FH e Lula

Logo no início da campanha, FH tirou uma foto montado num jegue, com chapéu de couro de boiadeiro, no meio do sertão nordestino, e isso foi visto como o cúmulo da falsidade, da demagogia. Da mesma forma, a muitos pareceu falta de respeito com o povo a maneira como ele se referira à buchada de bode, um prato típico da região. E houve quem escrevesse o nome do prato em francês, dizendo que, talvez com aquele sotaque, a comida fosse mais do agrado do presidente.

Depois, sem terem lido a sua obra sociológica, um coro unânime de críticas se levantou contra ele, acusando-o de ter dito a frase que ele jura nunca ter dito: "Esqueçam o que escrevi." As ações de governo de FH teriam jogado no lixo tudo o que ele teorizou. A frase, de fato, provavelmente nunca foi dita, porque FH, melhor do que ninguém, sabia que dizê-la não era necessário. O seu governo foi de uma coerência espantosa com pelo menos um de seus clássicos, o livro que escreveu em parceria com Enzo Falleto, "Dependência e desenvolvimento na América Latina". Enfim, basta uma pesquisa nos jornais para que se constate que ele atravessou o mandato com a pecha de esnobe.

Fenômeno parecido, mas inverso, parece estar acontecendo com o presidente Lula. Depois da fase inicial, em que todos estavam encantados com ele, agora, passaram a estranhá-lo. Se antes criticavam FH pela distância do brasileiro médio, agora parecem acusar Lula justamente de estar próximo demais do povo ou, ao menos, de ser povo demais. Lula elegeu-se sem esconder as suas origens, sua história de vida, sua formação educacional. Ao contrário, falou dela o quanto pôde e teve de se defender, mais de uma vez, da acusação de que sua pouca escolaridade o impedia de governar bem. Os brasileiros votaram nele sabendo quem ele era, e parecem ter dado razão a ele, rechaçando como preconceituosa a tese de que é preciso diploma universitário para se exercer a Presidência.

De uma hora para outra, o que se vê é uma postura esnobe, num pedestal de juiz, que vê constrangimento diante de todas as falas de Lula. É como se exigissem que ele fosse o intelectual que não é. E que nunca tentou ser. Será a eterna insatisfação do ser humano? Com FH, queriam um intelectual de macacão; com Lula, querem um operário com punhos de renda. O pior é a má vontade em relação ao que ele diz e ao que ele faz. Qualquer um que já tenha estado em recepções formais ou informais em Brasília testemunhou presidentes bebericando uma dose de uísque. Mas sobre o fato nada leu a respeito dos outros presidentes, somente de Lula. Isso cheira a preconceito.

Em relação ao que Lula diz, temo que o constrangimento que a imprensa vive a descrever seja somente dela. Porque o povo, eu tenho certeza, entende bem o que o presidente diz, e concorda com ele. Li e reli as tais gafes, os tais deslizes, as tais metáforas sem brilho. E não enxerguei nada disso. São frases sinceras, vindas de um homem do povo, vivido, experiente. Não fazem nenhum mal, e podem fazer um bem danado. O povo é mais sábio do que se imagina. Não vou analisar frase por frase, mas me aterei apenas a uma delas.

Lula disse na Bienal do Livro que uma criança ao iniciar o hábito da leitura enfrenta as mesmas dificuldades que um adulto que começa a se exercitar numa esteira, e concluiu que se "no início dá uma preguiça desgramada", depois surge o prazer. Ora, isso é de uma verdade monumental para uma legião de brasileiros e de jovens, sem o hábito de pegar num livro. Claro, os jornalistas, esses leitores contumazes, esses intelectuais de alta cultura, formados em densas faculdades de comunicação social, espantaram-se. Mas o povo entendeu. E eu consigo imaginar um pai de família analfabeto dizendo para o filho, generoso: "Filho, lembra do que o presidente disse. No início é difícil, mas, depois, a coisa fica maravilhosa. Vai pegar um livro!" A frase de Lula não pode ser entendida senão como um estímulo à leitura. Um belo estímulo, um estímulo verdadeiro.

No início, eu imaginei que as críticas a FH, numa direção, e a Lula, num sentido oposto, viessem de grupos sociais distintos. Mas me dou conta de que não: elas vêm de um mesmo grupo social, uma classe média de média escolaridade, de média generosidade. Ela olha para um, sente-se diminuída diante de alguém mais bem formado e clama por um homem do povo; olha para o outro, sente-se mais inteligente do que alguém que jamais escondeu que sua sabedoria vem da vida, e clama por metáforas mais ricas e verbos mais bem colocados. A sorte é que o povo entende tanto um quanto o outro e passa ao largo de tudo isso. E um homem como Lula, que já apanhou tanto da vida, não há de se sentir humilhado por um falso esnobismo.

Não importa em quem tenhamos votado. O direito de criticar é sagrado, principalmente quando o governo erra. Mas a crítica baseada em preconceitos classistas é detestável.

Ali Kamel é jornalista

Artigo publicado no jornal O Globo em 4/5/04

Partido dos Trabalhadores

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