Bloco de esquerda apresenta Projecto de Lei contra abuso sexual de menores

Exposição de Motivos

Os sucessivos casos de abuso sexual de menores que recentemente vieram a público tornaram evidente uma realidade chocante, de dimensões sociais preocupantes, relativamente à qual não existem estudos de prevalência, mas apenas dados parciais em função dos casos que chegam ao conhecimento do sistema judicial, às entidades com competência em matéria de infância e juventude (ECMIJ) e às comissões de protecção de crianças e jovens em perigo (CPCJP).

Segundo as estatísticas da justiça de 1998, são os menores de 14 anos o grupo etário mais frequentemente vítima de ofensas de natureza sexual. A gravidade do problema é clara quer pela sua natureza atentatória da liberdade e direito à autodeterminação sexual da criança, quer por constituir um factor que põe em causa um desenvolvimento psicossocial saudável. Embora o abuso sexual represente uma experiência e não uma desordem, constitui um atentado à integridade física e moral da criança que poderá pôr em causa o desenvolvimento saudável da criança.

A longo prazo, a gravidade das consequências depende de diversos factores: do tipo e duração do abuso, do grau de relacionamento com o abusador, da idade, do nível de desenvolvimento e das características pessoais do menor e do nível de violência e das ameaças sofridas (Teresa Magalhães, 2002. Maus Tratos em Crianças e Jovens. Lisboa: Quarteto Editora). Os crimes sexuais parecem ter consequências mais graves quando se dão em idades jovens, de forma continuada, quando existe contacto genital e ameaças, quando o abusador é o pai ao padrasto, quando não há apoio familiar, ou quando obrigam ao abandono da casa.

A ocorrência de grande parte destes casos em meio familiar, a complacência e apatia social perante muitas formas de violência sobre as crianças, a vergonha, a culpabilização e o medo de represálias vividos pela vítima, a falta de confiança na resposta de protecção à vítima, são factores que apenas têm contribuído para o abafamento deste tipo de crime e contribuem para o agravamento e continuidade dos abusos.

Dada a gravidade e dimensão que esta forma de violência sobre as crianças assume, urge estudar e avaliar a eficácia dos mecanismos e respostas sociais e institucionais. Como refere Isabel Alberto em “O Abuso Sexual de Menores – Uma Conversa sobre Justiça entre o Direito e a Psicologia”(Rui do Carmo, Isabel Alberto e Paulo Guerra, Almedina, 2002, pág. 38): “A criança e o adolescente transportam uma susceptibilidade maior às situações de maltrato (…). Daí que a sociedade deva assegurar, de forma particular, as condições de desenvolvimento e os direitos inerentes a estas faixas etárias, nomeadamente o direito à dignidade, à segurança e, porque não à felicidade! (…)”.

O modelo habitualmente utilizado tem sido apenas o remediativo, ou seja, focalizado na redução da duração e/ou severidade das consequências e na prevenção a recorrência do abuso sexual, através da intervenções para ajudar as vítimas abusadas. Mas mesmo este modelo tem funcionado de forma pouco eficaz. Em alternativa, ou complemento a este modelo, o modelo de promoção de saúde focaliza a sua atenção na identificação de formas não só de promoção do bem-estar psicossocial após a ocorrência dos problemas, mas também bem antes da instalação dos problemas e da dificuldade. Poderemos assim identificar três modalidades:

- prevenção primária: intervenção no sentido de prevenir, antecipar a ocorrência de abuso sexual de menores na população em geral; - - - prevenção secundária: dirigido a populações que estão em risco com vista a prevenir o abuso sexual de crianças; - - prevenção terciária: focalizado na redução da duração e/ou severidade das consequências e na prevenção a recorrência do abuso sexual, através da intervenções para ajudar as vítimas abusadas.

A presente iniciativa legislativa adopta este modelo conceptual de intervenção sobre o problema do abuso sexual de menores procurando, por um lado, contribuir para melhorar os mecanismos e respostas sociais e institucionais de protecção da vítima e de prevenção terciária e, por outro, definir respostas adequadas que permitam a prevenção primária e secundária do abuso sexual de menores.

Mecanismos e respostas sociais e institucionais de protecção da vítima

A falta de confiança nas respostas sociais e institucionais à vítima deste tipo de crime parece um elemento central que os recentes acontecimentos têm colocado em evidência. A falha destas respostas parece relacionar-se não só com o sistema judicial, mas também com os mecanismos de apoio e protecção social.

