Bernadino Soares sobre programa do governo

Senhor Presidente, Senhores Membros do Governo, Senhores Deputados,

Chegados ao fim deste debate, que corresponde à consumação do início de um novo ciclo político, a questão fundamental que os portugueses querem ver esclarecida é a de saber se ao novo ciclo político corresponde uma nova política, ou se pelo contrário o novo ciclo trará consigo uma continuidade de políticas.

A grave situação a que o país chegou – de crise económica, de crise social, de atraso no desenvolvimento, de desigualdade na distribuição da riqueza, de ataque a direitos fundamentais – tem causas e razões profundas na sucessão de ciclos políticos com continuidade dos traços determinantes das políticas governativas, com a consequência evidente de uma crescente descrença na vida política e na participação democrática.

Julgo que ninguém negará que um dos sentidos do voto de 20 de Fevereiro foi certamente o de repúdio de um governo PSD/CDS-PP e da sua desastrosa actuação, mas que foi sem dúvida também o da exigência de uma nova política, ou se quiserem, como dizia a campanha eleitoral de um certo partido, de um novo rumo para o país.

Por isso são preocupantes os sinais e mais do que os sinais as confirmações, de que em áreas fundamentais este Governo não assume com clareza as indispensáveis roturas com a política anterior.

Não dizemos que este Governo é igual ao anterior; não desvalorizamos a gravidade da política do governo anterior; não menosprezamos algumas medidas positivas que encontramos no Programa de Governo. Mas olhando para o Programa de Governo e para o que foi dito neste debate podemos dizer que:

- há matérias em que se exigia um claro romper com o passado e não o encontramos no Programa de Governo; - há matérias onde eram necessários compromissos claros com medidas indispensáveis para construir um futuro melhor e não os encontramos no Programa de Governo; - há por outro lado matérias onde se encontram compromissos concretos mas que se referem a medidas negativas e erradas.

Um novo rumo para o país não dispensa, antes exige a rectificação das principais medidas estruturantes do Governo anterior

Por isso estranhamos a ausência de referência à indispensável alteração da Lei de Bases da Segurança Social aprovada pela direita na passada legislatura e dada como adquirida no Programa de Governo.

Por isso vemos com preocupação a perspectiva de continuação da entrega dos novos hospitais aos privados, bem como a manutenção da lógica economicista na gestão das unidades do Serviço Nacional de Saúde.

Por isso vemos com preocupação a ausência de compromissos com a alteração do regime das custas judiciais, entrave decisivo ao acesso à justiça para muitos cidadãos, com efeitos especialmente graves na área laboral.

Por isso vemos com discordância a ausência de compromissos com a alteração da dita “reforma” da administração pública aprovada pela anterior maioria.

Quanto ao Código do Trabalho, escusam o Primeiro-Ministro e o Governo de vir mais uma vez acenar com o espectro da ausência de uma lei laboral no país. Propomos a revogação do Código de Trabalho, das suas normas mais gravosas, não para deixar um vazio legal, mas para as substituir por normas que correspondam a um verdadeiro direito do trabalho, orientado para garantir direitos aos trabalhadores e defender relações laborais justas.

Neste debate o Governo procurou valorizar o facto de o seu Programa ser no fundamental decalcado do programa eleitoral do PS. Não defendemos obviamente que do programa eleitoral para o de Governo se abandonem os compromissos levados a eleições. O que criticamos é que em matérias decisivas, nem no programa eleitoral, nem no de Governo, haja indicações concretas sobre a política que o Governo vai adoptar.

O que é certo é que a ausência de referências concretas a estas importantes matérias, não dá nenhuma garantia de que viremos a ter uma política diferente da até aqui seguida; ao contrário, é um prenúncio de que nestas matérias o Governo do PS vai manter as políticas do passado.

Durante o debate procurámos obter esclarecimento sobre o que seria a política salarial do Governo. Mas não obtivemos mais do que uma tímida alusão à moderação salarial na administração pública, sem esclarecer de resto se isso significa aumentos reais ou alguma recuperação do poder de compra perdido ao longo destes anos, a juntar a uma única referência no Programa de Governo à importância do Salário Mínimo Nacional no combate à pobreza.

Precisamos de uma política que garanta uma mais justa distribuição da riqueza. Para isso é preciso valorizar os salários, a começar pelo Salário Mínimo. E isso não é incompatível, antes acompanha a necessidade de um maior investimento e de uma nova orientação estratégica para o perfil de especialização produtiva para a economia portuguesa, que há muito defendemos. Ao contrário; se o Governo quer pôr fim à lógica actual de assentar a economia no modelo dos baixos salários, então não pode deixar de promover a sua valorização, aproveitando ainda os seus efeitos benéficos para a dinamização da economia.

Nem no Programa de Governo nem no debate vimos esclarecida a orientação do Governo em matéria de privatizações. Mas há silêncios que falam alto. O certo é que não se prevê a alteração daquela que de resto tem sido a orientação do Partido Socialista sempre que esteve no Governo: prosseguir um programa de privatizações.

Particularmente grave é o facto de, apesar de interrogado por duas vezes sobre a matéria, o Primeiro-ministro nada ter dito sobre um importante sector da economia nacional, o sector têxtil. Um sector que afecta directa ou indirectamente 1 milhão de portugueses, com especiais concentrações nalgumas regiões do país como o Vale do Ave ou a Beira Interior, que é responsável por uma fatia importante das exportações portuguesas, não merece deste Governo, nem no seu programa, nem no debate quando perguntado, qualquer referência.

