A traiçoeira ideologia que nos leva a beira de um precipício com o Brexit

A traiçoeira ideologia que nos leva a beira de um precipício com o Brexit

Para os fanáticos neoliberais, nenhum acordo representa uma grande oportunidade para remodelar drasticamente a Grã-Bretanha

Por George Monbiot

 

12/09/2019 13:20

 

Créditos da foto: O neoliberalismo foi adotado por Margaret Thatcher, Ronald Reagan e pela maioria dos governos subsequentes. Os dois líderes retratados em 1981. (Bettmann Archive)

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Em um primeiro momento, é incompreensível. Por que arriscar tudo por um Brexit sem acordo? Dissolvendo seu próprio partido, perdendo a maioria parlamentar, desmantelando o Reino Unido, destruindo a economia, provocando escassez de alimentos e medicamentos: como poderia qualquer objetivo, para o Partido conservador e sindicalista, valer a pena? Para que isso?

Bom, claro que algumas pessoas sairão beneficiadas com isso. A julgar por doações recentes ao partido conservador, algumas pessoas muito ricas aprovaram as políticas de Boris Johnson. Um Brexit sem acordo pode favorecer os fundos especulativos que prosperam com a incerteza, os financiadores que procuram reduzir a libra, os capitalistas abutres que desejam fazer uma limpa nas propriedades baratas caso os mercados entrem em colapso. Mas os vencedores provavelmente ficarão em menor número em relação aos perdedores, entre os quais estão muitos interesses comerciais poderosos.

Cometemos um erro quando assumimos que o dinheiro é a principal motivação. Nosso sistema de financiamento político corrompido e corrupto, não reformado, garante que seja um fator importante. Entretanto, o que conta acima de tudo é a ideologia, pois a ideologia perseguida com sucesso é o meio para o poder. Você não pode exercer verdadeiro poder sobre outras pessoas, a menos que possa moldar a maneira como elas pensam e moldar o comportamento delas com base nesse pensamento. Os interesses de longo prazo da ideologia diferem dos interesses de curto prazo da política.

Acredito que esta é a chave para entender o que está acontecendo hoje. Os ultras do Brexit no governo não são apenas os ultras do Brexit. Eles são os ultras neoliberais, e o Brexit é um meio altamente eficaz de promover essa ideologia fracassada. É o ultimato da doutrina do choque, fazem uso de uma situação pública emergencial para justificar a imposição de políticas que não seriam aceitas em outros tempos. Eles realmente não querem um acordo ou querem já é uma ameaça que cria um espaço político no qual eles podem aplicar suas ideias.

 O neoliberalismo é a ideologia desenvolvida por pessoas como Friedrich Hayek e Milton Friedman. Não é apenas um conjunto de ideias de livre mercado, mas uma disciplina focada e deliberadamente aplicada em todo o mundo. Trata a competição como a característica que define a humanidade, vê os cidadãos como consumidores e "o mercado" como princípio organizacional da sociedade. O mercado, afirma, nos classifica em uma hierarquia natural de vencedores e perdedores. Qualquer tentativa de intervenção da política interrompe a descoberta dessa ordem natural.

O neoliberalismo "foi adotado por Margaret Thatcher, Ronald Reagan e pela maioria dos governos subsequentes". Eles procuraram implementar a doutrina cortando impostos, privatizando e terceirizando serviços públicos, cortando proteções públicas, esmagando sindicatos e criando mercados onde antes não existiam. A doutrina foi imposta pelos bancos centrais, o FMI, o tratado de Maastricht e a Organização Mundial do Comércio. Ao encerrar a escolha política, governos e organismos internacionais criaram uma espécie de capitalismo totalitário.

Falhou em seus próprios termos e de muitas outras maneiras. Longe de criar prosperidade geral, o crescimento tem sido mais lento na era neoliberal do que nas décadas anteriores, e a maioria de seus frutos são recolhido pelos ricos. Longe de estimular uma economia empresarial, criou-se uma era dourada para requerentes de aluguel. Longe de eliminar a burocracia, criou-se um sistema kafkaesco de diktats loucos e de controle sufocante. Fomentou-se crises ecológicas, sociais, políticas, econômicas e financeiras, culminando no colapso de 2008. No entanto, talvez porque seus oponentes não tenham produzido uma nova e convincente história própria, essa ideologia ainda domina nossas vidas.

'A criação de uma emergência é o destino inevitável de um sistema absolutista e fracassado'

As pessoas reagiram ao fim da escolha política e aos múltiplos desastres que ela causou, sem surpresa alguma. No entanto, como o neoliberalismo, em termos gerais, foi adotado não apenas pela direita, mas também pelos Democratas, pelo New Labour e por outros partidos similares, haviam poucos lugares para recorrer. Muitas pessoas responderam com nacionalismo e nativismo. A nova política que o governo de Boris Johnson representa, incorpora o neoliberalismo e a reação a ele. Os essencialistas com brilhos nos olhos, que sentam nas fileiras da frente, como Dominic Raab, Liz Truss e Sajid Javid-, ainda procuram implementar a ideologia em sua forma mais extrema. Os oportunistas, como Johnson, Michael Gove e Priti Patel, apelam para aqueles que procuram bodes expiatórios pelos desastres que ele criou.

Johnson usa o enquadramento neoliberal para justificar seus ataques à segurança pública. Ele quer reduzir os padrões ambientais, criar portos livres nos quais as empresas podem evitar impostos e regulamentações, estabelecer um rápido acordo comercial com os Estados Unidos, que provavelmente destruirá as regras do bem estar animal e ameaçam a sobrevivência do NHS.

Ele se enfurece contra a burocracia, mas a verdadeira burocracia é criada pelos tratados internacionais de comércio que ele favorece, que tornam quase impossível a mudança democrática, por meio de regras que protegem o capital contra os desafios populares e afastam a tomada de decisões dos parlamentos para tribunais offshore irresponsáveis ( " solução de disputas entre investidores e estado " ). Isso explica o entusiasmo de alguns partidários pelo Brexit: a crença de que fugir da UE significa escapar de instrumentos comerciais coercitivos. Na realidade, ele nos expõe a algo ainda pior, quando o Reino Unido entra em negociações com os EUA trazendo consigo um enorme número de pedintes.

Agora, como argumenta Abby Innes, professor de economia política, o neoliberalismo chegou à sua fase de Brejnev: "ossificação, self-dealing, e uma política agitada desprovida de organização". Como o leninismo, o neoliberalismo afirma ser uma ciência infalível. Sua colisão com as complexidades do mundo real causou esclerose política do tipo que caracterizou o declínio do comunismo soviético. Como resultado, a única maneira de concluir essa revolução hoje é disfarçado por outros projetos: O Brexit é necessário.

A criação de uma emergência é o destino inevitável de um sistema absolutista e fracassado. Entretanto, a emergência também fornece o último meio pelo qual o sistema com falha pode ser defendido e ampliado.

George Monbiot é um colunista do The Guardian

*Publicado originalmente no The Guardian | Tradução de Cristiane Manzato

 

 

https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/A-traicoeira-ideologia-que-nos-leva-a-beira-de-um-precipicio-com-o-Brexit/6/45230

 

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