BE : Florestas

PROJECTO DE LEI N.º /IX

ESTABELECE MEDIDAS PARA A REGULAÇÃO E ALARGAMENTO DO PATRIMÓNIO PÚBLICO FLORESTAL

Exposição de motivos

1. Os fogos do verão de 2003 ainda estão bem frescos na memória de todos. Com efeito, o impacto da devastação produzida pela calamidade e a velocidade dos acontecimentos puseram todo o país a reflectir sobre causas, sobre soluções que, ainda que não possam evitar completamente a ocorrência de incêndios, podem solidamente atenuar os factores de risco e explosão. A catástrofe provocou 21 mortos na sequência dos fogos deflagrados, cerca de meio milhão de hectares ardidos, destruição de biodiversidade, agravamento da erosão dos solos. Portugal, lenta mas inexoravelmente, foi-se tornando, com a cumplicidade do silêncio e da incompetência, num país cada vez mais combustível onde a política florestal habitual foi a prática de uma florestação artificial, de costas voltadas para a preocupação ambiental e, o mais grave, sem se questionar face aos avisos sucessivos da comunidade científica, nacional e internacionalmente conhecidos, sobre os factores acrescidos relacionados com as alterações climáticas em curso. Na verdade, se o clima, o comportamento das populações e as características da floresta, consubstanciam uma mistura explosiva inevitável, chegou o momento de dar combate ao flagelo recorrente de forma articulada mas persistente. Não se presume que tudo se resolva com legislação ou com mais esta ou aquela medida avulsa; mas convictamente julga-se indispensável não adiar a concretização de soluções e medidas urgentes.

2. É do conhecimento geral e reúne um amplo consenso que, para a execução de uma boa política florestal, para uma boa gestão e ordenamento do território e, até, para uma eficaz política de prevenção de fogos, o papel do Estado é insubstituível. É insubstituível porque o Estado já é proprietário de um interessante, ainda que claramente insuficiente, património de terrenos e matas, onde se pode – e se deve – executar preliminarmente uma coerente e rentável (aqui deve-se ler quer do ponto de vista económico quer ambiental) política florestal pública, com desejáveis efeitos de demonstração para o sector privado. É igualmente insubstituível, por razões que se prendem com a capacidade (única) do Estado em dotar de meios técnicos e humanos todos os intervenientes (de corporações de bombeiros, às estruturas de protecção civil e às próprias autarquias), para além do dever do Estado como regulador da economia florestal.

Num momento em que parece moda propagandear o desmazelo do Estado face à gestão do que é seu, tem sentido recuperar dois bons exemplos que atestam pela positiva o argumento de que o papel do Estado é insubstituível, que sendo bem direccionado obtém resultados positivos. São os casos da exploração estatal da Mata Nacional de Leiria e da Companhia das Lezírias. No que à Mata Nacional de Leiria (MNL) diz respeito, convém recordar que praticamente até 1996 não se registavam fogos dignos de registo. E isto por uma razão muito simples: aplicava-se uma regra essencial de uma inteligente política florestal, que consiste em afectar pelo menos 20% dos rendimentos gerados pela floresta na própria floresta, nomeadamente em investimento, prevenção, equipamento e formação. Logo que o Estado, por outras necessidades erradamente consideradas prioritárias, como a redução das despesas correntes, deixou de afectar esta verba para estes fins, a degradação instalou-se e os fogos sobrevieram, como no Verão passado. Chegou-se ao ridículo de um fogo ter deflagrado num sábado, e, como a administração da MNL não possuía verba para manter ao fim de semana pessoal afectado à vigilância e prevenção, não se pôde utilizar equipamento disponível (um auto-tanque de 1500 litros de água) para ataque ao fogo e, a solução, foi … deixar arder.

