El Quixote de la Paulista

Raul Longo

Me desculpem. Não quero lhes estragar a festa de hoje, mas preciso contar. Contar daquela noite do ano de 1966 quando Carlos Rimonato, colega secundarista, me leva ao Bar Sem Nome na Rua Dr. Vila Nova (São Paulo - Vila Buarque) para conhecer seu primo artista plástico, de quem contara o que imaginei serem fantasias.

Carlinhos pergunta a um e outro, à proprietária do bar, que só era bar à noite, pois durante o dia prestava serviços de quitanda: - Sabe do Joel? Informaram que não aparecia há algum tempo.

De fato, naquela noite não conheci o primo do Carlinhos, mas como os sumiços do Joel se tornaram costumeiros ao longo das décadas, quando nos anos 80 encontrou minha casa em Ubatuba, me preocupei. Algumas noites depois dele dormindo na minha canoa, que elegera como berço dispensando a cama de um quarto de hóspedes, e acordando a mim e minha atônita companheira com o barulho da embarcação oscilando à deriva no piso cerâmico da sala que a abrigava e à qual decorava, por ter sonhado com um naufrágio; perguntei: - Joel, Neide sabe que você está aqui?

Contou que dissera à Neide, sua última companheira, e à filha Patrícia, sua intenção de passar uns dias na praia. Daí só visitara um amigo em Bertioga, outro na praia da Maçaranduba, de onde saíra a minha procura pelos 100 kms litorâneos de Ubatuba. Em se tratando de Joel, isso era coisa pouca. Sosseguei e Joel se estabeleceu por mais de mês. Voltei a preocupar, pois sabia dos sustos de Neide com as intemperanças do amigo. Moravam então num sítio afastado, às margens da bonita represa de Guararema.

Aproveitando que teria de ir pra São Paulo, insisti que viesse comigo. Queria seguir para Parati e que eu o acompanhasse. Dinheiro não tinha, porque nunca manteve dinheiro no bolso por mais do que poucas horas. Conhecendo-o bem, fui irredutível: só lhe pagaria a passagem se embarcasse comigo, pois o mesmo ônibus de 4 horas de viagem até São Paulo obrigatoriamente teria de passar às margens de Guararema, pela Via Dutra. Pouco antes da entrada de sua cidade, Joel lembra-se de um certo comprador em São Paulo que lhe devia parte do valor de uma obra. Rosnei os palavrões que poderiam ser rosnados dentro do ônibus lotado e Joel jurou que na tarde daquele mesmo dia voltaria para sua casa. Não acreditei, mas o que poderia fazer? Em São Paulo ninguém segurava Joel e só ficou a promessa do retorno.

Quase 2 meses depois me liga um nosso amigo comum, para saber se tinha alguma informação sobre o Joel. Conforme Neide lamentara, estava sumido há mais de meio ano.

Joel sumia e aparecia como qualquer personagem de fábulas. Era comum um amigo estranhar como uma peça desaparecida de seu vestuário, surgia na casa de outro, para depois lembrar que emprestara aquela camisa, calça ou sapatos ao Joel. Já sabíamos o que responder: - Espera que o Joel vai deixar na sua casa a roupa que emprestei pra ele trocar essa sua. Não apenas socialista, Joel era socializante.

Anos 80. Os amigos prepararam uma reconciliação de Joel Câmara com a sociedade paulista e carioca. Uma merecida e justificável reentrada no cenário artístico e intelectual que ele tanto desprezou a ponto de cair no ostracismo, depois de anos de reconhecimento internacional pela excepcionalidade de seus desenhos.

Incumbiram Neide, sua última e mais paciente companheira, de administrar o Joel. Ela fez tudo certinho, estabeleceu todos os contatos, seguiu todas as orientações dos marchands e experts. Mas cometeu um erro cabal e fulminante: no dia da vernissage repassou ao Joel o dinheiro, patrocinado por importantes instituições e consulados, para recolher as obras entregues aos serviços de finas molduras implantadas por um certo especialista da Rua Frei Caneca.

