VOZES CÓMODAS

Os registos da História, pelo menos na sua forma institucional como são normalmente apresentados, resumem os fluxos históricos em trajectos colectivos que marcaram determinada época. Desse colectivo, extraíram-se heróis que, de certa forma, ajudaram ao curso da História, tal como ela nos chegou até nós. Esses heróis, claro, são exemplos que servem apenas para compreensão dos movimentos colectivos que, esses heróis, eles próprios, ajudaram a formar. Agora fixados em bustos, estatuária ou placa toponímica, estes heróis de então cumpriram o seu papel nas grandes transformações dos tempos. Não querendo desmerecer esses heróis da História, interessa antes aqui e neste momento, que nos ocupemos de outros heróis – muitos deles esquecidos.

Em todas as épocas, como disse o poeta, houve sempre alguém que disse não. Homens e mulheres solitários, gritando ao vento ou pregando aos peixes como o nosso Português/Italiano Sto. António de Lisboa (ou de Pádua). A maioria desses heróis não conseguiu mudar o curso esmagador da História, mas deixou um legado para as gerações futuras, para que erros não se repetissem. Em suma: o herói de que se fala é aquele que, no fim de tudo poderia dizer: “Eu não tinha razão?!”.

Claro, foram perseguidos, ridicularizados, espoliados, presos e mortos. Mas, muitos deles não se calaram e, gritaram como Copérnico: E puor si move! Nas pequenas e grandes etapas da História existiram homens assim, incómodos para os desígnios dos poderosos, ou em combate contra os ditames que emperravam a evolução das sociedades do seu tempo. Desde Jesus Cristo, passando por Sócrates que denunciava as vicissitudes da democracia Ateniense, até (isto é um grande salto temporal) o frágil Ghandi ou o rijo Martin Luther King, todos eles bateram-se por, ou lideraram combates de David contra Golias.

Até dentro das mais poderosas instituições, vozes se levantaram contra a Injustiça e contra os interesses instalados. A própria Igreja Católica, no seu secular imobilismo dogmático, albergou homens que tiveram a coragem de denunciar e que não se contiveram perante o sofrimento de vítimas inocentes em nome de Deus. Exemplo são os escritos de um bispo chamado Cajetano que, em pleno século XVI, então no início dos tempos da escravatura, Cajetano denunciava em forma de letra aos seus superiores que os europeus não deviam poder dispor de outras vidas em nome de Deus concluindo da seguinte maneira “nec essemus legitimi domini illorum, sed magna latrocinia committeremus”, i.e., “não somos seus legítimos donos; pelo contrário estamos a cometer um crime de ladroagem”

Os Meios

Ao longo dos tempos, quem era de pensamento livre e de ideias justas, tinha pouca capacidade de intervenção. Tudo se resumia a manobras casuísticas de defesa mais ou menos palacianas sem grande efeito no colectivo. Os meios de divulgação de ideias circulavam sempre entre um número restrito de pessoas, cuja capacidade de intervir na prática se resumia ao implorar discernimento a reis e clérigos, burgueses e senhores da guerra. Um homem era um homem e uma ideia, por mais justa que fosse, não passava mesmo disso: apenas uma ideia a que poucos davam ouvidos. Por isso a Humanidade caminhou de tragédia em tragédia, apesar das ideias justas e modernas que muitos ousavam. Não quer dizer que a contestação desses heróis fosse inglória ou até inútil; só que a Justiça demora bastante mais a fazer-se do que a Injustiça, essa é quase sempre imediata.

Se, durante séculos as ideias tinham uma circulação restrita, o aparecimento de Guttenberg e do seu capital invento, veio modificar as coisas. Começou-se por imprimir Bíblias, mas as pessoas queriam mais e diferente. E rapidamente os textos impressos ganharam corpo em livros de Poesia, Teologia, Novelesca, etc; as ideias começaram a circular com extrema rapidez e sem deturpações. Lembre-se o best-seller que foram “Os Lusíadas” de Luís de Camões, que teve traduções para toda a Europa com grande aceitação em países como a Polónia e a Rússia; isto há perto de 500 anos! (Avanço aqui um tema para uma discussões colaterais - oh, que palavra tão tristemente em voga!): terão sido “Os Lusíadas” o primeiro best-seller global?).

Ideias de todo género ganharam corpo de letra e difundiram-se pela Europa, mal a tinta secava no papel impresso. Claro, bastou esperar perto de cem anos até aparecerem as teorias e estudos mais progressistas e radicais, que tiveram o seu auge no século XVII, um século onde muita coisa foi posta em causa, desde a Monarquia até Deus.

Em resumo: o livro tornou-se um meio privilegiado de divulgação e debate das ideias mais modernas, e as vozes incómodas ganharam audiência e adeptos, na mesma proporção em que ganharam inimigos. E, abreviando, nos tempos seguintes, a letra impressa ajudou a fazer revoluções, a construir impérios, ou tão-somente a favorecer a evolução tecnológica do mundo hodierno. As vozes isoladas tornaram-se grupos, escolas, ideologias e partidos políticos. As vozes da contestação diluíram-se no colectivo, com todas as perversões que os colectivos consigo arrastam.

Os Meios e os protagonistas de hoje

O século XX foi um século de grandes convulsões. Pelo menos foi o século em que as convulsões foram mais notícia, passe a má gramática. A evolução tecnológica das comunicações evoluiu a uma velocidade jamais sonhada, ajudando ao fenómeno que conhecemos hoje como a globalização.

