Chico Buarque, meu caro amigo

Quando ouvi pela primeira “Meu caro amigo”, eu estava angustiado e fodido em São Paulo, sufocado em um quarto do tamanho de uma cama, um passa-discos e um banquinho.

“Meu caro amigo, me perdoe, por favor Se eu não lhe faço uma visita Mas como agora apareceu um portador Mando notícias nessa fita Aqui na terra ‘tão jogando futebol Tem muito samba, muito choro e rock’n’roll Uns dias chove, noutros dias bate sol Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta.....”

Bebíamos cachaça e a agulha retornava pesada, bêbada e sôfrega para a mesma faixa. Embriagávamo-nos de música, podíamos quase dizer. Se me entendem, quero não apenas dizer, mas apenas começar a dizer que a música, naqueles anos, já trazia em si a nossa dissolução, que seus acordes já exigiam, para a sua plenitude, o álcool, o álcool e o álcool: o nosso inferno, o nosso fogo e a nossa dor. Era um suicídio de representação. À distância, ficamos sem saber como escapamos. Ou vendo de outra maneira, porque sobrevivemos a essas anulações de fera que sente: somente à distância compreendemos que por isso mesmo, por essas celebrações musicais, representações da morte, escapamos.

Ouvir Chico naqueles anos não era bom. Era necessário, vital, urgente. Não sou cocainômano, não sei, mas possuidor de outros vícios, posso imaginar a sua sofreguidão. Por isso digo que buscávamos a música de Chico à semelhança de um viciado que procura a sua salvação, urgente, agora, para ontem. E isto, se aliviava, deixava em seu próprio alívio a ferida mais aberta. Até onde a memória alcança, lembro que nos momentos em que ouvíamos Chico a alegria não tinha morada. E isto, dividam comigo por favor a dúvida, não sei se vinha da própria natureza da sua composição ou das circunstâncias, do tempo miserável da ditadura militar em que vivíamos. Pois ele era a expressão musical da nossa asfixia.

Não pensem que reagimos como amestrados cães de Pavlov. Isto é, como ouvíamos muito Chico durante a ditadura militar, teríamos para sempre associado o azinhavre da baioneta à sua música. Ouçam, por exemplo, o Chico sem panfleto, sem mensagem antiditadura, um Chico sem bandeiras de maio de 68:

“O meu amor Tem um jeito manso que é só seu E que me deixa louca Quando me beija a boca A minha pele inteira fica arrepiada E me beija com calma e fundo Até minh’alma se sentir beijada, ai

O meu amor Tem um jeito manso que é só seu Que rouba os meus sentidos Viola os meus ouvidos Com tantos segredos lindos e indecentes Depois brinca comigo Ri do meu umbigo E me crava os dentes, ai...”.

É uma celebração do amor, é certo. Um porque me ufano do prazer e carinho que meu amor me extrai e me dá. Um canto da alma feminina, segundo a tradição crítica, à qual poderíamos acrescentar: um canto do homem que faz a mulher cantar o prazer que recebe. Há muita beleza, e verdade nessa letra, percebemos. Mas reparem, é uma comemoração de Dioniso. Nela não há mãos dadas dos amantes ao pôr-do-sol, o relaxar após o êxtase. Pelo contrário, é um cântico aos jogos amorosos que anunciam a tempestade. A flecha rumo às nuvens carregadas, prenhes de raios e tormentas. Queremos dizer: é do estilo, é do gênero, é da alma do compositor a inquietação, a ansiedade, um mal-estar no mundo. O amor como um sempre contentamento descontente. A léguas de distância do “quando a gente gosta de uma pessoa, somente estar juntinho dela já é um grande bem”. Mas, mas, pero, pero. Falar próximo, da coisa real com a coisa real, falar da música desse grande compositor é tecer composições cheias de adversativas, de contradições, de idéias que zarpam, às quais temos de rápido agarrar no espaço.

Mas, primeiro. Essa ausência do amor apolíneo, esse ausência do cantar maturado da felicidade que partiu, como num Cartola, enfim, essa falta de serenidade, longe está de ser uma falta de beleza, uma restrição da arte plena. Desde Kafka aprendemos que de uma só maneira se faz a arte: de todas as maneiras.

