O retorno do blasfemo

Diz-se: "São bárbaros." Sem dúvida. Mas esse terrorismo não é cego: tem os olhos abertos, é focado no alvo. E já nem mudo é! Ele grita: "Vingamos o Profeta Maomé!"


No final do século 20, imaginávamos que nossos conceitos como blasfêmia, sacrilégio, profanação já não passassem de vestígios de tempos passados. Não, nada disso. Temos de constatar que a era da ciência não apagou o senso do sagrado, que o sagrado não é um arcaísmo. Claro que tampouco o sagrado é real. 


10/1/2015, Jacques-Alain Miller [pela lista lacan.dot.com, [email protected], fr. e ing.[i]]
[O sagrado] É, isso sim, um fato de discurso, uma ficção, mas fato de discurso e ficção que mantêm coesos os signos de uma comunidade, a chave-mestra de sua ordem simbólica. 

O sagrado exige reverência e respeito. Se faltam, é o caos. Se faltam, Sócrates é convidado a beber cicuta. Nunca, jamais, em lugar algum, desde que há homens e mulheres e todos falam, foi lícito dizer tudo.

A não ser na psicanálise, experiência muito especial, explosiva, e que apenas engatinha. A não ser nos EUA, mas a liberdade de manifestação garantida pela Constituição é, lá, limitada por um sentimento bem particular da decência. 

Por isso a grande maioria da imprensa-empresa absteve-se de reproduzir as caricaturas de Maomé, por sentimento profundo de respeito ao "grande sofrimento dos muçulmanos". Vale o mesmo princípio para o que se chama "politicamente correto". 

O afeto doloroso assinala que a libido está mobilizada, em jogo. Se o sagrado não é real, o gozo que se condensa no sagrado, ele, é real. 

O sagrado mobiliza êxtases e furores. Morre-se e mata-se por ele. Psicanalistas sabemos ao que nos expomos quando tocamos, no outro, no "impossível-de-suportar" [Lacan: "l'impossible-à-supporter"]. 

Por isso Baudelaire cita Bossuet, "O Sábio sempre que ri, treme", e atribui ao cômico uma origem diabólica. 

Ora, quem foi o principal operador das Luzes, se não o riso? Maistre fala do "rictus" de Voltaire; Musset, de seu "sorriso atroz". As doutrinas da tradição não foram refutadas, observa Leo Strauss, foram expulsas pelo riso.

Charlie Hebdo existia entre nós como a rocha-testemunha desse riso fundante. Ninguém jamais prometeu a Cabu, Charb, Tignoux, Wolinski que seriam autorizados a posar ao lado do Cavaleiro de la Barre. Desde 1825, ninguém nunca mais tentou, entre nós, franceses, restaurar qualquer lei sobre a blasfêmia.

Como é possível pois que tenham morrido como mártires da liberdade de manifestação? 

Aconteceu, porque os universos de discurso que antes eram separados e estanques, agora se comunicam. São mesmo imbricados: agora, o sagrado de uns e o "nada-sagrado" de outros estão conectados, são antípodas. 

A menos que se rebobine o filme dos tempos modernos, deportando para longe os alógenos, a questão - questão de vida ou morte - será descobrir se o gosto do riso, o direito de ridicularizar, o nenhum-respeito iconoclasta são assim tão essenciais ao nosso gozo, quanto é essencial ao gozo na tradição islâmica a submissão ao Um. 

Quanto ao debate jurídico, é complexo, todo o conjunto das democracias ocidentais trabalham sobre isso (ver, sobre isso, o sumário, publicado há três meses pela Universidade da Califórnia: Profane : Sacrilegious Expression in a Multicultural World). 

Todos os anos, desde 1999, negocia-se na ONU essa questão, por iniciativa da Organização da Cooperação Islâmica, na Alemanha, Áustria, na Irlanda, procurando leis que tornem proscritos os atentados ao sagrado. 

O Reino Unido esperou até 2008 para suspender a proteção que dava à Igreja Anglicana contra a blasfêmia. A França distingue-se pelo rigor de sua doutrina laica. Por quanto tempo ainda? Não se sabe. Hé, la France ! Teu café desertou, fugiu da luta. O que mais queres, mesmo, mais verdadeiramente, França? Conflito ou concessão? ***********

 


[i] The return of blasphemy - By Jacques-Alain Miller (translated by Patrick Pouyaud)

 

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