Aliança sino-russa chega à maioridade (3/3)

Aliança sino-russa chega à maioridade (3/3) 

22/9/2020, MK Bhadrakumar, Asia Times

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"Quintessencialmente, Rússia e China contestam um conjunto de práticas neoliberais que evoluíram na ordem internacional pós-Segunda Guerra Mundial e que validam o uso seletivo de direitos humanos como valor universal que legitimaria a intervenção ocidental nos assuntos internos de Estados soberanos. Por outro lado, também aceitam e continuamente afirmam compromisso com uma série de preceitos fundamentais da ordem internacional - em particular, a primazia da soberania do Estado e da integridade territorial, a importância do direito internacional e a centralidade das Nações Unidas e o papel fundamental do Conselho de Segurança."
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Ver também
Aliança sino-russa chega à maioridade (1/3)

14/9/2020, MK Bhadrakumar, Indian Punchline, traduzido aqui


Aliança sino-russa chega à maioridade (2/3)
17/9/2020, MK Bhadrakumar, Indian Punchline, traduzido aqui

 

LEGENDA: O presidente russo Vladimir Putin (esq.) e o presidente chinês Xi Jinping (dir.) assinam declarações sobre a "Parceria Estratégica Abrangente de Coordenação para a Nova Era" e "fortalecimento da estabilidade estratégica global contemporânea" (Moscou, 5/6/2019)

O discurso dos legados compartilhados

A desintegração da União Soviética em 1991 foi um desastre geopolítico para a Rússia. Mas o divisor de águas, paradoxalmente, fez com que Moscou e Pequim, antes adversários, se aproximassem, enquanto assistiam sem se deixar seduzir, à narrativa triunfalista dos EUA sobre o fim da Guerra Fria, que derrubava a ordem que ambos consideravam crucial para o próprio status respectivas identidades nacionais, apesar de todas as diferenças e disputas.

O colapso soviético resultou em grande incerteza, conflito étnico, privação econômica, pobreza e crime para muitos dos estados sucessores, em particular para a Rússia.

E a agonia da Rússia foi observada de perto pela China, do outro lado da fronteira. Estrategistas políticos em Pequim estudaram a experiência das reformas soviéticas, para evitar a "trilha da carroça quebrada". E pode ter havido também um sentimento de apreensão sobre o colapso soviético, derivado das raízes partilhadas das respectivas 'modernidades' dos dois países.

Mas, olhando para trás, embora os discursos políticos na China e na Rússia sobre as razões da desintegração da União Soviética tivessem mostrado perspectivas às vezes divergentes, as lideranças em Moscou e Pequim conseguiram assegurar que o futuro do relacionamento entre elas permanecesse imune a qualquer divergência.

Sabe-se que Xi Jinping falou sobre a ex-União Soviética, logo depois de se tornar secretário-geral do Partido Comunista Chinês. A primeira vez, em dezembro de 2012, quando, em comentários aos funcionários do Partido, observou que a China continuava a ter de "lembrar profundamente a lição do colapso soviético". Na sequência, citou a "corrupção política", o "pensamento herético" e a "insubordinação militar" como razões para o declínio do Partido Comunista Soviético. Consta que Xi teria dito que "Causa importante [do declínio do PCUS] foi que ideais e crenças foram abalados". No final, Mikhail Gorbachev, com uma palavra, declarou extinto o Partido Comunista Soviético, "e o grande partido se foi. Simples assim".

Xi disse que: "No final, não houve homem corajoso o suficiente para resistir, ninguém apareceu para contestar [a decisão]." Algumas semanas depois, Xi voltou ao tema, e consta que teria dito que uma razão importante para o colapso soviético foi que a luta na esfera ideológica foi extremamente acirrada; a história soviética foi completamente negada, negaram Lênin, negaram Stálin, buscaram o niilismo histórico, confusão de pensamento; as organizações partidárias locais já praticamente não tinham função.

Os militares não estavam sob a supervisão do Partido. "No final, o grande Partido Comunista Soviético desapareceu como revoada de pássaros ariscos ou bando de feras assustadas. A grande nação socialista soviética caiu em pedaços. Eis o rastro que deixa uma carroça quebrada!"

Na narrativa russa, o principal motivo foi o fracasso da política macroeconômica soviética. É fácil ver por que o presidente Vladimir Putin recorre à experiência chinesa de reforma e abertura.