Sobre a Companhia das Lezírias (CL) que, segundo dados conhecidos, já rendeu aos cofres públicos ‘largos milhões de euros em IRC e dividendos’, estamos em presença, mais do que uma ‘empresa’ proprietária de terrenos, de uma zona natural riquíssima e privilegiada, que desde logo ao Estado deve manter no seu património. Na CL não há memória de incêndios relevantes, precisamente porque em devido tempo e de forma constante foram tomadas medidas como a compartimentação da floresta, a limpeza dos aceiros, o acompanhamento e vigilância permanente da floresta e, que, ainda permitiram resultados positivos no plano económico e ambiental. A CL, sob administração do Estado, possui uma área próxima dos 20.000 hectares, cujas terras mais ricas se situam na conhecida Lezíria norte e sul. No que se refere a esta última, chama-se à atenção para que qualquer processo de alienação de terras se revestirá de preocupante gravidade, senão mesmo ferida de ilegalidade, dado que uma parte considerada desta e manifestamente estratégica está integrada na zona de protecção do estuário do Tejo onde radicam áreas de nidificação das aves mais importantes da Europa e protegidas por tratados internacionais. Nos vastos terrenos da Companhia das Lezírias produzem-se arroz, milho, beterraba e outras culturas e, em extensas zonas de pastagens, existe uma produção de bovinos cujas carnes estão já certificadas como de grande qualidade. Nas propriedades da mesma Companhia, numa outra área junto à zona da Charneca e com cerca de 10.000 hectares, podem-se contemplar vinhedos e olivais onde já se produzem excelentes vinhos. E, por fim, num momento em que tanto se fala em diversificar a florestação de modo a evitar as extensas manchas contínuas de pinhal e eucaliptal – verdadeiras bombas relógio prontas a arder –, na CL verifica-se uma florestação em que, no seu núcleo central (cerca de 6000 hectares), são plantados em perfeita harmonia, sobreiros, pinheiro-bravo e eucalipto. Acresce a tudo isto um verdadeiro paraíso preservado, onde a paisagem, a economia, o ambiente e o reino animal (o efectivo da CL conta com bovinos, ovinos, equinos, lebres, perdizes, patos, rolas, pombos bravos, cegonhas, águias, lontras, raposas, javalis, etc.) convivem num verdadeiro santuário. Pergunta-se, de forma pertinente: uma eventual e insensata privatização que poderia render de imediato 100 a 150 milhões de euros para um uso efémero e que manifestamente não resolveriam parcial ou definitivamente qualquer défice do Estado, compensaria a destruição irremediável de uma boa gestão de uma floresta pública, a servir de exemplo para todo o país e agentes económicos? Ou, inversamente, ao alienar-se este riquíssimo património, que a entrar na esfera privada e dada a privilegiada localização – fazendo fronteira com zonas urbanas – irá provavelmente ser usado para especulação imobiliária, não estaria o Estado a dar a toda a sociedade um trágico exemplo de um evitável desastre anunciado?

3. O projecto-lei que agora se submete à Assembleia da República visa reforçar o alargamento do património público florestal. A floresta portuguesa, para além da sua importância sócio-económica directa e evidente, gerando riqueza e emprego para um grande número de portugueses, produz ao mesmo tempo bens e serviços para a comunidade. Dentro destes bens e serviços é de destacar o papel da floresta “para o bom regime das águas e defesa das várzeas, para a valorização das planícies áridas e benefício do clima, ou para a fixação e conservação do solo, nas montanhas, e das areias no litoral marítimo”. Como refere a legislação que instituiu o Regime Florestal (1901-1903) para submeter a fins de “utilidade nacional” as áreas cuja arborização se revelasse fundamental para aqueles objectivos.

A diminuição do património florestal público tem prosseguido ao longo do tempo por desafectações de natureza diversa operadas por dispositivos legais. Por outro lado, a prossecução de uma política florestal nacional, nomeadamente no que respeita à produção de bens e serviços ambientais para a colectividade, exige perspectivas de longo prazo com implicações na escolha das espécies e nos modelos de silvicultura normalmente diferentes das mais importantes preocupações dos proprietários privados.

Importa ainda corrigir assimetrias com raízes históricas: o Estado Português, é, no contexto europeu, o país com menor área sob a sua tutela. Com efeito, após a Revolução Liberal, as áreas florestais pertencentes à Coroa, às Ordens Religiosas e às Comunidades Locais (baldios) foram na sua grande maioria apropriadas individualmente, “num repasto de leões” (segundo o historiador Castro Caldas, na sua História da Agricultura Portuguesa, EPN, Lisboa), o que justifica que na actualidade apenas 3% da área florestal nacional seja do domínio privado do Estado e 12% das Comunidades Locais. Como factor agravante, a restante propriedade privada está disseminada em unidades tão pequenas (milhares e milhares de pequenos proprietários – e aqui os que são conhecidos – dado que a ausência de um cadastro completo e actualizado nem sequer permite identificar milhares de outros eventuais proprietários), calcula-se menos de um hectare de terreno, que se revelam impossíveis, em geral, de serem rentabilizadas.

