INTERVENÇÃO DE ALDA SOUSA A PROPÓSITO DO 8 DE MARÇO

Senhor Presidente

Senhoras deputadas e senhores deputados,

A 8 de Março comemoraram-se 147 anos sobre a data em que centenas de operárias norte-americanas foram barbaramente espancadas quando participavam numa manifestação em defesa da jornada de trabalho de 10 horas diárias. Estas mulheres protagonizavam a primeira greve exclusivamente feminina na história americana. Exigiam então um estatuto igual ao dos homens.

51 anos depois, a 8 de Março de 1908, outra manifestação exigia o direito de voto para as mulheres e o fim do trabalho infantil. Em 1910, a II Internacional Socialista propunha que este dia passasse a ser celebrado como o Dia Internacional da Mulher, para assinalar a luta das mulheres pela sua emancipação. E assim se faz desde então.

São quase cem anos de comemorações para uma luta que nunca termina. Um ano depois da aprovação da iniciativa, em 1911, em Nova Iorque, um grupo de mulheres trabalhava como sempre, trancada nas instalações de uma fábrica. A jornada de trabalho era ali de 16 horas diárias e as mulheres ficavam fechadas, para que não tentassem sair da fábrica. Um fogo deflagrou e, não podendo escapar, 146 mulheres morreram carbonizadas. O dono da fábrica viria a ser julgado e condenado a pagar 20 dólares de indemnização.

Vinte dólares pela morte de 146 mulheres. Era isto que valia a vida de uma mulher em 1911: 13 cêntimos.

Muita coisa mudou desde então. Tudo o que mudou foi conquistado a pulso, pela luta de milhares e milhares de mulheres. O direito ao voto, o direito à voz, o direito ao divórcio, o direito ao trabalho, o direito a sair do país, o direito à educação, o direito ao prazer, o acesso a cargos políticos. Nada foi oferecido. E basta olhar para a composição de género das instituições políticas para perceber como ainda há tanto para conquistar. Por isso, senhoras deputadas e senhores deputados, o dia 8 de Março não foi criado para oferecer flores ou galanteios. O dia 8 de Março nasceu como uma luta e uma luta continuará a ser. 13 cêntimos, valia a vida de uma mulher em 1911. E hoje, quanto valem as mulheres?

Hoje, nesta mesma Assembleia da República, uma associação de fanáticos e fundamentalistas organizou um debate para defender uma mentira sem qualquer credibilidade: que há uma relação de causalidade entre o aborto e o cancro da mama. Basta consultar o site do National Cancer Institute dos EUA para nos enteirarmos da imensa mentira dessas afirmações. Mas pouco interessa que todos os estudos científicos desmintam tal enormidade. O que interessa é assustar.

Mas o mais extraordinário é que a conferencista que tem hoje o desplante de entrar nas instalações deste parlamento para divulgar crendices, é presidente de uma associação australiana que defende explicitamente a desigualdade de oportunidades entre mulheres e homens no acesso ao emprego, que defende que os homens devem trabalhar e que as mulheres devem ficar em casa, e que defende por exemplo que as mulheres não são capazes de exercerem funções nas forças armadas ou policiais. Esta mesma conferencista, Babette Francis, causou um escândalo no seu país, obrigando uma câmara municipal a pedir desculpas públicas por ter financiado a edição de um livro seu, onde defendia a tal teoria sobre o cancro da mama. O que uma câmara municipal rejeita e denuncia na Austrália tem honras de púlpito na Assembleia da Republica portuguesa.

São estes os grupos que distribuem folhetos aterrorizadores a crianças, invocando canibalismo em Taiwan e um perigo asiático associado ao aborto – e são estes grupos de fanáticos que têm a maioria PSD como refém.