Putin não se apresenta como marxista-leninista; nem recorre à ideologia soviética como fonte de legitimidade. Em sua perspectiva, a perestroika teve bons fundamentos, pois Gorbachev teria entendido claramente que o projeto soviético havia encalhado. Mas as novas ideias e novas políticas de Gorbachev não deram certo e levaram, por sua vez, a uma à profunda crise econômica e à insolvência financeira que, em última análise, desacreditou-o e destruiu o Estado soviético.

Putin conheceu diretamente, experiência em primeira mão, tanto as maravilhas do socialismo soviético como seu fracasso fatal, ao competir com o Ocidente na oferta de melhor qualidade de vida aos cidadãos.

É provável que Putin tenha voltado a São Petersburgo, de seu posto em Dresden, totalmente desencantado com os ideais comunistas. Quando Stalin morreu, Putin ainda não completara cinco meses de vida. Para ele, as grandes figuras do marxismo-leninismo não seriam grande coisa.

Por sua vez, Xi Jinping conheceu a China em plena revolução. Para Xi, Mao era ao mesmo tempo figura divina e pessoa de carne e osso. O próprio pai de Xi foi camarada de Mao (mesmo que, adiante, Mao o tenha expurgado). Xi conheceu a Revolução Cultural, em primeira mão. Mas para ele, negar Mao seria como negar uma parte de si mesmo. Portanto, rejeitar o "niilismo histórico" de estilo soviético é, em Xi, efeito pode-se dizer, natural. Nas palavras de Xi, "o Partido Comunista Soviético tinha 200 mil membros, quando tomou o poder; tinha 2 milhões de membros, quando derrotou Hitler, e 20 milhões de membros, quando renunciou ao poder... Por que renunciou? Porque os ideais e crenças já não estavam lá".


Mas o ponto em que Putin e Xi Jinping convergem, é uma soma de três fatores. Um, o quanto ambos apreciam a surpreendente velocidade com que a China chegou à posição de superpotência econômica.

Nas palavras de Putin, a China "conseguiu da melhor maneira possível, na minha opinião, usar as alavancas da administração central (para) desenvolver uma economia de mercado (...) A União Soviética nada fez de semelhante a isso, e os resultados de uma política econômica ineficaz impactaram a esfera política."

Daí se extrai o sentido real da grande importância - da quase centralidade - que Putin atribui aos laços econômicos na parceria geral sino-russa.

Em segundo lugar, apesar de quaisquer diferenças que possa haver nas respectivas narrativas sobre as razões para o colapso dos soviéticos, Putin e Xi convergem no discurso de legitimação da grandeza revolucionária encarnada na União Soviética. Assim, a identidade sino-russa está muito visível e clara hoje na posição que os dois países partilham, contra as tentativas do Ocidente para falsificar a história da 2ª Guerra Mundial.

Em entrevista recente, o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, disse:


"Estamos testemunhando uma agressão à História, cujo objetivo é revisar os fundamentos modernos do Direito Internacional que se constituíram na esteira da 2ª Guerra Mundial na forma da ONU e dos princípios de sua Carta. Há tentativas de minar essas mesmas bases. Usam-se principalmente argumentos que visam a equiparar a União Soviética à Alemanha nazista - os agressores que tentaram escravizar a Europa e transformar a maioria dos povos de nosso continente em escravos - e os que derrotaram esses agressores. Temos sido insultados por acusações diretas de que a União Soviética seria mais culpada por desencadear a 2ª Guerra Mundial, do que a Alemanha nazista. Ao mesmo tempo, o lado factual da questão está completamente varrido para debaixo do tapete: como tudo começou em 1938, a política de 'acalmar' Hitler adotada pelas potências ocidentais, principalmente França e Grã-Bretanha".


Aliança modelo, de apoio mútuo

A China também enfrenta trajetória semelhante de inversão de papéis - o agressor faz sermões com fúria de bispo de feira; e a vítima é ridicularizada.

É natural um forte senso de empatia chinesa com a Rússia, porque a China também enfrenta situações em que é forçada a recuar, como na questão dos direitos humanos em Xinjiang, ou quando é declarada "intransigente", ao fazer reviver em 2015 suas reivindicações históricas no Mar do Sul da China, do ponto em que foram deixadas em 1935, em resposta às atividades dos outros estados litorâneos.

Nem chega a ser segredo que a inteligência ocidental teve grande influência no processo para amplificar a agitação em Hong Kong. Na verdade, já é longa a história da interferência dos EUA nos assuntos internos da China, para desestabilizar o governo comunista. Remonta às atividades secretas da CIA no Tibete nos anos 50 e início dos anos 60 (parcialmente responsáveis pelo desencadeamento do conflito entre China e Índia em 1962). Hoje, os EUA ativamente retrocedem em sua política de "Uma China", que foi o alicerce da normalização sino-americana no início dos anos 1970.