“De todas as maneiras Que há de amar Nós já nos amamos Com todas as palavras feitas pra sangrar Já nos cortamos Agora já passa da hora ‘Tá lindo lá fora Larga a minha mão Solta as unhas do meu coração Que ele está apressado E desanda a bater desvairado Quando entra o verão...”

Pero, segundo. É de um barbarismo grande falar de música sem a música mesma. Não sei se na frase anterior eu consegui ser mais bárbaro. Porque desejo dizer: o aproximar-se, pela compreensão, pelo deciframento, de uma arte específica exige uma imitação de sua especificidade. Danou-se, parece que desta vez me expressei pior. Porque desejo dizer: um marciano não compreende um terráqueo. Sim, por incrível que pareça, agora estou mais próximo, porque desejo dizer: a arte, como expressão maior de e da humanidade, exige e impõe a visão e o usufruto humanos. E se vemos a arte como um total oceano, repleto dos outros Pintura, Literatura, Cinema, Música...., o atingir o específico desses mares é melhor feito por quem é da fauna, ou pelo menos sabe imitá-la tão bem como se não parecesse uma imitação. Aquele dito eterno de que a melhor arte esconde a sua arte. Ao que acrescentamos, tortamente: a boa crítica imita o que critica. A melhor, nem parece.

Sem embargo, terceiro. Nessa busca da música popular, cantada, é de um bárbaro reducionista (e não seria todo bárbaro uma redução? – aquela pessoa é um inimigo, e um inimigo é um pescoço a ser cortado?), é uma violência estúpida o amesquinhamento da canção à sua letra, que por sua vez se transforma em objeto autônomo, elevado a poema. Esta é uma operação que não engrandece primeiro àqueles a quem julga beneficiar, os compositores de música, e em segundo, muito menos, aos poetas. Os compositores, reis e soberanos, indispensáveis a todos nós, não precisam dessa invasão de domínio. Os poetas, por sua vez, sentem-se com toda justiça espoliados. E acompanhem essa dupla violência e injustiça: quando alguém destaca a letra da música sempre o faz com a lembrança da melodia; quando alguém destaca um poema, destaca-o do quê?, destaca-o da própria força do seu ritmo, imagem, verdade, expressão e síntese. Os poetas, soberanos absolutos no reino do poema, só têm as palavras, o compositor popular tem palavras e melodia, e, por vezes, ninguém sabe ao certo o que mais tem.

Pero, por fim. Falar de um compositor a partir das letras de suas músicas é abstrair a “interferência” da música em suas palavras, é, mais longe, esquecer o arranjo feito para a canção que não sai da lembrança, e, bem mais certo, é cortar a cabeça do intérprete, esse novo artista que relê e nos devolve uma canção absolutamente renovada, quando não outra, com toda radicalidade. Uma história da música sempre será uma omissão se desprezar o papel do intérprete. Em nome da nossa inteligência, dessa comunhão e cumplicidade que se estabelecem entre quem escreve e quem lê, façamos de conta que esquecemos inúmeros e infindáveis exemplos de músicas que não existiriam sem os seus cantores/intérpretes.

Um último pero. Milton Nascimento, o escultor e reinvetor de melodias, já declarou certa vez que não gosta de quem aponta em Chico a excelência da letra. Que isto é um elogio contra. (Saibam que no Brasil, aqui e ali, elogiamos contra. “Lima Barreto, o maior escritor brasileiro”, dizemos, contra Machado de Assis. “Grande coração tem este homem”, dizemos, para constranger uma pessoa a quem o generoso ajudou.) Isto porque esse destaque se faz para obscurecer a qualidade da música de Chico. Mas como, não digo realçar, mas como não lembrar as letras de um homem que acerta

“Ó pedaço de mim, Ó metade arrancada de mim Leva o vulto teu Que a saudade é o revés de um parto A saudade é arrumar o quarto Do filho que já morreu” ?

No momento em que escrevo, uma pequena pluma, vinda de não sei onde, desceu pela janela, soprada pela brisa da manhã. Procuro-a pelo chão, inútil. Quem sabe se isto não significa que é hora de suspender o coração e deixar para outra oportunidade estas anotações sobre a música de Chico? Continuaremos, na próxima. Urariano Mota

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