Sobre guerreiros e marginais

Local: Cinelândia, Centro da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Data: domingo, 6 de junho de 2004. Horário: 19 horas da noite. Clima: muito frio. Contexto: saída da exibição do filme “Diários de Motocicleta”, sobre uma viagem de Ernesto Rafael Guevara de la Serna pela América Latina.

Um quase-menino, um quase-homem, ou quase isso, me pára na rua. Meio sem rumo, meio sem graça, um meio-menino. Me pára e diz: “Você pode me dar um real?” Eu observo, outros se afastam. Fiquei imobilizado. Era uma pergunta, “você pode me dar um, dois reais?”

E continua: “Eu não vou te roubar. Eu não quero roubar. Eu só quero comer. Quero sobreviver. É muito difícil sobreviver, é muito difícil... Eu sou um guerreiro”.

Eu, que achei saber o que era estar imobilizado, experimentei o verdadeiro sentido da palavra “imobilismo”. Era um guerreiro. Lutava, de forma não-violenta, pelo mais nobre valor mundano: dignidade.

O menino-homem houve alguém me chamar. “Seu nome é Gustavo?”, pergunta. “Sim, e o seu, qual é?” E ele me diz: Marcio. E depois um abraço. Eu, um cidadão privilegiado e possuidor de todas as características desejadas pelos meninos-homem deste país, abraçava um guerreiro.

E eu fiquei pensando: não seria esse menino – guerreiro e perseguidor do mais nobre valor humano – o que se costuma chamar de “marginal”? Mas ele não é.

Então quem?

Os programas sociais da prefeitura e o programa “Zona Sul Legal”, do governo do Estado, não conseguem manter as crianças e jovens de rua por muito tempo nos abrigos. Falta estrutura, clínicas de recuperação para dependentes químicos e assistência psicológica. Falta verba, carinho e planejamento. Falta atenção, brinquedo e vontade política.

São marginais, penso, pessoas como César Maia (PFL), prefeito da Cidade do Rio de Janeiro, que precisa de um aviso do Ministério Público para que “providencie um local para o atendimento de menores dependentes de drogas no município do Rio”. Caso contrário será obrigado a pagar uma multa de R$ 10 mil reais por dia.

''As drogas fomentam o vício e a violência e não sofrem qualquer combate por parte do município, apesar de notórios seus superávits de orçamento bilionários, reconhecidamente canalizados para arrojadas empreitadas urbanísticas, em clara violação á prioridade imposta pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pela Constituição Federal'', disse o juiz Leonardo de Castro Gomes, da 1ª Vara da Infância e da Juventude, no dia 7 de setembro de 2003.

Em 21 de agosto este mesmo juiz determinou o bloqueio de R$ 109,2 milhões do Tesouro Municipal, obrigando a prefeitura a atender a 10.829 crianças com menos de 4 anos que estão na lista da Secretaria Municipal de Educação à espera de uma vaga em creche. "A falta de creches é o início do processo de degradação da infância menos abastada, que acaba sendo levada às ruas e ao tráfico de drogas", disse Gomes desta vez.

Há também marginais como a governadora Rosinha Matheus (PMDB), que aumentou em 2.025% o gasto com publicidade em seu primeiro ano de mandato, enquanto mantém um déficit de cerca de 4 mil professores nos quadros do Estado.

Marginais como Marcelo Garcia, secretário municipal de Desenvolvimento Social, que ordena o fechamento de creches públicas e a diminuição da verba para os centros sociais. Desta forma, o prefeito César Maia fica livre para apresentar a maior e mais robusta verba em publicidade já observada em uma administração carioca. O marginal Garcia argumenta, do alto de seu confortável cargo público, que “os menores deixam as instituições porque não são forçados a ficar internados”.

Para se ter uma breve idéia, no orçamento de 2004 (ano eleitoral) aprovado pela Câmara Municipal estava prevista uma dotação de R$ 1.027.698 para publicidade e propaganda. Esta rubrica, no entanto, foi elevada pelo prefeito para R$ 9.219.302, ou seja, um aumento de 897%.

Enquanto isso, os investimentos na área social vêm declinando. O levantamento do Fórum mostra que dos R$ 3.038.334,00 destinados ao Programa de Assistência Social para População de Rua apenas R$ 5.263,30 haviam sido gastos até o início deste mês.

É de pessoas assim que o carioca precisa correr. Você sabe, ninguém vota em marginal. Gustavo Barreto é editor da revista Consciência.Net (www.consciencia.net), colaborador do Núcleo Piratininga de Comunicação (www.piratininga.org.br), estudante de Comunicação Social da UFRJ e bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Inciação Científica (PIBIC) pela ECO/UFRJ

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