Acresce ainda, o que é mais trágico, a actual lei que regula parte do direito de propriedade (Decreto nº16.731, de 13 de Abril de 1929, artigo 107º) não resolve o problema. Com efeito, o sistema da propriedade ‘indivisa’, que resulta da legislação referida, propicia ainda mais a existência de vários comproprietários. Milhares de pequenos proprietários que não limpam as suas terras (ou matas) pertencem a esta teia infinita de pequenos comproprietários que geram através dos herdeiros, e mais disseminados ainda, novos comproprietários. São conhecidos (porque chegam às Câmaras Municipais vários protestos por escrito) casos em que algum pequeno proprietário mais zeloso ou necessitado de procurar alguma rentabilização da sua pequena propriedade até está disposto a limpar ou a promover a florestação na área à sua guarda, mas, ao estar cercado de outros pequenos proprietários que por desconhecerem que são proprietários de terrenos circundantes, ou por indiferença à urgência da prevenção de fogos, inviabilizam o acesso (por vezes a simples abertura de caminhos aos terrenos dos vizinhos), impedindo a florestação ou a rentabilização alheia, paralisando efectivamente a aplicação de qualquer política florestal ou de prevenção, ou mesmo de ataque a fogos deflagrados. E não se trata de exemplos isolados ou excepcionais.

4. Por último, o perigo de novos incêndios florestais exige do Estado um esforço redobrado de capacidade de intervenção. A Lei de Bases da Política Florestal (Lei nº33/96 de 17 de Agosto), aprovada por unanimidade na Assembleia da República, reflectindo aquelas exigências, indica claramente no seu artigo 8º, alínea c) que compete ao Estado ampliar o património florestal público. A esta luz torna-se incompreensível e inaceitável qualquer alienação de património, em particular num período tão sensível, em que as consequências dramáticas dos fogos (em cidadãos vitimados, em área ardida e em prejuízos económicos e financeiros tremendos) dos últimos verões, põe em primeiro plano a urgência de medidas de prevenção e de alteração radical de política florestal.

O país não pode assistir atónito e passivo, como se de um fatalismo se tratasse, à constatação sistemática e recorrente de matas e terrenos abandonados, de proprietários indiferentes ou desacompanhados, enfim, à demissão do Estado em implementar, em várias vertentes, as medidas de excepção que se impõem em tão grave situação. Para evitar que Portugal ‘volte a arder’ à velocidade do Verão de 2003, pensamos que as propostas que de seguida se enumeram, se não têm a virtualidade de solucionar por si todas as insuficiências, contribuirão para atenuar de forma qualitativa os efeitos de deficiências estruturais neste campo.

Nestes termos, no âmbito das normas constitucionais e regimentais em vigor, os Deputados do Grupo Parlamentar do Bloco de Esquerda apresentam o seguinte projecto de lei que estabelece medidas indispensáveis para o alargamento do património público florestal:

Artigo 1.º

(Objecto)

A presente lei estabelece medidas no sentido de preservar, regular e alargar o património público florestal.

Artigo 2.º

(Defesa do património florestal público)

É dever do Estado promover uma política florestal pública onde a rentabilidade económica de médio e longo prazo seja praticada em harmonia com a bio-diversidade, as preocupações ambientais e ecológicas e alargar o património florestal público.

Artigo 3.º (Alienação do património florestal público)

1- A alienação do património público florestal com área superior a dez hectares só pode ocorrer por decisão devidamente fundamentada do ministro que tutele as florestas.

2- A Assembleia da República será anualmente informada de todas as decisões de alienação, da sua fundamentação e da identidade dos compradores.

Artigo 4.º

(Processos de alienação em curso)

O disposto no artigo anterior é aplicável a todos os processos de alienação de património florestal público em curso.

Artigo 5.º

(Unificação de prédios de áreas reduzidas)

1 - Não é permitida a compropriedade dos prédios rústicos situados em zonas florestais, que tenham áreas inferiores a um hectare, salvo como regime provisório nos termos dos números seguintes.

2 - No prazo de três anos a partir da entrada em vigor da presente lei ou no prazo de dois anos a partir do facto que der origem à compropriedade, o direito de propriedade sobre os referidos prédios deve ser unificado num só titular.

