Pobre de ti, Haiti

Declarado falido, começa a ser ocupado por tropas norte-americanas

"Recebo muita pressão para usar a violência, para ser mais robusto na utilização da força, principalmente dos países mais interessados na área e cuja atuação de força de paz difere da nossa", General Augusto Heleno Ribeiro, primeiro comandante da ONU no Haiti, apontando como autores dessa pressão os Estados Unidos, Canadá e França, em audiência na Câmara Federal, em 2 de dezembro de 2004.


"O grande risco do Haiti não é a falta de segurança. A ameaça é na área política, social e econômica, que pode voltar a gerar violência. Mas a realidade é que hoje não é a violência que está impedindo a governança. Hoje, é a falta de resultado econômico e social que ameaça gerar nova violência".


General Carlos Santos Cruz, então comandante da ONU no Haiti, em 19 de março de 2009.
"Não tem lógica que as tropas americanas estão pousando no Haiti, se o Haiti está pedindo é ajuda humanitária e não tropas. Seria uma loucura para todos começar a enviar tropas para o Haiti".


Daniel Ortega, presidente da Nicarágua, em 15 de janeiro de 2010.
"A revolução haitiana foi o maior movimento negro de rebeldia contra a exploração e a dominação colonial das Américas. Mesmo com o assassinato de Toussaint LOuverture pelos franceses - que haviam substituído os decadentes espanhóis como colonizadores da ilha - a revolução triunfou e fez realidade, contra a França, os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. A abolição da escravidão, não contemplada pelos revolucionários de 1789, foi conquistada pelos 'jacobinos negros' do Haiti".


Emir Sader , 4 de janeiro de 2004

Por sob os escombros do terremoto e das caóticas ações de socorro que estão sendo mostradas fartamente ao vivo e a cores, num espetaculoso "reality show" de deixar à míngua o novo "Big Brother", há uma outra terrível catástrofe que pode culminar com a "refundação" do Haiti como uma colônia de novo tipo dos Estados Unidos, cujos soldados, armados até os dentes, estão invadindo a parte ocidental da antiga ilha Quisqueya, batizada de "hispaniola" por Cristóvan Colombo, enquanto os efetivos de 17 nações pousados ali em 2004 com mandato da ONU (Argentina, Benin, Bolívia, Brasil, Canadá, Chade, Chile, Croácia, França, Jordânia, Nepal, Paraguai, Peru, Portugal, Turquia e Uruguai) estão sendo obrigados a escolher entre o recolhimento dos mortos e policiamente das favelas, ou a "saírem à francesa" de volta a seus quartéis de origem.


Um golpe entre os escombros
Essa é a mais patética constatação de um golpe explícito como corolário da tragédia que fez desmoronar o Estado haitiano, já minado por controle remoto desde Washington, até agora através da Minustah - Missão da ONU para a Estabilização do Haiti, sempre sob o comando de um oficial brasileiro, agora o quinto chefe desde que o general Augusto Heleno Ribeiro Pereira lá chegou em 1 de junho de 2004.


Para garantir o êxito de sua operação, as tropas enviadas por Obama assumiram de imediato o controle do aeroporto da capital e de todas as pistas de pouso do país, como ensina o manual de guerra, agindo com tal desenvoltura que até aviões com alimentos da ONU e outros com hospitais de campanha e ajuda do Brasil foram impedidos de pousar, a fim de facilitar o desembarque da soldadesca ianque e o embarque para área segura dos norte-americanos e seus amigos locais que sobreviveram à destruição.


Tudo está acontecendo na maior sem-cerimônia, ante o silêncio do Conselho de Segurança da ONU e apesar da recambolesca aparição na área, por alguns dias, em indumentária militar, do advogado Nelson Azevedo Jobim, o exibido e deslumbrado ministro da Defesa do Brasil.
Talvez, já nestes próximos dias, dez mil homens treinados para as guerras do Iraque e do Afeganistão estarão operando com equipamentos de última geração no plano de ocupação militar, sobrepondo-se à missão internacional que em 2008 já custara US$ 2.176.772,00 (R$574.914.065,51 erário brasileiro).


Esse processo inédito e indevido de ocupação se dá em meio a um ambiente de absoluta paralisia, quando Porto Príncipe se converte numa cidade fantasma, ante o sumiço de suas autoridades, em todos os níveis, a começar pelo presidente René Préval, um títere acovardado e destituído de toda e qualquer poder de mando.