Uma recente conferência internacional relativa ao tema: “A Investigação Criminal do Abuso Sexual de Menores” indicou diversas questões a ter em conta na actuação do sistema judicial:

· As crianças podem ser traumatizadas pelo processo de investigação, inquérito e julgamento e a sua vida futura e a dos familiares pode ficar marcada para sempre. A coordenação e emprego das intervenções sociais e legais é essencial no sentido de minimizar interferências desnecessárias com a vítima menor, no sentido de se criar uma envolvência segura em que a criança possa recuperar-se e de garantir a capacidade máxima para controlar e tratar o agressor.

· Continua a mostrar-se a necessidade de haver em todos os departamentos de polícia, com a respectiva competência investigatória, uma abordagem coordenada ao abuso sexual de menores feita por equipas adequadamente formadas e treinadas. Por isso as alterações legislativas não resultam enquanto não forem treinados de forma adequada os que as devem implementar.

· As queixas ou denúncias de abuso sexual de menores implicam, por vezes, o apoio de psicólogos, pedopsiquiatras ou outros profissionais que estejam em condições de emitirem parecer sobre a fiabilidade do depoimento da criança, entre outros aspectos.

· A concepção, o mobiliário, equipamento e o traçado final das instalações (da polícia e dos tribunais) devem ser ajustados para acolher crianças e outros intervenientes processuais vulneráveis.

A nível do sistema judicial podem e devem ser dadas respostas a estas preocupações. Assim, o presente projecto de lei prevê a frequência de cursos de formação por parte de quem procede à investigação criminal, como forma de preparação destes agentes para as especificidades da recolha da prova. Não podemos ignorar que as vítimas são crianças, que foram alvo de uma situação de violência brutal. Quem ouve estas vítimas precisa de saber como comunicar com elas, e como receber a informação, interpretar os sinais que elas transmitem. A presença de pedopsiquiatras, psicólogos, médicos ou outros profissionais de saúde, pode obviar a situação traumática para a criança que vai reviver toda uma situação de pesadelo, podendo ainda tornar-se um auxiliar precioso na interpretação da mensagem da criança.

Contudo é possível ir mais longe, nomeadamente através do reforço da aplicação das medidas de coacção que embora já previstas pelo Código do Processo Penal, passam a ser previstas como um dever de aplicação pelo juiz e não como uma possibilidade. Só assim se pode assegurar que durante a fase de inquérito o arguido permaneça afastado da vítima. Esta medida reveste-se de vital importância visto que, como foi referido anteriormente, o carácter continuado do abuso constitui um factor agravador das consequências do abuso sexual menores. Por outro lado, obrigar a retirada do menor de meio familiar, quando o agressor reside com o menor, constitui também um elemento agravante, principalmente, quando a criança tiver um vínculo afectivo saudável com o outro progenitor.

Actualmente o Código Penal Português prevê a aplicação da pena acessória de inibição do poder paternal, da tutela ou curatela (artigo 179º) quando haja conexão entre a prática de um crime contra a autodeterminação ou liberdade sexual e a função exercida pelo agente. Outra pena acessória de aplicação possível a este tipo de crimes é a proibição do exercício de funções quando o autor for titular de cargo público, funcionário público ou agente da administração, cometer algum dos referidos crimes no exercício da sua actividade.

Ora, face à natureza deste tipo de crimes e às características psicológicas deste tipo de agressor, que tem tendência para reincidir no seu comportamento, é necessário prever como pena acessória a proibição do exercício de profissões que impliquem o contacto com menores ou que, de alguma forma, se relacionem com estes. À semelhança, aliás, do que existe actualmente em França, Dinamarca, Inglaterra e País de Gales.

No que diz respeito às respostas de protecção e apoio social, estas dependem em parte da actuação das entidades com competência em matéria de infância e juventude (ECMIJ) e das Comissões de Protecção de Menores , criadas em 1991, com uma composição multidisciplinar, envolvendo instituições locais e os órgãos de administração central e autárquica. O Relatório de Avaliação das Comissões de Protecção a Menores de 1999 refere a existência de 170 comissões. Mais de cinco mil jovens (5661) foram abrangidos pelo trabalho destas comissões. Os processos finalizados com medidas foram 3700, sendo que cerca de 75% das medidas aplicadas reportam-se ao acompanhamento educativo, social, médico e psicológico. Dos casos diagnosticados predominam as situações de negligência (25%), de abandono escolar e absentismo (24%), maus tratos físicos e psicológicos (14%) e abandono (7%).

É incontestável a importância da existência destas comissões, dado que o seu funcionamento multidisciplinar constitui uma mais valia fundamental na abordagem das situações para que estão vocacionadas. Urge dar-lhes maior visibilidade e criar condições de maior valorização do seu trabalho.

