Wladimir Herzog

A propósito da crise militar-institucional recentemente aberta pela publicação das dolorosas fotos que mostram a humilhação inflingida ao jornalista Wladimir Herzog instantes antes de seu assassinato em 1975 no DOI/CODI paulista, a Executiva Nacional do PARTIDO SOCIALISMO E LIBERDADE - PSOL vem a público externar veemente preocupação com os rumos do inconcluso processo de restauração democrática de nosso país, ponderando o quanto segue:

1 - Antes de tudo, saudamos o jornal Correio Braziliense que, neste episódio, cumpriu muito bem seu dever jornalístico de trazer a público as foto-denúncias. As feridas abertas no passado recente de nosso país só serão cicatrizadas se expostas livremente ao oxigênio da verdade.

2 - Ademais, registramos nosso estarrecimento pela revelação de que aquelas fotografias jaziam "esquecidas" há quase 10 anos na Câmara dos Deputados - surpreendentemente, nos próprios arquivos de sua Comissão de Direitos Humanos.

3 - Quanto à nota divulgada há três dias pelo Centro de Comunicação Social do Exército, bastaria este adjetivo para defini-la: é FASCISTA. Defende o golpe de 1964, que derrubou pela violência um governo constitucionalmente eleito, mergulhando o Brasil em 21 de ditadura terrorista de Estado, intervindo em entidades de todo tipo, cassando, encarcerando ou exilando parlamentares, sindicalistas, jornalistas, professores, religiosos, estudantes, operários, camponeses, democratas e opositores em geral, censurando a imprensa e as artes, intimidando e calando quase todas as vozes, instituindo a tortura como método oficial de interrogatório e erigindo o assassinato covarde de presos como método para livrar-se dos que protestassem contra tanto horror em nossa pátria. Aquela notinha macabra chegou ao cúmulo do cinismo ao lançar sobre os bravos patriotas que resistiram à ditadura a "culpa" pela violência desencadeada pela própria ditadura.

4 - Notinhas prepotentes e falsárias como essa proliferavam nos tempos da ditadura. Mas, hoje, são inadmissíveis, intoleráveis, configuram escárnio aos esforços de reconstrução democrática, desrespeito à memória dos que tombaram para dar vida a esse processo de reconstrução, insulto aos sentimentos de seus familiares e amigos e ofensa a todos os que se empenharam e se empenham em construir uma democracia em nosso país.

5 - Mais ainda: a nota afronta diretamente a autoridade do presidente da República, como chefe supremo das Forças Armadas. Que autonomia ainda continuará a ser tolerada em autoridades militares, ou em seus subordinados, para se pronunciarem sobre assuntos políticos - ainda mais, quando se lançam à apologia de golpes militares e de violência contra seu próprio povo? Desde quando, num regime constitucional, um organismo subalterno do Exército pode, impunemente, opinar à revelia do comando da respectiva Força e à revelia do próprio Ministro da Defesa ? Desde quando, numa democracia, é permitido ao presidente da República tolerar isso ?

6 - É de se supor que alguns dos oficiais que, na década de setenta, comandavam as equipes de tortura e assassinato de presos políticos, ou que foram coniventes ou simpatizantes com tais práticas desonrosas, tenham prosseguido incólumes em suas carreiras militares, podendo ter até alcançado patentes superiores. Mas, se for esse o caso, não permita o presidente da República que falem em nome do Exército - e nem permita que, após falarem, continuem em seus cargos!

7 - De duas, uma: ou o presidente da República exonera imediatamente de seus cargos no Centro de Comunicação Social do Exército os responsáveis pela redação e divulgação daquele texto repugnante ou, não importa que gestos de cena adote, estará se curvando à insubordinação militar saudosista da ditadura. Que se esclareça, cabal e publicamente, a ação ou a omissão - pois ambas as atitudes geram responsabilidades jurídicas e políticas - do Comandante do Exército e do Ministro da Defesa no episódio. Porque, como a História desgraçadamente nos mostra, a complacência institucional é o solo onde novos candidatos a Pinochets estão sempre à espreita para germinar suas vocações liberticidas.

8 - Até agora, o Presidente da República agiu tibiamente, como quem pisa em ovos a serem preservados - quando deveria esmagar os ovos da serpente fascista, antes que germinem plenamente. Não basta a nota subscrita em seguida pelo General Comandante do Exército: ela configura apenas um modo de "acomodar" a situação e mudar rapidamente de assunto. Pois o máximo que essa segunda nota concedeu foi qualificar de "não apropriada" a manifestação do Centro de Comunicação Social do Exército. Essa nota do Comandante do Exército beira à conivência.

9 - Mas ainda não é tarde para o presidente da República agir como estadista na defesa da Constituição e cumprir verdadeiramente seus deveres com a dignidade e a coragem prometidas ao povo brasileiro. Ainda não é tarde para que, ao menos, honre a memória de seus próprios companheiros assassinados.

Ou para que, no mínimo do mínimo, assuma a postura que, há cem anos, até uma facção das classes dominantes teve, ao lançar o Movimento Civilista - pois, em qualquer democracia, até nas oligárquicas, a corporação armada deve subordinar-se obedientemente ao poder civil que brota das urnas.

10 - Assim, propomos publicamente ao Presidente Lula:

a) que exonere de seus cargos, sem mais delongas e sem mais panos quentes, os responsáveis pela redação/divulgação da nota subscrita pelo Centro de Comunicação Social do Exército;

b) que instaure investigação pública, com a participação do Congresso e de personalidades independentes e idôneas da sociedade civil, para esclarecer todo o episódio e apurar responsabilidades;

c) que abra, o quanto antes, ao acesso público, todos os arquivos referentes ao período da ditadura militar ainda conservados pelas Forças Armadas, pelos organismos policias federais e pelos organismos de informação - antes se conclua a tarefa de incineração de provas confessada na nota do Centro de Comunicação Social do Exército;

d) que emita ordem pública para que, doravante, nenhum integrante, de nenhuma das Armas, possa manifestar-se publicamente sobre qualquer assunto político sem a prévia e expressa autorização do presidente da República.

Há questões sobre as quais é indigno conciliar, contemporizar, esquivar-se. Ainda é tempo, presidente Lula. Amanhã, poderá ser tarde. Não deixe passar esta oportunidade de aprofundar a democracia !

Brasília, 21 de outubro de 2004.

A Executiva Nacional do PARTIDO SOCIALISMO E LIBERDADE - PSOL

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