reconheciam o trabalho correto do Conselho Nacional Eleitoral e a eficácia do plano república das Forças Armadas para garantir o pleito. Tais declarações já eram os primeiros e claros sinais, pelo menos para nós, de que estava se derrotando os planos da oposição de deslegitimar o resultado, de não reconhecer a vitória do NO, que nestas alturas já se desenhava, pelo menos no otimismo evidente de seus militantes e simpatizantes mais ativos. Com suas declarações tanto Carter, quanto Gaviria tentavam se preservar como supostos árbitros do grave conflito de classes que atravessa este país caribenho. Vale dizer que, embora o Centro Carter tenha se fortalecido aos olhos de uma parte do povo deste país, a ampla vanguarda de dezenas de milhares de ativistas políticos e sociais e partes consideráveis do próprio povo não depositam nenhuma confiança neste representante políticos direto dos interesses da burguesia norte americana.

Às 04 da manhã, o CNE anunciou o resultado: 58, 25 pelo não e 41,74 pelo sim. 4.991.483 votos, contra 3.576.517. Podia-se perceber o perfil dos votantes de cada lado, antes mesmo do resultado: apenas observando a cor da pele, as roupas que usavam e o lugar em que vivem. A maioria dos brancos, bem vestidos e que vivem nos bairros abastados da classe média alta, foram os furiosos defensores do SIM. Eles dizem que Chavez dividiu a Venezuela. Os de pele parda, pobres dos 'cerros de Caracas' respondem: a Venezuela sempre esteve dividida. A diferença é que, agora, os que nunca tiveram voz decidiram se fazer ouvir, e encontraram em Chavez o porta voz das suas angústias, o comandante da sua luta pela libertação.

Dois dos cinco integrantes do CNE, ligados à oposição desconheceram o resultado e encaminharam supostas denúncias de fraude e todos os tipos de manobras para apuração do centro Carter e de Gaviria, uma clara tentativa de reduzir o contundente triunfo do NO. O Centro Carter e a OEA reconheceram, às 13h45min do dia 16, e anunciaram em coletiva de imprensa seu respaldo ao resultado divulgado pelo conselho Nacional Eleitoral algumas horas antes. Tal respaldo responde não apenas à evidente massividade e legitimidade do processo eleitoral. Nem sempre o Centro Carter, e muito menos a OEA, resolvem respaldar processos legítimos. Ocorre que, desta vez, a correlação de forças não está para jogar lenha na fogueira.

A situação do imperialismo norte-americano no Iraque, tendo que enfrentar uma heróica resistência armada - além das pressões altistas dos preços do petróleo - não permitiram ao imperialismo apostar numa linha de enfrentamento direto imediato com a vontade popular expressa nas urnas e na disposição do povo de tomar as ruas para defender seus interesses.

De qualquer forma, a oposição, por trás de sua política de tentar deslegitimar o resultado da votação, tem o objetivo não tanto de anular a votação - já sabem que isso não é possível - mas de deter o processo revolucionário, buscando não apenas manter seu domínio econômico, expresso, por exemplo, no controle privado dos meios de comunicação de massas - com exceção do canal 08 do governo - e das telecomunicações do país, também em mãos de monopólios privados, mas também de garantir um espaço político, evitando, no mínimo, uma intensificação da ofensiva de massas contra suas representações e, como máximo, atingir um governo de união nacional.

Mas pelo menos o propósito de união nacional, do ponto de vista político, está totalmente fora de contexto. Não está descartada, porém, a linha política da conciliação. Ao contrário. É o objetivo de Carter e da OEA, cujo interesse claro é ser fiador da mesma. É impossível saber de antemão como se desdobra esta política. Embora Chavez defenda a conciliação com setores da oposição e sequer esteja cogitando expropriar os grupos capitalistas, tampouco cogita em jogar fora sua contundente vitória. O governo se fortaleceu. Sabe, além disso, escutar a voz das ruas. Sabe que as ruas exigem continuar as mudanças, aprofundá-las. Apesar da oposição acusar Chavez de antidemocrático, é evidente na Venezuela que Chavez tem sido o único que pode conter o profundo conflito de classes atual para que não se desdobre num confronto de massas de rua de violência extrema, cujos resultados, pelo menos por hora, seria imprevisíveis em todos os sentidos. Assim, uma opção para o imperialismo tem sido negociar a estabilidade política da Venezuela com Chavez no poder.

Quando virá o próximo enfrentamento, não passa hoje de conjectura. Até onde Chavez aceitará negociar, tampouco o sabemos. O que é certo é que Chavez saiu fortalecido e no dia 15 de agosto todos os lutadores antiimperialistas venceram uma importante batalha. Chavez foi seu líder indiscutível. A constituição venezuelana, a mais democrática que a América Latina já viu, é uma conquista do processo revolucionário bolivariano. Nela estava garantido o mecanismo do referendo revocatório - mecanismo inédito em nosso continente - que permitiu o povo venezuelano expressar massissamente seu apoio a Chavez e seu desejo de seguir a revolução bolivariana. Então, o povo, embora esteja demonstrando muita paciência, tem uma paciência consciente, não resignada. Serenidade e sabedoria.

Uma sabedoria que indica, por um lado, a consciência da necessidade de consolidar a derrota dos golpistas. Por outro lado, indica uma consciência crescente da necessidade de mudanças no próprio regime, o combate contra os setores burocráticos ligados à chamada revolução bolivariana que defendem seus interesses e privilégios, não a revolução nem os interesses elementares do povo. Para defender estes interesses, além da necessidade da democratização crescente do pais, do espaço crescente das organizações das próprias massas, é fundamental o controle popular sobre a riqueza petroleira e das receitas do estado. Tais necessidades, tampouco se pode deixar de dizer, também tendem a exigir uma demanda jamais seriamente encarada pelo governo: a expropriação dos grandes grupos capitalistas.

Nos 'cerros de Caracas' pudemos ver os ativistas colocarem a questão: agora é hora da revolução dentro da revolução. Os patrulheiros e as unidades de batalha eleitoral com suas centenas de milhares de ativistas que garantiram a campanha do NO de casa em casa, de comunidade em comunidade, organismos de massas convocados pelo chavismo e que o próprio Chavez convocou a se manterem atuantes, são a base de que o processo pode seguir "desde abajo", avançando na auto-organização do movimento de massas. O movimento sindical combativo, embora bem mais atrás do que o movimento popular, também tem condições de se dinamizar muito. A UNT, por exemplo, tende a se consolidar como pólo de referência sindical. Num sentido, então, podemos dizer que a luta recém começa. Mas os venezuelanos já têm um lugar de vanguarda na América Latina e já são um exemplo para o mundo.

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Author`s name Pravda.Ru Jornal
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