Como tão bem definiu McLuhan, o mundo tornou-se uma aldeia global onde a informação deixou de ter fronteiras e as ideias surgiam às catadupas e eram divulgadas à velocidade do segundo. O cosmopolitismo substituiu o regionalismo e até o nacionalismo, as culturas entrecruzaram-se e os impérios diluíram-se na economia de mercado. O mundo está mais interessado em olhar para fora do que olhar para dentro – olhar para o que está mais perto de si. Podem-se resumir os tempos de hoje no facto de que já não é necessário ir à China para termos, por exemplo, artesanato chinês na nossa sala de estar.

Nunca, desde os tempos conhecidos, o Homem teve esta possibilidade de fazer chegar a sua voz a uma audiência vasta e influente. Hoje, os problemas dos outros, os problemas distantes, passaram a ser nossos problemas; e a possibilidade de contestar, de criar e de influenciar parece estar ao alcance de qualquer um, em qualquer parte do planeta. Então em que situação vamos encontrar os heróis de hoje, os herdeiros das vozes incómodas que, mais atrás neste artigo, foram nomeadas? Onde estão eles, agora que têm meios espantosos de disseminação de informação? Onde estão os líderes, os que gritam na escuridão, os que pregavam aos peixes, onde estão eles hoje?

Por paradoxal que pareça, presentemente, quando os meios de comunicação e o acesso à informação estão à distância de uma vontade apenas, esses heróis de que tanto precisámos e continuamos a precisar, esses heróis parecem terem-se dissolvido na chamada economia de mercado. As vozes incómodas de hoje submergem-se naquilo que é o paradigma dos nossos tempos: todo o Universo é uma gigantesca oportunidade de negócio. De facto, os Meios de hoje não informam nem debatem, apenas vendem ou ajudam a vender. A Arte e a Cultura são, como tudo o resto, meras oportunidades de negócio a explorar nas sua mais variadas facetas. Não será desgraça dizer que, nunca como hoje, a Arte e a Cultura foram tão apáticas, conformistas e passivas. Parece que a Estética moderna foi atacada de um certo infantilismo – o que se percebe dada a obsessão actual da procura da felicidade. E a Felicidade, como oportunidade de negócio, não rima com perturbações, rupturas ou inovações fracturantes. A Imagem ganhou a primazia como forma de comunicação porque a Imagem é o Meio mais fácil de manipular e o mais difícil de alcançar – podemos ser disléxicos mas aprendemos a ler ou a escrever; mas, se formos feios ou gordos, teremos que gastar muito dinheiro para alcançar a Imagem, e aí está uma excelente oportunidade de negócio como tantas outras.

Claro que, num mundo onde o empresário Rupert Murdock detém três quintos da informação do planeta e 200 empresas multinacionais dominam 30% do comércio global, há pouco espaço para a diferença que não seja oportunidade de negócio. Ideia que não dá dinheiro ou verdade que pode trazer prejuízo, são cilindradas pelo poder económico na sua sofreguidão pelo sacrossanto negócio. Poderá alguém gritar que “o Rei vai nu”, desde que depois aceda a expor-se nos media, desculpando-se que se tratava apenas de um happening ou instalação artística; caso contrário, passa-se a fazer parte de uma lista negra secreta e castradora, passa-se a ser um daqueles que furaram um sistema harmonizado e normalizado, tão perfeito como a Imagem.

Repetindo uma ideia já abordada neste artigo, nunca os Meios foram tantos e as vozes incómodas foram tão poucas. Os intelectuais, os escritores e os artistas que antes eram a voz da razão perante a ferocidade do Poder, hoje passeiam-se diletantes perante a maior das misérias ou a mais ignóbil das injustiças, com comentários pueris sobre bens de consumo ou escrevendo fastidiosos romances onde, invariavelmente, se abordam temas como a crise da meia-idade, infidelidades ou amores saudosos. Onde estão os Balzacs, os Zolas ou os Steinbecks de hoje? Não sabemos.

E agora?

Em Portugal, a situação atrás descrita é gritante. A Intelligentsia local hiberna à sombra do poder político e económico e a poesia, por exemplo, deleita-se por entre flores, passarinhos e chávenas de café. Situações de injustiça chocante, não merecem o mínimo comentário, a mais ínfima intervenção, a mais fugaz tentativa de influenciar as pessoas. Veja-se o caso da imigração de Leste. Milhares de Ucranianos, Russos, Romenos ou Moldavos, imigrados em Portugal, são explorados num regime de quase escravatura, sem que ninguém se importe ou alerte para a situação indigna em que esses homens e mulheres vivem e trabalham.

Diante de um mundo tão hostil como é o mundo de hoje, o que poderemos fazer para que as vozes incómodas se façam ouvir? Haverá muitas maneiras, concerteza. Mas todas partirão de nós como indivíduos. Será a partir de cada um de nós que poderá surgir algo de novo e justo. Tentemos trazer para o nosso dia-a-dia a Justiça e a Bondade, olhemos para o nosso semelhante como um ser humano e não apenas como uma oportunidade de negócio. Cabe a cada um de nós a responsabilidade de não alinhar, de dizer “não”, de não encarreirar. Sim que, se hoje só nos dão Vozes Cómodas, devemos exigir que se ouçam as Vozes Incómodas. Devemos, gritar, falar, escrever e ensinar para que um dia não cheguemos à conclusão frívola incluída na frase do surrealista Roger Vitrac: “Na floresta incendiada os leões eram frescos”.

Teixeira Moita

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Author`s name Pravda.Ru Jornal
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