PARA QUE SERVE O AVANÇO DA ESQUERDA NA EUROPA?

Podíamos de facto plagiar as primeiras frases de Marx e Engels no Manifesto Comunista, para melhor descrever a tempestade política que por aí vai. Tanto mais que esta esquerda é questionadora e expressamente advoga uma nova ideia social (fur eine neue sozial idee – por uma nova ideia social, lema da coligação de esquerda na Alemanha) o que a diferencia da socialdemocracia tradicional, ou das formações âmbiguas herdeiras dos partidos comunistas da Europa de Leste, aderentes de facto à restauração capitalista explícita, como é o caso do SLD da Polónia.

Um camarada ferrenho dirá que estes avanços são o directo produto da formação há dois anos do Partido Europeu da Esquerda, a fórmula orgânica da esquerda europeia para melhor actuar no quadro supranacional da UE. O PEE é sem dúvida um augúrio de transformação, mas a sua acção está ainda marcada por grandes defensismos entre grupos da esquerda nos vários países – o PCP não integra o PEE, o BE tem com ele uma atitude de colaboração e a RC saudou e esteve presente no seu acto fundador, em Roma. Embora um facto extremamente positivo no quadro de uma esquerda internacionalista que pouco ou nada tem praticado o internacionalismo, a verdade é que o PEE só agora dá os primeiros passos. E os interessantes resultados verificados apenas mostram como é potente o quadro em que a «internacional» regional europeia pode crescer.

A territorialidade dos grupos nacionais da esquerda entre si, só tem a expressão que tem porque é ainda confuso o quadro estratégico do projecto socialista e supranacional na Europa e um pouco por todo o mundo.

A questão que falta responder pela esquerda é tão simples quanto isto: se sabemos o que é a globalização capitalista, ainda não mostrámos o que queremos com o internacionalismo socialista.

Verifica-se por outro lado uma cristalização da análise de uma parte da esquerda que continua a advogar o confinamento da luta ao espaço nacional. Como se pode encontrar no discurso de Jerónimo de Sousa no lançamento da sua candidatura presidencial. Considerado este espaço nacional, de resto, o espaço privilegiado de acção. Dentro daquela ideia anti-imperialista que nos dizia que a luta de libertação «nacional» era a aposta de uma estratégia de emancipação no quadro da opressão imperialista. Estratégia essa, a de um patriotismo de esquerda, que seria adequada para periferia das nações dominadas em relação às dominantes, mesmo no interior do continente europeu.

É esta transposição mecânica, redutora, da análise de Lenine, para a realidade actual europeia que resume a dissidência política no seio da esquerda europeia.

É que ao patriotismo de esquerda dos anti-imperialistas tradicionais, se opõe uma visão europeísta, supranacional, de esquerda, que vê na luta nacional é certo, mas igualmente na acção internacional, um espaço crescente de intervenção. E que considera os avanços na correlação de forças nacionais como ligados à geração de uma consciência supranacional e internacionalista dos trabalhadores europeus. A ideia da esquerda europeísta, internacionalista, é que o espaço do capitalismo europeu, supra-nacional, tem de ser também ocupado pela luta de classes e que é no plano de um projecto de supranacionalidade «sem nações», a ideia fundamental e original de resto do comunismo, que um novo cenário deverá ter lugar.

E, desde logo, coloca hoje a luta de classes no plano supranacional o problema, com estes resultados eleitorais, e os que se esperam do próximo reforço da Refundação Comunista italiana e do Partido Comunista Francês, a ideia de que está em cheque a edificação de um tratado constitucional europeu segundo os cânones eurocráticos. E que a posição de uma social-democracia de direita que insiste na teimosa imposição do texto já chumbado por franceses e holandeses, sem revisão ou negociação com as forças dos trabalhadores, é uma perigosa ilusão que só favorece aqueles, além atlântico, que lutam para que o seu papel hegemónico no mundo não seja desafiado.

As forças que agora avançam eleitoralmente são contrárias ao rumo capitalista da Europa! Mas advogam ainda assim uma nova ideia de Europa dos povos, capaz de tornar real o sonho de um continente sem rivalidades, de paz e de abertura ao mundo. E não dispensam por isso de almejar modificar e transformar a realidade política nos órgãos da União Europeia. Nunca antes as forças políticas do status quo capitalista imaginaram ter pela frente este tão magno desafio.

O capitalismo não quer nem pode levar até às suas últimas consequências a ideia de globalização porque lhe é intrínseco o espaço da nação como lhe é intrínseca a ideia de propriedade privada dos meios de produção. O capitalismo não pode nunca dispensar a ideia de nação ou de dominação nacional, política e económica, das nações periféricas pelas dominantes. Só o movimento dos trabalhadores transporta consigo o potencial de superar o constrangimento nacional. E quando surgir na agenda a ideia de igualdade, de cooperação e de integração, não restará ao capital outra solução do que se opor à efectiva unidade entre trabalhadores.

Saudemos portanto a nova realidade que nasce na Europa por detrás dos avanços eleitorais da esquerda.

Mas porque é que a esquerda avança no centro desenvolvido? Depois de durante décadas o único potencial de revolta e transformação parecer ter apenas origem na periferia e extrema periferia do capitalismo? O que faz gentes abastadas, com casa, cama e roupa lavada, mas também com automóvel e férias no Algarve, indignarem-se com a actual deriva de desemprego, de ameaças à segurança social, de retrocesso salarial e escolherem como opção política e eleitoral o que para muitos não passa de uma quimera: a ideia de socialismo?