O protocolo assinado entre o Governo e a Associação Nacional de Municípios resultou num melhor esclarecimento da lei 147/99 e em algumas medidas tendentes a melhorar o apoio às Comissões de Protecção de Crianças e Jovens, nomeadamente o convite à presença do Ministério Público nas Comissões e a comparticipação do governo no financiamento do funcionamento das Comissões até um montante de 1500 euros por mês, mas persistem, porém, dificuldades para as quais é preciso encontrar respostas, nomeadamente garantindo uma maior valorização e visibilidade destas comissões através da criação de condições que dignifiquem o seu trabalho e quebrem o isolamento através:

· Do reforço da capacidade actuação das comissões pela contratação de técnicos efectivos, em número que deverá ser definido em função da dimensão e da área de actuação da CPCJP;

· Integração destes técnicos nas equipas interdisciplinares com a incumbência de definir o plano de formação e de actuação ao nível do acompanhamento das crianças e jovens em perigo.

Das medidas de prevenção Dada a natureza do abuso sexual de menores poderãos ser consideradas várias medidas ou políticas preventivas que terão de passar também pela mudança de mentalidades e de valores sociais e culturais:

· Modificar normas que legitimam e glorificam a violência na sociedade e na família.

· Reduzir o stress provocador de violência criado pela sociedade: reduzir a pobreza, a desigualdade e o desemprego. Providenciar habitação, alimentação, cuidados de saúde primários adequados, assim como oportunidades de educação.

· Integrar as famílias numa rede social e na própria comunidade: o isolamento é um elemento que apenas contribui para a ocorrência e recorrência do abuso sexual.

· Combater concepções associadas ao autoritarismo e conceptualização da criança como posse dos pais;

· Promover formas de encarar a sexualidade de forma saudável baseadas no conhecimento e aceitação da sexualidade da criança, e de medidas de educação sexual que permitam a criança compreender e rejeitar formas de relacionamento desrespeitadoras do seu direito à autodeterminação e a um desenvolvimento sexual saudável.

Neste sentido propomos a criação de um programa de prevenção do abuso sexual de menores, que visa a prossecução dos objectivos anteriormente enunciados, através das seguintes medidas:

- Elaboração e distribuição gratuita de materiais informativos em órgãos de comunicação social, sobre o abuso sexual de menores, e a sua natureza, e ainda sobre estratégias de protecção em caso de tentativa de abuso, sobre direitos de protecção da vítima e com contactos de entidades a quem recorrer. As campanhas de informação devem incluir também informação sobre os direitos da criança.

- Criação de um plano de formação formação sobre abuso sexual de menores e demais crimes contra a autodeterminação e liberdade sexual de menores, sobre a situação da vítima, sobre estratégias de atendimento e mecanismos de encaminhamento e protecção, dirigidas a técnicos de saúde, técnicos de segurança social e outros agentes de acção social, agentes educativos e agentes policiais.

- Realização de estudos que visem a análise das situações de abuso sexual de menores e demais crimes contra a autodeterminação e liberdade sexual de menores, nomeadamente no que diz respeito à reacção da vítima e à eficácia das respostas institucionais disponíveis.

Assim sendo, e ao abrigo do artigo 167º e nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa, os Deputados do Bloco de Esquerda apresentam o seguinte projecto de lei:

Capítulo I Medidas de prevenção dos Crimes contra a Autodeterminação e Liberdade Sexual de Menores

Artigo 1º (Campanha de prevenção do abuso sexual de menores)

É criado um programa de prevenção do abuso sexual de menores a ser dirigido à população em geral, a populações em risco e aos agentes sociais e educativos com mais contacto com as crianças e as famílias.

Artigo 2º (Campanhas de informação) 1 - Compete ao Governo a elaboração e distribuição gratuita de materiais informativos, em órgãos de comunicação social, sobre o abuso sexual de menores, e a sua natureza, e ainda sobre estratégias de protecção em caso de tentativa de abuso, sobre direitos de protecção da vítima e com contactos de entidades a quem recorrer. 2 - As campanhas de informação devem incluir também informação sobre os direitos da criança.

Artigo 3º (Realização de acções de formação)

Compete ao Governo promover acções de formação sobre abuso sexual de menores e demais crimes contra a autodeterminação e liberdade sexual de menores, sobre a situação da vítima, sobre estratégias de atendimento e mecanismos de encaminhamento e protecção, dirigidas a técnicos de saúde, técnicos de segurança social e outros agentes de acção social, agentes educativos e agentes policiais.