Quase um século depois, a vida de uma mulher já não vale 13 cêntimos – mas vale mentiras, perseguições, humilhações. A sua dignidade e os seus direitos, no nosso país, pouco valem. Há uma semana, aqui no Parlamento, voltou a ser negado às mulheres, de novo, o seu direito a tomarem decisões sobre a sua maternidade. Com o voto impiedoso da direita, as mulheres continuam a estar confinadas, já não a uma fábrica trancada, mas a clínicas de vão de escada e à humilhação de serem investigadas, devassadas na sua intimidade e julgadas e condenadas por abortar. Cem anos depois, ainda há muitas razões para vos dizer, senhoras e senhores deputados, que o 8 de Março não é um dia para dar flores às mulheres.

E essas razões aumentam, porque há sinais preocupantes de regressão. Há poucos dias, a Conferência Episcopal exigiu ao Parlamento que defina o conceito de vida. Ao que chegámos! Há quem queira que o Parlamento decida sobre os debates religiosos ou espirituais sobre o sentido da vida. Não faltará muito para que alguém nos exija a criação de uma comissão parlamentar eventual para estudar a ressurreição.

O Parlamento é um órgão de soberania de um Estado laico. O Parlamento não deve nem vai discutir concepções teológicas sobre a vida. Essas são do domínio exclusivamente pessoal de cada um e devem ser respeitadas como tal, mas nunca impostas por lei. Registo que todos os grupos parlamentares, com a excepção do silêncio tumular do PP, rejeitaram de imediato esta intimação.

Por isso mesmo, tenho uma mensagem para a Conferência Episcopal e para os senhores bispos que entendem que, sendo um aborto um pecado, portanto merecedor de penitência, pedem ao Estado que transforme essa penitência num processo e numa ameaça de pena de prisão. Senhores bispos: chegámos ao século XXI, e é direito da mulher escolher livremente a sua sexualidade e maternidade, sem ser vigiada nem tutelada nem perseguida nem humilhada.

O Parlamento deve ser claro, sim, devolvendo aos portugueses o direito de decidir se as mulheres devem ir presas por abortar, ou se o Código Penal deve ser modificado. Se devem ser julgadas ou não. É para tratar disso, e não do fim e o do princípio da vida que fomos eleitos: para decidir que leis nos regem a todos, independentemente da nossa religião ou de não termos religião.

E é por isso que venho aqui denunciar o fanatismo. E que melhor exemplo do que o desse inenarrável cronista, João César das Neves, o Avelino Ferreira Torres dos jornais, que no “Diário de Notícias”, escrevia que a esquerda quer impor o direito ao aborto até aos 18 anos. É a este ponto que chegou o debate. E deve ser este o sinal de alerta para os que se mantêm reféns dos mais fanáticos entre os fanáticos: é que já poucos dão a cara por tamanho absurdo. Está na hora de acabar com isto e pôr Portugal na Europa. Mesmo a Polónia, dominada pelos sectores mais conservadores da Igreja, prepara-se para voltar a legalizar o aborto. Seremos os últimos? Não podemos ser. A menos que, como escrevia um colunista há anos, um ilustre director de jornal, depois deputado e hoje ministro da defesa, Portugal se mantenha com políticas “Cro Magnon” sobre o aborto, que “rejeitam a Europa moral”.

Quase um século depois, a vida das mulheres já não vale 13 cêntimos. Mas, em Portugal, as mulheres continuam a ganhar menos e a trabalhar mais. Continuam a ser as principais responsáveis pelo trabalho doméstico e pela educação dos filhos. E serem permanentemente penalizadas por isso.

Milhares de mulheres são vítimas de violência doméstica. Dezenas morrem por ano. O Bloco orgulha-se de se ter batido aqui, foi mesmo a sua primeira iniciativa legislativa, para que o crime de violência doméstica passasse a ser público. Lei que teve resultados evidentes. Continuaremos a bater-nos pela defesa da igualdade de direitos, por salários iguais, pelo fim dessa vergonha nacional que são os julgamentos da Maia e de Aveiro e todos os outros que aí vêm.

O dia 8 de Março não foi criado para oferecer flores. Foi criado para a luta pelos nossos direitos, seguindo o exemplo das operárias americanas, das sufragistas do princípio do século, das feministas das décadas recentes.

Para que a vida de uma mulher não seja reduzida a 13 cêntimos, nem mesmo ao preço de uma flor.

Bloco de Esquerda

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