Joel foi, acatando placidamente as recomendações e pleno de promessas sóbrias. Estava integralmente cônscio de que o moldureiro o esperava. A transportadora também o esperava, na porta do moldureiro. Era só entregar o dinheiro do custo dos serviços e retornar com as obras para a montagem da exposição que se abriria às 20 horas em uma das mais badaladas lojas de arte da tradicional Praça Dom José Gaspar, ao lado da Biblioteca Mário de Andrade, reduto da fina intelectualidade paulistana de então.

No acaso desses nossos caminhos, sempre aparece um irmão necessitado a pedir uma pratinha para um alívio líquido à dureza do viver. Talvez até em nome de Deus, mas como não estava junto, não posso assegurar. Bem conhecendo o Joel, posso, sim, ouvir sua resposta: - Em Deus não confio, mas Jesus Cristo me ensinou que se deve dar de beber a quem tem sede. E meu compadre Karl Marx complementou que melhor do que dar é repartir. Então comparto com você o que mais conservo em meu sangue: à cachacinha.

Apesar dessa indisposição do Joel com o ser Supremo das igrejas que ele abjurava, não posso omitir aqui que quando o apresentei a um pedreiro meu amigo, declinando o nome do profissional: Jeová, o profético Joel, com deferência, reconheceu de imediato apertando a mão calosa: "- Opá! Meu superior hierárquico!

Só que no dia da exposição o moldureiro cansou de esperar. A transportadora também. Só Neide esperou. Os convidados cansaram. Os garçons e maitres do buffet desistiram. Os patrocinadores, os reportes das TVs, jornais e revistas, os intelectuais, a classe média. A vernissage era às 8, esperaram até às 8:30. 9 horas começaram a desmontar os aparatos. Os secretários de cultura desistiram, as madames. 9:30 chega o Joel Câmara com seus novos amigos. Gente boníssima, soldados de primeira linha, convocados entre os mais desprezados inimigos da classe média paulistana: os mendigos das esquinas escusas e sombrias, das portas dos botecos da baixa Frei Caneca.

Sem os desenhos encerrados na molduraria já fechada e desprezados pela impaciência da transportadora, Joel surgiu comandando aquele incrível batalhão de Branca Leone, e reclamando: "- Agora que trago meus convidados, acabou a festa?"

Tinha razão o Joel contra aquela intolerância da classe média, mas naqueles anos 60 pacientemente voltei ao Sem Nome inúmeras vezes, curioso sobre o primo de quem Carlinhos contava histórias fantásticas, dignas de personagem de novelas picarescas. Um Quixote urbano do século XX, com toda a intensidade e profundidade do maior personagem da literatura universal.

No Sem Nome conheci Toquinho, Baden Powel, Chico Buarque de Holanda, José Dirceu, Travassos e mais um monte de gente já famosa ou que ainda viria a se tornar conhecida nacional e internacionalmente. Mas Joel, que era quem eu queria: não encontrei.

Lá por 68 tive de arrumar um emprego público às presas para escapar de processo e prisão pela Lei de Segurança Nacional que acobertava a covardia dos milicos que assaltaram o poder do país. Nunca entendi porque os generais brasileiros se sentiam ameaçados por um adolescente secundarista, mas me tornei entregador de contas de água, num prédio da então Superintendência de Águas e Esgotos da Capital - SAEC, na esquina da Benjamim Constant com a Praça da Sé.

Ali conheci Guido Ivan, um Van Gogh da São Paulo daqueles tempos. Através do Ivanzinho (outro grande personagem de maravilhosas histórias), conheci muitos militantes do PCB e fui apresentado a alguns autores bastante consagrados no meio: Mickhail Bakunin, Karl Marx, Friedrich Engels, Wladimir Lenin, Antonio Gramsci, entre outros.

Mais tarde, meio intimidado pela sobriedade e sectarismo dos companheiros do partido, sempre me constrangia quando chegávamos juntos às reuniões e Joel insistia ao cumprimentar cada um, repetindo sua permanente saudação: "- Louvado Seja Nosso Senhor Jesus Cristo!" Relutavam em respondê-la, mas Joel persistia, em voz de comando: "- Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, companheiros!", até que aquele bando de materialistas se resignasse a responder: "- E para sempre seja!"

Um dia alguém pergunta ao Joel se aquele negócio de carregar um enorme crucifixo pendurado ao pescoço era uma heresia comunista ou falta de consistência ideológica de um cristão. Teve de ouvir toda uma análise minuciosa comprovando que o Sermão da Montanha é a única obra produzida pela humanidade, tão ou mais revolucionária do que O Capital.