Artigo 4º (Realização de estudos)

Compete ao Governo promover a realização de estudos que visem a análise das situações de abuso sexual de menores e demais crimes contra a autodeterminação e liberdade sexual de menores, nomeadamente no que diz respeito à reacção da vítima e à eficácia das respostas institucionais disponíveis.

Capítulo II Medidas de Reforço da Protecção à Vítima

Artigo 5º (Criação de Gabinetes de Apoio à Vítima de Crimes contra a Autodeterminação e Liberdade Sexual de Menores)

1 - Serão criados, sempre que a incidência geográfica o justifique, Gabinetes de atendimento à vítima de crimes contra a autodeterminação e liberdade sexual de menores, com linhas SOS gratuitas, que deverão ter por função informar as vítimas deste tipo de crime sobre os seus direitos e proceder ao seu encaminhamento. 2 – No âmbito destes Gabinetes serão criadas consultas de carácter gratuito de acompanhamento das vítimas e, se necessário dos seus familiares, por psicólogos ou pedopsiquiatras.

Artigo 6º (Reforço dos meios e da actuação das Comissões de Protecção de Crianças e Jovens)

1 - As Comissões de Protecção de Crianças e Jovens procedem à contratação de técnicos com conhecimentos nas diversas áreas de actuação das comissões, em número a definir por regulamentação, em função da dimensão e da área de actuação. 2 – Os técnicos contratados constituem uma equipa interdisciplinar que definirá o plano de actuação ao nível do acompanhamento das crianças e jovens em perigo.

Artigo 7º (Acção dos serviços públicos e autoridades policiais)

As autoridades policiais e demais serviços públicos deverão accionar todos os mecanismos legais de investigação e de encaminhamento da vítima sempre que for detectada uma situação de crime contra a autodeterminação e liberdade sexual de menores.

Artigo 8º (Formação dos agentes de polícia criminal)

Os agentes de polícia criminal frequentarão acções de formação relativas à investigação de crimes contra a autodeterminação e liberdade sexual de menores, com especial incidência nas matérias relativas à recolha de prova e das formas de interrogar a vítima e interpretar os seus sinais.

Artigo 9º (Criação de instalações apropriadas a crianças)

Nas instalações da PSP, GNR ou Polícia Judiciária, bem como nos Tribunais, serão criados espaços próprios, cuja concepção, mobiliário e equipamento serão ajustados para acolher crianças.

Artigo 10º (Depoimento e declarações das vítimas)

As vítimas de crimes contra a autodeterminação e liberdade sexual de menores, durante a prestação de depoimento ou declarações, serão sempre acompanhadas por psicólogo, pedopsiquiatra ou médico.

Artigo 11º (Medidas de Coacção)

Sempre que, existindo fortes indícios da prática de crimes contra a autodeterminação e liberdade sexual de menores, não seja imposta ao arguido a medida de coacção de prisão preventiva, deverá ser aplicada ao arguido a medida de coacção de proibição de permanência, de ausência e de contactos prevista pelo artigo 200º do Código do Processo Penal.

Artigo 12º (Altera o Código Penal)

O artigo 179º do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 3 de Setembro, com as alterações da Lei n.º 6/84, de 11 de Maio, do Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de Abril, do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, da Lei n.º 7/2000, de 27 de Maio, da Lei n.º 77/2001, de 13 de Julho, da Lei n.º 97/2001, de 25 de Agosto, da Lei n.º 98/2001, de 25 de Agosto, da Lei n.º 99/2001, de 25 de Agosto, da Lei n.º 100/2001, de 25 de Agosto, da Lei n.º 108/2001, de 28 de Novembro e do Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de Dezembro, passa a ter a seguinte redacção:

“Artigo 179º (Penas acessórias relativas à prática de crimes contra a autodeterminação e liberdade sexual de menores) Quem for condenado por crime contra a autodeterminação e liberdade sexual de menor, atenta a concreta gravidade do facto, poderá: a) ser inibido do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela, quando existir conexão entre a prática do crime e a função exercida pelo agente, por um período de 2 a 15 anos. b) ser proibido do exercício de quaisquer actividades profissionais que impliquem o contacto directo com menores, ou que com eles se relacionem de algum modo, por um período de 2 a 15 anos.”

Artigo 13º (Regulamentação)

O presente diploma será regulamentado pelo Governo no prazo de 30 dias.

Artigo 14º (Entrada em vigor)

O presente diploma entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, com excepção do disposto nos artigos 1º a 9º, os quais só entrarão em vigor com a aprovação do Orçamento de Estado imediatamente posterior à data da sua publicação.

Assembleia da República, 26 de Fevereiro de 2003

Os Deputados do BE

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