EX-PRESOS POLÍTICOS

No ambiente frio da prisão, presos políticos da ditadura militar brasileira viveram anos de rotinas castradas. De 1964 a 1979. Uma das formas de contestação dentro do cárcere era manter as comemorações marcadas no calendário. O Natal era uma delas

Mário Albuquerque, ex-preso político

O governo de mordaças, algemas, paus-de-arara e outros ''requintes'', instalado em 1º de abril de 1964, guardou atrás de grades os insubordinados. Os donos das estratégias - as mais variadas - para garantir a liberdade de expressão e de luta morreram ou ficaram presos até a anistia, concedida em 28 de agosto de 1979. Das lembranças do cárcere, o dia de Natal é sempre referido como um dia triste. ''Dos primeiros eu nem lembro''. Registro dolorido apagado pelas defesas do organismo de Mário Albuquerque, condenado a 23 anos de detenção no dia do seu 23º aniversário: 21 de novembro de 1971. Mas do último, dezembro de 1978, no Instituto Penal Paulo Sarasate (IPPS), guarda até fotografia.

''Éramos os últimos. Já festejávamos a liberdade'', lembra Mário, hoje presidente da Associação 64/68-Anistia, de defesa a ex-presos políticos da ditadura militar. Na foto, José Sales de Oliveira, estudante amazonense, José Ferreira Lima, operário, João Alves Gondim Neto, estudante pernambucano, José Gerônimo Oliveira, bancário, William Montenegro, propagandista, ele, e Valdemar Menezes, ex-seminarista alagoano e atual editor-sênior do O POVO.

Companheiros de luta, posicionados à frente de uma árvore de Natal improvisada com um galho seco, bolas coloridas e chumaços de algodão. Na parede, a decoração com a sigla e o símbolo do Movimento Feminino pela Anistia (MFPA) anunciava a liberdade garantida para o ano seguinte. Naquele último Natal de prisão, receberam visitas ilustres. Além da família, Paes de Andrade e Dom Aloísio Lorscheider. A ceia era uma junção de pratos feitos por eles e levados por visitantes.

A vida dentro dos muros do IPPS não se desligava dos calendários. ''A gente fazia questão de comemorar todas as datas. Fazíamos o nosso ritmo, tínhamos os nossos horários. Nestas datas, pensa-se muito na família. Na prisão, você tem mais tempo para refletir, elaborar pensamentos''.

A pena de Mário não se resumiu aos nove anos de prisão. Por ter sido membro da diretoria do Centro dos Estudantes Secundaristas do Ceará, integrante da Frente Popular Libertadora, do Partido Operário Trotskista e do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, foi privado de usufruir dos seus 20 anos e afastado da primeira mulher, exilada no México. Era o pagamento pelo envolvimento político que lhe rendeu o título de terrorista.

''Tive que me afastar de casa quando percebi que as pessoas começaram a desaparecer''. Tinha 19 anos quando foi decretado o Ato Institucional Nº 5, que acabou com praticamente todos os direitos civis. A cidade de Recife foi asilo, diante da perseguição. Quando desvendados os disfarces, também foi cárcere. De 1971 a 1979, as datas comemorativas eram lembradas uma a uma, primeiro na Casa de Detenção de Recife, depois na Penitenciária Barreto Campelo, na ilha pernambucana de Itamaracá, e por fim no IPPS.

Sentimentos de dor ou alegria independiam da crença de cada um

Entre os presos políticos unidos pelo ideal de liberdade, estavam materialistas e espiritualistas. Muitos cristãos. ''Mas a ocasião do Natal transcendia o aspecto da religião. Era um momento propício para aflorar sentimentos ambíguos de alegria e tristeza. Sentíamos muito o isolamento, o afastamento do convívio social'', lembra Mário Albuquerque, que não tem religião. A necessidade e expectativa por fraternidade encorajava. ''Era um período de muitas fugas''.

Alberto Galeno, 85 anos, diretor do espaço cultural Casa de Juvenal Galeno, lembra da tensão do Natal de 1971, no Instituto Penal Paulo Sarasate (IPPS). ''A gente ficava pensando em salvar-se do tiroteio. Os presos tentavam pular o muro constantemente. Neste período não foi diferente''. Apesar de se dizer cristão, fala como se não fosse este aspecto que fizesse a data especial, mas a simples necessidade de confraternizar. ''A gente estando preso, as datas têm significado diferente''. Foram 16 meses detidos, desde a prisão na porta da casa onde funciona hoje a instituição que dirige. Ali morava então a irmã. ''O policial me convidou a segui-lo. Nem sei como minha família ficou sabendo''.

O jornalista e ex-deputado Blanchard Girão foi preso em 1964, dez dias depois do golpe militar. Ficou alojado em um galpão do 23º Batalhão de Caçadores (23º BC). Seu crime: ''apoiava Jango, tinha sido diretor da Rádio Dragão do Mar''. A liberdade, já esperada, veio às vésperas do Natal daquele ano: 21 de dezembro. Somente 12, dos 150 presos que já haviam dividido o mesmo alojamento, aguardavam a soltura. ''Era uma prisão sem fundamento. Mas havia apreensão (de não ser solto antes das festas de fim de ano). Natal é festa para estar em família''. (AC)

O CIDADÃO Uma família marcada pelos anos de chumbo

Dona Lurdes: "Um Natal como esse era uma tristeza"

Lurdes Albuquerque, 80 anos, é a mãe de uma família de revolucionários. Além de Mário, o terceiro filho, Pedro, Nadja e Célio foram presos políticos. Os outros cinco irmãos sofreram a violência das constantes invasões em casa. A semente da participação política foi plantada na família pelo marido comunista. O seu coração de mãe tornou-se mais aflito após 1º de abril de 1964.

O Natal daquele ano foi o primeiro entre muitos de angústia, que nem a anistia amenizou. O filho mais velho, Pedro Albuquerque, candidato ao governo do Estado na última eleição, estava escondido. Medo da prisão que acabaria acontecendo pela primeira vez em São Paulo, em 1968, no Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) em Ibiúna. ''Um Natal como este era uma tristeza. Em casa, com os outros filhos. Eles eram pequenos, mas já sabiam o que estava acontecendo'', conta Lurdes. Mas o dia 25 de dezembro ainda poderia ser mais triste.

Depois da prisão de Pedro e Mário, foi a vez de Nadja. Em uma tentativa de localizar o segundo irmão em Recife, também foi detida. Com o grau de parentesco, deveria prestar esclarecimentos. ''Foram só dez dias, mas tiveram mais conseqüências para ela do que meus nove anos de prisão'', relata Mário. Célio também foi preso. Pena de um ano por ter pichado um ônibus.

Em 1973, Pedro segue para o exílio. Chile, então sob o governo de Salvador Allende, e depois Canadá. Nadja foi ao encontro do irmão e não voltou mais. ''Ela tem horror ao Brasil hoje. Acha que não mudou'', conta a mãe. Se por prisões ou pela necessidade de deixar o País para manter a integridade física e psicológica, Lurdes teve a família desagregada. ''Nessas datas, a saudade era tanta que eu pegava um guardanapo e escrevia o nome de todos. Família, amigos, companheiros. Era uma forma de recordar'', conta Pedro, referindo-se aos seis anos de exílio. ''Não sei quem sofre mais, eles ou nós'', desabafa a mãe. (AC)

Fonte: Jornal O Povo

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