Coisas de Clarice

Coisas de Clarice

Adoro lojas de perfumes, lojas que sempre têm mulheres falantes, fumegantes... Fico por ali, entre uma escolha e outra, ouvindo sensações, gostos e histórias, desejos, sonhos, tudo devidamente aromatizado, muito bem embalado, essas coisas que tornam nossa fútil vida diária um pouco mais aceitável.

 

Adoro lojas de perfumes, lojas que sempre têm mulheres falantes, fumegantes... Fico por ali, entre uma escolha e outra, ouvindo sensações, gostos e histórias, desejos, sonhos, tudo devidamente aromatizado, muito bem embalado, essas coisas que tornam nossa fútil vida diária um pouco mais aceitável. Talvez por isso repita tanto os temas de meus presentes. Mas como são escolhidos com um criterioso carinho e envolvidos em sentimentos, recebo de volta o sorriso generoso e o abraço gestado. Esse trocar de abrigo dá um sentido renovador à nossa existência. A vida ainda permite essas distinções.

A vendedora, sempre impecável em beleza, atendimento e maquiagem, vai com a fina sensibilidade feminina construindo uma sutil cumplicidade comercial. Mais uma vez, identificou o desejo não dito, mas revelado. Colocou a fita bonita, a embalagem quase infantil e o delicado presente, mais bonito que eficiente: às vezes, o que se traz por fora, decora o que se tem por dentro. Do outro lado, a bela e simplória menina desfilava seu gosto apurado, contrastando com sua falta de maquiagem. A vendedora impaciente não foi capaz de alcançar os sentidos da menina pobre de sensibilidade rica. Apontei na prateleira alta o produto que garimpei do que ela desejava. Estava no alto, mas meus braços conseguiram alcançá-lo. Ela se encaminhou com graça para o caixa quando me tocou o ombro e me deixou um perfume diferente, uma leve essência de gente. Gosto desse cheiro, pois é ele que fica.

Finda a compra, a embalagem em rococó contemporâneo, o laço de fita que prende corações e corpos, fui ao caixa como quem busca o fim da festa. O preço não cobrado das pequenas emoções são as gratas surpresas da vida. É bom olhar mais para os lados do que apenas para a frente, nossos olhos precisam de paisagem.

Enquanto uma e outra menina se desdobrava ao caixa, para surpresa minha, como o último brinde da tarde finda crepuscular, a frase de Clarice Lispector - improvável em tão efêmero ambiente - em letras garrafais, plotadas e postadas na parede. Me coloriu por dentro, como uma fragrância. Guardei algumas palavras e o sentido, para garimpagem posterior, como os pequenos provadores de papéis que trazem o cheiro do perfume... Encontrei a frase inteira, que perfumou meu dia, e que agora vai aqui, para perfumar um pouquinho o de vocês também: "Não me prendo a nada que me defina. Sou companhia, mas posso ser solidão. Tranqüilidade e inconstância, pedra e coração. Sou abraços, sorrisos, ânimo, bom humor, sarcasmo, preguiça e sono. Música alta e silêncio. Serei o que você quiser, mas só quando eu quiser. Não me limito, não sou cruel comigo! Serei sempre apego pelo que vale a pena e desapego pelo que não quer valer... Suponho que me entender não é uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato. Ou toca, ou não toca".

 

Petrônio Souza Gonçalves é jornalista e escritor

 

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