Propomos a realização de um debate de interesse relevante sobre a situação do sector têxtil.

Ouvimos com atenção a afirmação do Sr. Primeiro-Ministro de que a questão das finanças públicas não é a questão central da política económica portuguesa. É preciso agora que isso se concretize numa atitude reivindicativa na União Europeia, no sentido da adequação do Pacto de Estabilidade e Crescimento às necessidades de desenvolvimento e de coesão social dos países menos desenvolvidos, como é o nosso caso.

Mas em relação à consolidação das contas públicas, o Governo afirmou duas linhas de intervenção: a redução das despesa e o aumento da receita fiscal. Esperemos que a primeira não seja orientada para despesa socialmente indispensável ou economicamente valiosa.

Quanto ao aumento da receita fiscal, o Governo centra o fundamental do seu discurso na questão do combate à fraude e à evasão fiscais. É um combate incontornável. Esperemos no entanto que desta vez seja a sério. É que não houve nenhum governo nos últimos anos que não anunciasse o combate à fraude e à evasão fiscais como uma prioridade. Simplesmente nenhum o concretizou. Por isso nesta matéria é preciso ver para crer.

Mas por outro lado é preocupante que em nenhum momento o Governo assuma uma outra orientação que quanto a nós deve ser prioritária: o alargamento da base tributável. Esta deve ser uma prioridade não só por razões de equilíbrio orçamental, mas também por razões de justiça fiscal.

É inaceitável que num país onde os trabalhadores por conta de outrem continuam a arcar com o fundamental das contribuições fiscais, onde os impostos indirectos prejudicam de forma acrescida na generalidade das situações as camadas mais desfavorecidas, onde os pequenos e médios empresários pagam 25% de IRC, onde a banca e o sector financeiro continuam a apresentar sucessivamente aumentos de lucros e ao mesmo tempo diminuição de impostos pagos, que num país com tais desigualdades, o Governo não tenha uma palavra no sentido de corrigir estas graves injustiças e desigualdades.

No Programa de Governo apresentado e neste debate que agora se aproxima do fim há contudo várias medidas anunciadas que merecem desde já o nosso repúdio e que merecerão o nosso combate.

O anunciado aumento da idade de reforma dos trabalhadores portugueses, apresentado debaixo do eufemismo da consideração do aumento da esperança média de vida, constitui um intolerável retrocesso civilizacional, totalmente inaceitável e contraditório até com o combate ao desemprego que o Governo anuncia como prioridade.

A isto se junta o recuo do regime de aposentação da Administração Pública para o regime geral, o que significa que, para o Governo, está no horizonte aumentar a idade de reforma de todos os trabalhadores, incluindo os da Administração Pública, para 68 ou 70 anos.

O Governo assume igualmente como orientação a retoma das propostas de alteração das leis eleitorais para a Assembleia da República e para as autarquias locais, no sentido de um claro empobrecimento democrático e do favorecimento de uma bipartidarização induzida ou de um monolitismo sem pluralidade na gestão das autarquias. O país não precisa destas alterações que o PS estende agora ao PSD para acordo.

Quanto ao referendo da Interrupção Voluntária da Gravidez e não voltando, agora como no passado, a cara a nenhum combate, a nossa posição é que a Assembleia da República tem uma maioria favorável à despenalização e deve exercer a sua competência.

Só esta alteração garante no tempo e no modo que acabem as perseguições e os julgamentos.

Trocar a legítima competência da Assembleia da República por um processo referendário que não se sabe quando se concretiza, é trocar, quanto ao tempo e ao resultado, o certo pelo incerto.

Quanto ao referendo sobre o tratado da União Europeia, a simultaneidade com as eleições autárquicas significa a desvalorização do debate sobre as graves opções que estão presentes no projecto de tratado em discussão, designadamente para a soberania nacional, cumprindo a formalidade da realização do referendo, mas não garantindo um pronunciamento autêntico e genuíno sobre a questão.

Amalgamar referendo e eleições autárquicas é contrariar a clareza e a concentração nas opções europeias e misturar opções referendárias com opções partidárias.

Se a legislatura que agora começa se traduzir como no passado numa linha de continuidade política em questões fundamentais, no fim da governação que agora se inicia estarão por resolver os grandes problemas nacionais e por satisfazer os justos anseios populares de uma vida melhor. Mas para além disso haverá mais gente frustrada e desapontada com a falta de utilidade do voto expresso em 20 de Fevereiro e descrente na vida política nacional.

A direita perdeu as eleições. Mas se à derrota da direita não corresponder a derrota da política de direita, então quem perde é mais uma vez o povo português.

É grande pois a responsabilidade deste Governo e do Partido Socialista.

Pela nossa parte assumiremos as nossas próprias responsabilidades. Aqui estaremos para com propostas próprias apontar soluções para os problemas e as injustiças do país. Aqui estaremos a dar voz às justas aspirações dos trabalhadores e do povo português. Aqui estaremos prontos para apoiar medidas positivas que o Governo, a maioria, ou qualquer outra força política proponha. Mas aqui estaremos também para combater todas e quaisquer orientações que signifiquem a manutenção da política de direita que é responsável pela situação em que o país se encontra e que o povo português condenou a 20 de Fevereiro.

Por uma democracia avançada, pela justiça social, pelo desenvolvimento do país.

Partido Comunista Português

Subscrever Pravda Telegram channel, Facebook, Twitter

Author`s name Pravda.Ru Jornal
X