Mas isso já foi tempos depois do Ivanzinho me levar para a Rua Sete de Abril, o centro da resistência cultural na cidade de São Paulo naquela década de 60. Havia ali o edifício do Diários Associados e entre mestres do jornalismo da época, como Samuel Weimer, conheci Ubaldino Pereira, irmão do Guido Ivan, que me introduziu na profissão. Na época Ubaldino era da Folha de São Paulo, de onde também fora um tal de Joel, o mesmo de quem o Ivan era muito amigo e por quem eu tinha muita curiosidade, pois o que dele relatavam combinava com o mitológico primo do meu perdido colega de escola.

Também no edifício dos Diários Associados, ficava o MASP - Museu de Arte São Paulo, antes de se mudar para a Av. Paulista. E por essa razão conheci Wesley Duke Lee, Lygia Clark, Hélio Oiticica. Mas o que me interessava mesmo era algum dia ver os desenhos tão comentados do tal Joel.

Olhos de rã feridos pela luz do sol alto de uma manhã de domingo do Embu, quando ainda realmente era uma cidade de artes comandada pelo poeta pernambucano Solano de Andrade, desviávamos dos turistas com humor ressacado pela noitada anterior, quando se aproxima um rapaz puxando uma moça bonita e gritando efusivamente: "- Joel! Joel!" Paramos. O casal nos alcança e o homem abre espaço para a moça poder admirar melhor: "- Meu bem: esse é Joel Câmara, o pintor!"

Brilhantes, os olhos da moça se arregalam, enquanto pergunta: "- Você é Joel Câmara, o pintor?!!!"

"- Não senhora! Eu sou Joel Câmara, o traficante de ópio". Circunda o casal e segue em frente. Corro atrás e dou bronca: que não devia ter feito aquilo, coitada da mocinha, ficou lá plantada como besta!

"- São bestas mesmo! Todo classe média é besta e ignorante. Como pintor!? Eu nunca pintei coisa alguma. Sou daltônico, como vou poder pintar? Desenhista é uma coisa, pintor é outra.

Tornei-me cotidiano à Rua Sete de Abril, mas apenas na feira de arte da Praça da República, também aos domingos, vim a conhecer o lendário Joel Câmara. Não foi preciso perguntar se era o primo do ex-colega de escola. Não poderia haver dois iguais aquele e nossa identificação nasceu no primeiro momento.

Exagero e vaidade. Claro que nenhum daqueles saudosos e queridos amigos se identificariam com um neófito despontando pelugens no queixo. Eram homens e mulheres de 30 a 40 anos e, no máximo,sensibilizei seus sensos paternais. Mas, discípulo aplicado, ao longo do tempo fui me tornando informante de meus mestres sobre as realidades desses Brasis por onde vaguei. Bem verdade que de Joel, Ivanzinho, e o cabecita negra Jorge Lescano (que soube falecido em minha última passagem por São Paulo), e sem esquecer o Mário e o João Borba (da turma do Solano Trindade) em pouco tempo fiz-me irmão mais novo. Algumas vezes até conselheiro, e não há nisso vaidade alguma, pois resultava de mera reciprocidade ou, aí sim e já então, total identificação quando as experiências de todos já eram tantas e tão conjuntas que se confundiam.

Apesar de ter saído de São Paulo na primeira metade dos anos 70, impossível contar de mim naquela década e nas seguintes sem me referir a estes tão caros amigos. Especialmente o Joel Câmara, pois foram algumas nossas viagens pela Serra da Mantiqueira, para as Minas Gerais em busca dos cenários e personagens de Guimarães.

Me retorna agora a comoção do reencontro que promovi, depois de tantos anos, entre Joel e o magnífico interprete e compositor João Borba. Chico Cordão e demais amigos presentes se silenciaram às lágrimas de nós três, provocadas pelo abraço daqueles ícones esquecidos do que melhor já se produziu em cultura neste país das nulidades dos sucessos vazios de conteúdo, fabricados pela mídia.

