“Não se ensina as coisas positivas do povo africano”

Se você é pardo e descer no aeroporto de Porto Alegre, será considerado negro. Se descer em São Luís (Maranhão) vira “branco”. Afinal, o que significa ser negro? Qual a diferença entre “negro”, “moreno” e “pardo”?

No Brasil, há uma certa idéia de que bom é ser “branco, rico e cristão”. Neste mesmo país, mais de 70% da população possui sangue africano nas veias.

Para você que já entrou no mundo da Internet, faça o seguinte exercício: verifique qual é a idéia que você tem de uma pessoa que te mandou um email. Ela é branca, rica e cristã? Pense nisso com aguçada auto-crítica.

Onde você esconde seu preconceito?

Agora lembre sobre a História do Brasil. Neste momento, você já percebeu que muitas das coisas que nos contavam possui diversas imperfeições e até mesmo invenções. Isso faz parte de um projeto político que pretende glorificar presidentes e reis, em detrimento de quem realmente construiu esta Nação: o povo. Suas lutas, suas conquistas e, também, sua origem étnica.

Perceba que você fala em “escravos vindos da África”. Isso é uma coisa que os/as professores/as de História falam sem pensar. “Eram escravos, vindos da África”. Acontece que, quando estavam na África, essas pessoas não eram escravos. Eles eram pessoas que tinham famílias. Pais separados de filhos, homens separados de suas mulheres, adultos separados de crianças. Eram, portanto, africanos escravizados.

Parece meio óbvio, mas perceba que o normal é falar que eles eram escravos. Isso dá a entender que esse era o destino deles – o trabalho forçado, a pedido de Deus. E esconde a dívida histórica que temos com os negros, que até hoje sofrem com a exclusão e com o racismo disfarçado. Possuem menos escolaridade, têm os piores salários e sofrem mais com a violência. Pela primeira vez o IPEA – Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas, ligado ao governo federal – reconhece isto. “É um avanço”, diz Glória.

Identidade coletiva

Os preconceitos estão aí, todos devidamente espalhados nas mentes das pessoas. O pior deles? De que não há preconceito racial no Brasil, por sua origem de miscigenação. A luta pela igualdade racial e pelo respeito das diferenças étnicas continua segmentada entre os “interessados”, quando que, na verdade, o interesse deveria ser de todos os nós. Dizem: “Por que vai mexer com isso se você não é negro/a?”

Temos dois tipos de identidades: a indidivual (como você se vê) e a coletiva (constatação sociológica de como um povo se vê). Os negros deram algumas das mais importantes contribuições ao nosso país. Ser brasileiro é, em muitos momentos, ser negro.

Os setores mais conservadores já aceitam essa herança, mas apenas em parte, restringindo a participação do negro a alguns setores como cultura popular, moda e gastronomia. Parece inaceitável para estas pessoas a contribuição dos negros a outras áreas temáticas. “A sociedade é negra. Não apenas no jeito de ser, de se comportar ou na música, mas também na política e na economia”, resumiu Glória Moura.

O Brasil possui grande parte da população com uma identidade européia. Por muito tempo, muitos negros se consideravam brancos, pois tinham vergonha de sua origem étnica. “Há muitos avanços jurídicos, mas o preconceito é o desafio maior. Pode ter todas essas leis [citadas durante a oficina], mas a mentalidade do brasileiro é que é difícil de mudar”, diz Glória. Isso está mudando, à medida em que ações do movimento negro avançam e mostram a riqueza histórica, social, econômico, cultural e espiritual dos negros.

Indentidade individual

A cultura se constitui, segundo Geertz (1978), por “teias de significados que o homem constrói para si mesmo”, um “padrão de significados transmitidos historicamente, incorporado por símbolos por meio dos quais os homens se comunicam (...)”.

“Oi, Glória. Sabe que outro dia eu vi uma das suas filhas. Não sei qual era, são todas iguais”. Glória Moura, que tem quatro filhas, usa esse exemplo para afirmar que “na particularidade, nós temos a igualdade”. Suas filhas, portanto, não são iguais. Mesmo aparentemente iguais, todas possuem particularidades perceptíveis, que faz de cada uma um ser único. E onde se reafirma essa identidade? “No outro”, diz.

É desse assunto que trata Maria Lucia Montes (2000): “Então, no reverso do espelho, o olhar sobre si mesmo se volta, quando confrontado a um outro, pois só o outro coloca como interrogação nossa identidade. Toda identidade é contrastiva”.

E onde entra o negro nessa história? “A imagem do negro se projeta como símbolo de identidade de uma nação que pretende afirmar a expressão de sua alma negra e mestiça. O conhecimento do nosso passado nos ajuda a remodelar nosso rosto e nossa alma”.

Opa! Peralá, mas que alma é essa? Um amigo meu conservador diz conhecer um negro, de quem gosta muito. “Como esse negro é bom, daqueles que tem alma branca”. É essa a alma? “Não”, responde Glória. A alma a que se refere Maria Lucia é exatamente essa identidade coletiva que nos dá sentido.

“A gente só conhece os aspectos negativos da História do país. Não se fala das coisas positivas da origem africana. Os saberes desse povo e toda a sua resistência”, lamenta Glória. “A História permite clarificar os problemas da origem e iluminar o processo histórico afro-descendente”.

Quem é negro?

Para nossa pergunta inicial, Glória Moura traz a contribuição de Jacques D'Adesky (2001): “Negro é qualquer pessoa de origem ou ascendência africana suscetível de ser discriminada por não corresponder, parcial ou totalmente, aos padrões estéticos ocidentais e cuja projeção social de uma imagem inferior ou depreciada representa a negação do reconhecimento igualitário, fonte de uma exclusão e de uma opressão fundamentadas na dupla negação dos valores da identidade grupal e das heranças cultural e histórica”.

E o que podemos fazer para valorizar a cultura afro-descendente e, por conseqüência, o Brasil? Glória Moura conclui: “Estudar, ouvir, ler para esclarecer. Mesmo eu, negra que trabalho em pesquisa com comunidades de quilombolas em Brasília, me pego num ato de racismo. Quando isso acontece, é muito triste. Dá vontade de chorar”. (GB, 30/1)

Gustavo Barreto 30 de janeiro 2005 (www.consciencia.net)

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