Quando a liberdade de imprensa se torna intrusão

Muito se escreve na imprensa ocidental acerca da liberdade de imprensa na Federação Russa, muitas vezes por jornalistas que não entendem o que escrevem, nem sequer se maçam a pesquisar a área sobre a qual vão escrever, mesmo na Internet. A verdade crua e nua é que as coisas não são bem como andam a dizer por aí.

PRAVDA.Ru é um exemplo da imprensa livre na Federação Russa. Como um dos três directores e chefes de redacção (nesse caso da versão portuguesa) e sendo amigo pessoal dos directores e chefes de redacção da versão russa Vadim Gorshenin e da versão inglesa Inna Novikova, posso declarar que não há qualquer tipo de controlo, nem de influência exercida sobre nós, em qualquer das versões.

Quando iniciei o projecto da versão portuguesa em Setembro de 2002, tive reuniões em Moscovo com as autoridades competentes. Á pergunta se havia linhas-guia a seguir, veio a resposta: “Claro que não. Tem de colocar no jornal a verdade, mais nada. Se a verdade dói a quem for, assim seja”.

O que não se pode fazer na Federação Russa é divulgar mentiras como se fossem a verdade ou providenciar informação gratuitamente a elementos subversivos que trabalham contra o Estado. Por exemplo, há restrições sobre o conteúdo das informações que podem ser divulgadas durante uma crise provocada pelas acções de terroristas. Logicamente.

Porém, há que traçar uma linha entre normas de funcionamento, como existem na Federação Russa, e normas repressivas, como existem hoje em dia na Argélia e em Tunísia, por exemplo, onde a imprensa não está totalmente livre e onde os jornalistas podem ser processados por dizerem a verdade simplesmente porque o Estado a entende como mentira.

Hoje surgiu um belíssimo exemplo duma imprensa intrusiva em Portugal, num dos jornais diários mais vendidos (nem interessa qual, porque esse jornal não interessa mesmo), onde veio na capa a revelação que nas escutas policiais ao telefone do senhor Jorge Nuno Pinto da Costa, Presidente do FC Porto, havia referências na gíria portuguesa a prostitutas.

Primeiro, o que isso tem a haver com notícias e segundo, quem passou a procuração a esse farrapo (que não se pode chamar de jornal) de falar da vida pessoal do Sr. Pinto da Costa (mesmo sendo verdade a peça)? Terceiro, se essas escutas estão incluídas no processo policial “apito dourado” que investiga a corrupção no futebol, como é que o conteúdo pode estar apresentado na praça pública, porque sendo parte do processo judicial, influencia o caso. Em muitos países o caso de investigação contra Sr. Pinto da Costa seria considerado nulo só por esse motivo.

Ora bem, o jornal em questão apresentou a cabeça no bloco, porque entre utilizar prostitutas (que não é crime) e utilizar palavras que referem a prostitutas, há uma grande diferença e fica aberto a um processo de calúnia e o devido pagamento duma multa elevadíssima. E merece.

Se um jornal serve para apresentar as notícias à população e se um jornalista serve para as escrever ou apresentar na televisão ou rádio, há que discernir entre o que constitui uma notícia no interesse público e o que constitui fofoqueira, coscuvilhice ou bisbilhotice, seja o que for, que pertence à sala do cabeleireiro ou nos bares, mas que só pertence à sarjeta do jornalismo.

Se Sr. Pinto da Costa utilizar/utilizou ou não prostitutas, o problema é dele e de mais ninguém. Se tivesse sido um caso de rapazes de 18 anos (que não foi), teria também sido uma questão particular. Contudo, se tratasse de rapazes ou moças de sete anos, seria sim uma questão que poderia ser apresentada como de interesse público, porque sendo uma figura pública, a cometer um crime, sujeita-se ao facto que o público tem o direito de exigir um comportamento pelo menos dentro dos limites legais.

Caso contrário, perde o direito. No entanto, o facto do Sr. Pinto da Costa estar sob investigação no processo “apito dourado” não quer dizer que é culpado de qualquer coisa que fosse, até ser julgado (e com essas manchas atiradas contra seu carácter, como é que o processo pode continuar de forma objectiva?) e o facto dele ser investigado não quer dizer que perdeu seus direitos como ser humano.

Imprimir na primeira página duma publicação diária que Senhor X. faz referências a prostitutas nos seus telefonemas (informação que de qualquer modo foi propriedade das autoridades policiais) é uma intrusão na vida pessoal, é interferir com a objectividade do processo legal e é uma expropriação do carácter judicial e fundamental do material em questão.

Isso não se trata da liberdade de expressão ou da imprensa. Trata-se de intrusão.

Há por isso três pontos a ter em consideração na questão da liberdade de divulgar (porque sendo jornalistas, assumimos uma certa responsabilidade e como chefes de redacção e directores, um grau de responsabilidade muito maior).

Primeiro, há normas deontológicas a seguir. Segundo, além de normas, há uma questão ética a respeitar. As normas passam pela representação da verdade na condição de ser de interesse público, e só nessa condição, e a questão ética tem a ver com o respeito pelo ser humano, providenciando-lhe o mesmo tratamento que nós queríamos receber se estivéssemos no lugar dele.

É basicamente uma questão de decência comum. Os leitores saberão discernir entre os órgãos que trazem notícias a eles, e os outros e depois questionar-se-ão se valeu a pena gastar o seu dinheiro do modo que gastaram.

Timothy BANCROFT-HINCHEY PRAVDA.Ru Director e Chefe de Redacção

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