Uma primeira resposta advém do núcleo fundamental das ideias de Marx. Que nos dizem que não são necessariamente os pobres, os desgraçados e analfabetos, os que melhor transportam o cadinho de um mundo novo. A ideia de proletariado, de trabalhador assalariado como agente e sujeito histórico, recentra no operário instruído, dotado de capacidade de organização da produção, o papel fulcral do processo transformador. Por isso, para os clássicos do marxismo, a revolução tenderia a acontecer antes de tudo naqueles países onde o capitalismo estivesse mais avançado, quer no plano do desenvolvimento das forças produtivas, como no plano das contradições entre um capitalismo fortemente centralizado, monopolista, e uma sociedade profundamente espoliada da riqueza astronómica que é capaz de produzir.

Para o marxismo, a consciência do proletário tem a ver com a compreensão do quanto ele produz e o quanto o capitalista dele se apropria. Por isso, a magnitude da riqueza apropriada pelo capital, no capitalismo desenvolvido, com a sua alta produtividade, é muito maior e será portanto aqui maior a noção de como é insuportavelmente injusta a repartição da riqueza.

Foi por vicissitudes históricas que as revoluções anti-capitalistas se deslocaram para a Rússia e para a China, afastando portanto a realidade do que tinha sido modelado na teoria. Essa «anomalia» não desmentiu contudo, necessariamente, a ideia original de que a revolução acontecerá sobretudo, lá, onde o capitalismo está mais avançado. Apenas suscitou novas exigências de organização e de teorização políticas anteriormente não imaginadas. Os frutos do processo revolucionário na periferia do capitalismo ainda não provaram porém serem capazes de conduzir ao socialismo. Entendido aqui no seu núcleo fundamental: uma economia e uma sociedade de produtores livres e livremente associados. E até por virtude dos insucessos no leste, mas também pela nova realidade política que emerge na Europa, podemos voltar a dizer que a revolução regressa com estes resultados, qual filho pródigo, para o lugar original dos confrontos: o centro capitalista desenvolvido.

Uma condicionante óbvia do ascenso da esquerda prende-se com a grave estagnação que o capitalismo atravessa, desde os anos 90 do século XX, com um crescimento económico asténico, incapaz de proporcionar aos trabalhadores qualquer acréscimo no seu standard de necessidades. Desde o new deal rooseveltiano que o capitalismo conquistou um compromisso duradouro com a classe operária, nos EUA, e que se estendeu em boa parte à Europa no pós-guerra: os trabalhadores aceitam o jogo de aumentar a produção de riqueza qualquer que seja a magnitude deste acréscimo, a favor do capitalista, desde que de tempos a tempos, os salários também aumentem e assim melhore o chamado standard de necessidades do operário. Ora, esse compromisso sobre o qual assentou boa parte da paz social que caracterizou a Europa durante décadas, está em ruínas desde que começou o ciclo da longa estagnação que estamos a viver. Com as exigências do capital para restaurar a expansão e a taxa de lucro, novos ataques ao standard de necessidades dos trabalhadores estão em marcha e atingem amplas camadas intermédias, rompendo com os consensos em que assentou muita da estabilidade política. As fissuras sociais decorrentes da forma como o capitalismo quer lidar com a crise explicam o crescimento da esquerda. Esquerda que aliás tem todas as condições para ampliar as suas vitórias.

Contudo, o sentimento que está por detrás das votações da esquerda é antes de tudo defensivo, no sentido em que os trabalhadores depositam nas forças de esquerda a sua confiança para reconquistarem as progressões salariais e o emprego agora postos em causa. Os próprios programas dos partidos de esquerda recuperam as ideias neo-keynesianas de recorrer ao Estado como locomotiva de desenvolvimento e de restaurar as protecções do Estado chamado de providência. Os partidos de esquerda, à esquerda da social-democracia oficial, parecem centrar todo o seu programa político e económico numa linha ainda assim social-democrata de esquerda, assente no Estado e nos programas sociais públicos. Em parte alguma se nota, por enquanto, um esforço para equacionar os limites do próprio capitalismo na sua actual crise de natureza estrutural, a qual dificilmente poderá ser superada com um programa tão limitado. Como pode o Estado por si só servir para compensar um capitalismo privado que não cresce? Para alcançar o crescimento e a expansão, o problema que deve ser equacionado é o de estimular novas relações de produção e não apenas fazer variações entre uma economia privada em crise e uma economia estatal capaz de atenuar o plano inclinado dessa mesma crise. Por isso, o avanço da esquerda só alcançará sustentabilidade se ultrapassar o defensismo do programa actual e procurar abordar os problemas que podem dar lugar a uma economia realmente nova.

Um novo modo de produção pode resultar do enfrentamento de classe no seio das grandes unidades de produção capitalistas, como era de resto a visão dos clássicos. Mas a verdade é que hoje, a par da luta de classes mais convencional, cresceu o espaço económico do Estado, ao lado do capitalismo privado. Este espaço constitui um ambiente onde mais rapidamente podem germinar novas relações de produção desassalariadas, onde a remuneração passe a estar ligada à produção e a criatividade dos trabalhadores seja libertada. Germinam muitos sectores, formalmente hegemonizados pelo capitalismo, mas onde a produção tende a organizar-se em formas alternativas e mesmo cooperativas. Pela transformação da economia pública e pelo apoio às formações económicas emergentes, pode uma política de esquerda fortalecer todos os elementos de um modo de produção alternativo, avançado, virado para a satisfação das necessidades sociais e para o engrandecimento da mulher e do homem, única via para a superação sustentada da crise capitalista que não para de se adensar. São estes elementos de uma política realmente alternativa para além daquilo que poderíamos situar como uma intensa sensibilidade social, visível nos slogans da esquerda em crescimento, que podem realmente dotar a nova situação política de uma mais potente capacidade ofensiva.

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