3 - O Estado deve prestar assistência jurídica, bem como facultar o recurso ao crédito para unificar a propriedade em causa, devendo, em contrapartida, exigir do novo proprietário um contrato de conservação e protecção.

4 - O crédito a conceder não ultrapassará o montante correspondente ao preço da aquisição que resultar de avaliação a fazer por entidade pública nomeada para o efeito pelo ministério que tutela as florestas.

5 - Expirado o prazo legal sem que a unificação da propriedade tenha tido lugar, o Estado procederá a um processo urgente de expropriação por utilidade pública dos terrenos em causa.

6 - Exceptuam-se dos números anteriores os prédios rústicos que estejam integrados em gestão conjunta através de associações florestais ou de defesa do ambiente.

Artigo 6.º

(Apoio público)

1- O Estado concederá, através dos serviços do Ministério da Agricultura, assistência técnica, jurídica e financeira aos proprietários de prédios rústicos situados em zonas florestais, com área inferior a um hectare, que o requeiram e apresentem planos de gestão florestal e rentabilização das suas terras.

2- Nos casos em que os prédios rústicos se situem em áreas da Rede Nacional de Áreas Protegidas, a referida assistência deverá ser prestada pelos serviços do ministério que tutele o ambiente.

Artigo 7.º

(Perda por ausência de gestão florestal)

1 – Os ministérios da tutela notificarão os proprietários de prédios rústicos situados em zonas florestais para apresentarem um Plano de Gestão Florestal (PGF), no prazo de dois anos.

2 – O Plano de Gestão Florestal incluirá a descrição do prédio rústico e da sua utilização, das espécies plantadas ou a plantar, bem como da rentabilidade expectável, dos métodos de conservação, limpeza e prevenção de fogos através da diversificação.

3 – Os proprietários notificados, em alternativa à apresentação do PGF, poderão requerer à entidade notificante que elabore aquele plano, mediante o pagamento de uma taxa a fixar na lei do Orçamento de Estado.

4 – Findo este prazo, os proprietários que não tenham apresentado um PGF, serão objecto de uma coima no valor de 10% face ao valor atribuído por avaliação dos terrenos em causa no primeiro ano de ausência de apresentação do mesmo, de 20% desse valor no segundo ano e de 50% a partir desse prazo.

5 – O incumprimento da obrigação referida nos números anteriores dará lugar à expropriação urgente por utilidade pública.

6 – O Estado poderá gerir os terrenos expropriados ou proceder à venda por concurso público de tais prédios, condicionando a candidatura para a respectiva aquisição a quem revele capacidade técnica e financeira para a sua exploração florestal.

Artigo 8.º

(Contratos de conservação e protecção)

1 - O Estado deverá promover uma activa gestão florestal dos terrenos com essa aptidão, celebrando com os proprietários interessados contratos de conservação e protecção, para alargar as possibilidades de apoio e intervenção pública em áreas florestais sensíveis ou danificadas por fogos.

2 – Os contratos de conservação e protecção das propriedades em zona florestal identificarão os prédios rústicos em causa, os seus proprietários, as obrigações a que se submetem e o prazo em que as devem cumprir, e ainda as contrapartidas a que o Estado se obriga no apoio à sua acção.

3 - Os contratos de conservação e protecção que forem celebrados obrigam os proprietários de terrenos circundantes, que não tenham aderido, a respeitar e a facilitar o cumprimento dos mesmos, nomeadamente no que diz respeito ao acesso às áreas em causa.

Artigo 9.º

(Direito de preferência na venda de prédios rústicos em áreas florestais)

O ministério da tutela da política florestal tem direito de preferência na aquisição de quaisquer prédios rústicos nas áreas florestais.

Artigo 10º

(Definição da área de reserva ecológica e agrícola de uso florestal)

Deve o ministério da tutela apresentar à Assembleia da República a definição da área de uso florestal no âmbito das reservas ecológica e agrícola nacionais, definindo as normas de gestão e o plano de utilização de recursos orçamentais para o alargamento dessa área por compra de terrenos florestais.

Artigo 11º

(Regulamentação)

O Governo regulamentará o presente diploma no prazo máximo de 90 dias a contar da sua publicação.

Artigo 12º

(Entrada em vigor)

Os artigos do presente diploma que impliquem alteração da despesa do Estado só entrarão em vigor com o Orçamento de Estado subsequente à aprovação da presente lei.

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