Presidente, aliás, já convertido em boi de presépio, com a superposição das ONGs ligadas diretamente aos Estados Unidos, as verdadeiras destinatárias da "ajuda internacional" de U$ 1 bilhão por ano, o que levou em 19 de março de 2009 o general brasileiro Carlos dos Santos Cruz, então no comando da Minustah, a apontar a corrupção desenfreada como o maior problema do Haiti naquele momento.


A ocupação militar não se dá como uma "emergência". Quem estava lá nesses anos em que as forças internacionais "legitimavam" o regime títere, montado quando, em 29 de fevereiro de 2004, Estados Unidos e França resolveram sequestrar e mandar para a África o presidente constitucional, o ambíguo ex-padre Jean-Bertrand Aristide, já vislumbrava o "Plano B", previsto desde a suspeita substituição do general Carlos dos Santos Cruz, em abril de 2009, um mês depois da entrevista incômoda que deu ao jornal "Estado de São Paulo" (19 de março) denunciando os desvios da ajuda externa.


Essa interferência, aliás, já havia afetado a própria implantação da tropa internacional, conforme denúncia do general Augusto Heleno Ribeiro Pereira, em audiência oficial na Câmara dos Deputados , que por pouco não caiu ao provocar um "incidente diplomático", quando afirmou que vinha sofrendo "muita pressão de países como EUA, Canadá e França para usar a violência".


Tirando proveito da tragédia
Saber fazer a leitura das afirmações dos generais brasileiros significa entender o móvel da perversa atitude dos Estados Unidos de aproveitarem a declarada falência do Haiti para implantarem seu próprio projeto de ocupação de uma nação amaldiçoada desde o precoce nascimento, em 1804, por ter sido fruto de revolta dos escravos, trazidos à força do Togo e do Daomé, que conservavam sua cultura ewe-fon*, cuja história tem muito a ver com a natureza do povo haitiano até hoje.


O terremoto só precipitou o plano de ocupação do Haiti, mantido de propósito como a nação mais pobre do Continente, sobre cujas áreas há um projeto finalizado por Bil Clynton, baseado na implantação wm regime de " sweatshops " de confecções produzindo com mão de obra barata para os Estados Unidos em zonas livres de exportação, e da internacionalização da costa de Labadee, no norte do país, alugada pela Royal Caribbean até 2050, que será transformada numa zona livre de turismo.


O abalo sísmico afetou o a idéia de ocupação lenta e gradual, por ter eliminado todos os mecanismos de controle institucional do Haiti. Os especialistas do Pentágono e da CIA acreditam que à falta de uma intervenção militar com poderes de extermínio - recusada pelos oficiais brasileiros - o país se abrirá para uma nova " revolta dos escravos ", agora de conteúdo social revolucionário, com reflexos imediatos na vizinha República Domicana.


Os saques já são vistos pelos norte-americanos como primeiros passos de uma revolução que poderá eliminar as elites já afetadas gravemente pelas perdas de 12 de janeiro e implantar um estado social sob influência da massa faminta.


Não havendo estrutura repressora e ante o enfraquecimento da elite dominante, o Haiti poderá ser um campo fétil para um regime nacionalista baseado nos sonhos dos seus fundadores, o qual o ex-padre desistiu de implementar, após o fim da era Duvalier (pai e filho ditadores cruéis e fiéis aos EUA).


Por mais que nossas atenções ainda estejam presas à tragédia que comoveu o mundo inteiro, cabe já ir detectando o que poderá acontecer de igualmente trágico nos dias seguintes. Nenhum país decide de repente mandar para outro uma tropa de dez mil homens, bem maior do que o contingente da ONU, sem as intenções coloniais, que estão nos cérebros doentios do império decadente.


*EWE (êuê) - Povo originário do reino de Oyo que no século XIII (1300) migraram para a cidade de Ketou no Dahomey, fugindo das constantes guerras e da perseguição dos sacerdotes. Eles estabeleceram sua própria identidade como um grupo e batizaram a cidade de Ketou como Amedzofe (origem do mundo) ou Mawufe (casa de Deus). No princípio do século XIV (1400) os Ewe se viram acuados novamente por inúmeros ataques do exército de Oyo e resolveram dividir-se em dois grupos. O primeiro moveu-se para Tado em 1450 e o segundo permaneceu em Ketou, fugindo mais tarde também para Tado onde permaneceram pouco tempo, indo para Notsu em 1600. região central de Tado.

Pedro Porfírio

www.porfiriolivre.com

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