FAVELAS CARIOCAS: ORIGENS, CARACTERÍSTICAS E DILEMAS

Na volta, não encontrando moradia na capital do Império, os soldados receberam autorização do governo brasileiro para se instalar no morro. (Aliás, o nome vem dessa época: "favela" era uma planta muito freqüente na região de Canudos.) Alguns anos depois, em razão das reformas urbanísticas do início do século XX – que imitavam as cidades européias, com suas grandes praças e boulevards – a população mais pobre foi expulsa do centro do Rio de Janeiro. A alternativa, para as pessoas expulsas do centro, era se instalar também nos morros.

De acordo com a definição oficial do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), pode ser chamada de favela toda "área com no mínimo 51 casas sem título de propriedade, caracterizada pela precariedade de serviços públicos e pela urbanização irregular". Hoje em dia, a cidade de São Paulo é a que concentra o maior número de favelas do Brasil. Mas as favelas paulistas são menos visíveis que as cariocas, porque se situam principalmente nas periferias. No Rio de Janeiro, como não há periferia, as favelas distribuem-se por toda a cidade, inclusive nas regiões nobres. Atualmente, existem cerca de 513 favelas no Rio de Janeiro. O preço médio do aluguel de um "barraco" varia entre 150 e 200 reais (40 a 60 euros). Para comprar um barraco são necessários até 20 mil reais (6 mil euros) [exemplos retirados da Favela do Vidigal].

O tráfico de drogas começou a se expandir, nas favelas, nos anos 80. A ausência da autoridade e da proteção do Estado, aliada à grande pobreza da maioria da população, terminaram por criar um terreno fértil para a violência e o crime. A principal droga que circula nas favelas é a cocaína. Proveniente da Colômbia, ela é distribuída diretamente para o consumidor ou para revendedores de outras favelas. O consumo de cocaína dentro das favelas também é grande. Os viciados costumam pagar suas dívidas trabalhando e defendendo os líderes locais do tráfico. Se por um lado os traficantes ganham muito dinheiro, por outro lado gastam imensamente para comprar armas e subornar a polícia.

A partir dos anos 90, os investimentos e projetos sociais para combater esses problemas começaram a se multiplicar. Dentre os tipos de assistência mais comum podemos citar as ceches, enfermarias, escolas, ofertas culturais (teatro, música, dança), cursos de língua e informática, cursos preparatórios para o vestibular e assistência jurídica. Estes projetos são coordenados e financiados por quatro atores principais: o governo, as ONGs (externas ou criadas dentro da própria favela), as entidades religiosas (pastorais e missionários) e as empresas privadas. As empresas investem nas favelas como forma de "marketing social"; além disso, toda firma que investe em projetos sociais e culturais paga menos impostos. Alguns partidos políticos também tentam formar lideranças nas comunidades (há vários casos de líderes locais que depois foram eleitos para cargos políticos). Para completar, os traficantes distribuem comida e dinheiro aos moradores das favelas ou oferecem proteção e ajuda em caso de problemas. Assim, observa-se uma verdadeira luta de poder (físico e simbólico) dentro das favelas.

As favelas podem ser muito diferentes entre si. Em primeiro lugar, porque os moradores têm origens geográficas / culturais diferentes. Na Favela da Formiga, por exemplo, grande parte das pessoas é originária de Minas Gerais, onde trabalhavam na agricultura. Trouxeram para o Rio de Janeiro antigos laços sociais e um estilo de vida específico. O tamanho das favelas também varia. A Favela da Formiga tem somente 15.000 habitantes, enquanto a Rocinha e a Maré têm mais de 200 mil habitantes cada uma. Em terceiro lugar, observa-se uma escala variada quanto ao grau de violência . Na Favela da Rocinha, como só há um traficante de drogas, as coisas são mais ou menos "tranqüilas". Na Favela da Maré, ao contrário, dois grupos disputam violentamente o monopólio do tráfico (o Comando Vermelho e o Terceiro Comando). Por causa deste estado de guerra interna, as pessoas que moram numa metade da favela são proibidas de andar na outra metade. Um quarto ponto que pode variar de uma favela para outra é o grau de desenvolvimento e urbanização. A Rocinha, por exemplo, parece um bairro de classe média, com seus 2 supermercados, 2 bancos, uma faculdade privada e uma agência de turismo para estrangeiros.