Impossível esquecer quando moramos no Embu e em Parati. Às vezes que fomos presos, acusados de arruaceiros, como naquela em que depois de verificar meus documentos o delegado insisti pelos do Joel. Bateu as mãos nos bolsos da camisa, depois nos das calças e, desistindo, serenamente informou: - Seu Delegado, acho que bebi meus documentos.

Impossível esquecer a primeira vez (repetiram-se muitas) em que Joel, como Sargento de Cavalaria que dizia ter sido no passado, convocou meu engajamento à Legião Estrangeira. Peremptório e tonitroante, levantou do balcão e deu a ordem que muito assustou o resto da freguesia de um bar sofisticado da Av. Paulista: - Soldado! Assuma meu comando! Saímos daquele ambiente que nos era totalmente estranho, embriagados e ensandecidos em nossa guerra surda contra a classe média.

Lutamos muito dessa guerra. Uma guerra difícil, onde eu me incumbia da difícil missão de explicar o Joel para suas tantas e inconformadas esposas, das quais tornava-se eterno apaixonado e com os quais apenas tivera filhas. "- Aprendi com Sófocles e Freud a não criar meus próprios inimigos" - justificava-se.

Para contar todas as histórias que testemunhei de Joel, teria de escrever um livro e chorar rios de lágrimas. Não sei se mais difícil seria me conformar com a perda desse companheiro, ou acreditar ter convivido com um personagem tão fantástico. Para todos que com ele convivemos, hoje não é fácil definir até onde Joel Câmara de fato existiu tal qual o conhecemos e recordamos. As lembranças de Joel facilmente se misturam aos delírios românticos de nossa geração quixotesca.

Hoje, no dia em que se convencionou como o do nascimento do maior ídolo do Joel, gostaria de imaginar três malucos enchendo a cara de vinho (do que tanto gostava e lhe fora proibido pelos médicos depois de perder um rim, mas que sem dúvida agora lhe estará liberado). Todos os três ironizando e rindo da fatuidade e dos superficialismos da classe média.

Marx dúvida de si próprio e diz que o cenário não passa de efeito do ópio do povo. Jesus pouco se importa, convencido de que todos são iguais. E Joel rabisca os contornos barrocos dos garçons anjinhos, como a vez em que foi contratado para desenhar um mural numa parede de um apartamento recém adquirido por um classe média.

O combinado fora o estoque de bebida e o prazo de absoluta solidão para ninguém incomodar o trabalho do artista.

O proprietário encerra e tranca por fora a porta, atendendo ao prazo estrito e estipulado pelo próprio Joel para o retorno e abertura da porta.

Encontrou seu apartamento não inaugurado com sequer um mínimo espaço sem ser desenhado. As figuras e traços do Joel se inscreviam até nas bordas do vaso sanitário. Desesperado, o proprietário lamenta-se dos custos para raspar e apagar aquele excesso todo, e Joel, placidamente explica apontando a parede combinada: - Tá vendo a bundinha daquele anjo ali? Pois é, não coube. De forma que tive de terminá-la nesta parede do lado. Aí não poderia deixar apenas o sacrilégio de uma bunda de anjo pendurada ali no canto. Tive de complementar. Bebida tinha, mas não tinha como sair... E fui complementando. Mas tudo é arte, ou não é?

Por isso é que posso imaginar que se hoje resolverem comemorar o aniversário e beberem um pouco mais, até a meia-noite Joel convocará seus novos parceiros para uma guerra santa. Chiiiiii! Marx e Jesus ao comando de Joel Câmara vão dar um trabalho danado pro coitado do São Pedro. E Deus que se cuide!

Que se divirtam! Nunca fui de muito festejar o natal, mesmo. Mas também não podia imaginar que viveria um tão triste.

Louvado seja Joel Câmara! Para sempre seja louvado!

P.S.: Aos dos tantos a quem chegar essa mensagem e que conheçam ou tenham meios de acesso à Patrícia, favor passarem meu endereço, pois não tenho o dela. O mesmo ao Chico Cordão. Avisem à Patrícia que tenho por volta de uns dez trabalhos do Joel, de uma exposição conjunta (eu com poesia) que fizemos em Ubatuba. Esses trabalhos ele deixou em minha casa para que os guardasse. Não me pertencem e, agora, pertencem a ela e só a ela, quando a encontrar, entregarei.

Raul Longo
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