A diversidade dentro de uma única favela também pode ser grande e esse aspecto costuma ser ignorado. Mário Greenspan, sociólogo que avaliou diversos programas sociais em favelas cariocas, no ano 2000, chegou à conclusão de que "os programas imaginam comunidades homogêneas e uniformes, porque desconhecem as divisões entre brancos e negros, ricos e pobres, nordestinos e cariocas. Na prática, são os subgrupos menos ameaçados pelo tráfico – ou mesmo ligados a ele - que se beneficiam dos projetos sociais". Assim, seria essencial que, antes de iniciar qualquer projeto, um estudo fosse realizado para conhecer em detalhes a comunidade onde se pretende atuar.

Uma polêmica atual: o filme Cidade de Deus

O filme "Cidade de Deus" (2002), dirigido por Fernando Meirelles e Kátia Lund está gerando muita controvérsia, atualmente, no Brasil. Cidade de Deus é o nome de um conjunto habitacional na zona Oeste carioca, para onde foram levadas as vítimas de uma inundação, no início dos anos sessenta. Tornou-se, aos poucos, um bairro muito pobre onde moram pedreiros, empregadas domésticas, migrantes nordestinos e outros grupos menos favorecidos ou excluídos socialmente. O filme – que é um misto de ficção e documentário – é a adaptação de um livro publicado em 1997 pelo poeta e professor de português Paulo Lins, ex-morador da região. O livro, por sua vez, é baseado em entrevistas e na observação diária dos bandidos e da miséria ao longo dos vinte anos em que o autor viveu no local. Segundo Paulo Lins, "a crueldade aumentou com o tempo. Os bandidos hoje são mais jovens, a bala é mais rápida. Antes, imperava o 38. Agora, o fuzil. A cocaína arrebentou com tudo". O autor afirma ainda que se trata de um romance com uma boa dose de fantasia, no entanto "os fatos mais horríveis são verdadeiros".

O livro já havia suscitado críticas por ter revelado nomes e lugares reais, no lugar de garantir o anonimato. Segundo a antropóloga Alba Zaluar, a atitude do autor foi anti-ética e exigiria o pagamento de indenizações. Quanto à adaptação cinematográfica, ao contrário de "Orfeu Negro" (1959), filme de Marcel Camus que transformava a favela em paraíso, "Cidade de Deus" mostra que o inferno está entre nós. O filme – cheio de palavrões, com cenas de assassinatos, crianças com armas na mão etc. - está sendo acusado de estereotipar a favela e os favelados, como se os moradore das favelas fossem todos bandidos e não houvesse nada de positivo em suas vidas. É por isso que o rapper MV Bill - músico e líder comunitário na Cidade de Deus – vem protestando, no rádio e no jornal, contra o fato de os produtores do filme não terem dado nada aos moradores da favela. Bill acredita que este tipo de cinema só folcloriza a favela, aumenta o preconceito e não ajuda a transformar a realidade.

Com a boa repercussão de "Cidade de Deus" junto ao público e à crítica, mas também graças aos protestos de MV Bill e seus amigos, os governos municipal, estadual e federal vão lançar conjuntamente, no dia 24 de fevereiro, um projeto ambicioso na favela Cidade de Deus. O Secretário Nacional de Segurança Pública Luiz Eduardo Soares revelou, em entrevista à rádio "Viva Favela", que se trata de uma combinação inédita entre segurança e cultura. O projeto ainda é secreto, mas Soares adiantou que serão instalados estúdios cinematográficos e de som, bem como computadores e cursos de multimídia, para que o enorme potencial cultural dos jovens possa se expressar. O esforço deve vir de fora e de dentro simultaneamente. A idéia é trabalhar em parceria com lideranças locais, ONGs e entidades religiosas já atuantes, para conseguir uma transformação duradoura e efetiva. Se o modelo der certo, será introduzido em outras favelas.

Ou seja, indiretamente, parece que o livro e o filme estão ajudando a movimentar as coisas, sim. Inclusive porque cineastas e outros artistas brasileiros estão sendo obrigados a discutir o papel da arte num país em desenvolvimento. Certamente, a criação não deve ser fundada numa causa política, sob o risco de se esvaziar e de se instrumentalizar. Por outro lado, os artistas não podem ignorar a repercussão e a influência das representações que criam do país. É preciso delicadeza e reflexão para tratar de assuntos tão complexos.

Ilana GOLDSTEIN PRAVDA.Ru BRASIL

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