Da mesma forma, a interferência dos EUA na política russa, que começou a surgir no final dos anos 1980 na era Gorbachev, tornou-se gritante e intrusiva nos anos 1990, após o colapso da ex-União Soviética. Os EUA arquitetaram abertamente um resultado desejado em favor de Boris Yeltsin nas eleições presidenciais russas em 1996 - e gabaram-se abertamente de financiá-lo e microgerenciá-lo.

Putin acusou os EUA de provocar protestos na Rússia em 2011 e gastar centenas de milhões de dólares para influenciar as eleições russas. Putin disse que a então secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, encorajou os inimigos "mercenários" do Kremlin. "Ela deu o tom para alguns ativistas da oposição, enviou-lhes um sinal, eles ouviram esse sinal e iniciaram o trabalho ativo" - palavras de Putin.

Invocando a Revolução Laranja de 2004 da Ucrânia e a queda violenta de governos no Quirguistão, Putin disse que os países ocidentais estão gastando muito para fomentar mudanças políticas na Rússia. "Fazer jorrar dinheiro estrangeiro em processos eleitorais é particularmente inaceitável. Centenas de milhões estão sendo investidos nesta obra. Precisamos elaborar formas de proteção de nossa soberania, de defesa contra interferências externas ". Putin acrescentou: "O que dizer? Somos grande potência nuclear, e assim continuamos. Isso desperta preocupações com nossos parceiros. Tentam nos sacudir para que não esqueçamos quem manda no planeta".

O padrão de interferência dos EUA e aliados próximos foi praticamente o mesmo em Hong Kong - para desestabilizar a China e impedir sua ascensão como potência global. Da mesma forma, a China enfrenta hoje o mesmo padrão que a Rússia enfrentou, com os EUA criando uma rede de estados hostis para cercá-la, cercando-a - Geórgia, Ucrânia, Polônia, Estados Bálticos, etc. Semana passada, o diretor do serviço de inteligência estrangeira da Rússia (ru. SVR), Sergey Naryshkin informou que Washington forneceu cerca de US$ 20 milhões para manifestações antigovernamentais na Bielo-Rússia.

Para Naryshkin, "De acordo com informações disponíveis, os EUA estão tendo papel central nos eventos atuais na Bielo-Rússia. Embora Washington tente manter-se discreta na discussão pública, uma vez iniciadas as massivas manifestações de rua, os EUA aumentaram fartamente o financiamento para as forças antigovernamentais bielorrussas, no valor de dezenas de milhões de dólares".

E especificou: "As manifestações foram bem organizadas desde o início e coordenadas do exterior. Vale ressaltar que o Ocidente já havia lançado as bases para os protestos muito antes das eleições. Os EUA em 2019 e no início de 2020 usaram várias ONGs para fornecer cerca de US$20 milhões para a realização de manifestações antigovernamentais."

A Bielorrússia, claro, é o elo que faltava no arco de cerco da Rússia que os EUA planejaram estabelecer. A mesma abordagem está em ação hoje também contra a China. A Aliança Quadrilateral (ing. Quad) liderada pelos Estados Unidos, incluindo Japão, Índia e Austrália, serve a esse propósito.

Nos primeiros anos, a entente russo-chinesa se concentrava exclusivamente no relacionamento bilateral. Incrementalmente, passou para a coordenação no nível da política externa - de forma limitada, para começar - que se tem intensificado constantemente.

Rússia e China estão-se ajudando mutuamente para repelir as políticas de contenção dos EUA. Assim, a China saudou abertamente a vitória eleitoral do presidente da Bielo-Rússia, Alexander Lukashenko. Da parte da Rússia, também há críticas muito mais fortes às tentativas dos EUA de aumentar as tensões na Ásia-Pacífico. O ministro das Relações Exteriores, Lavrov, disse em 11 de setembro em Moscou, na presença do conselheiro de Estado chinês e ministro das Relações Exteriores Wang Yi,


"Notamos o caráter destrutivo das ações de Washington que minam a estabilidade estratégica global. Eles estão alimentando tensões em várias partes do mundo, incluindo ao longo das fronteiras russa e chinesa. É claro que estamos preocupados com isso e nos opomos a essas tentativas de aumentar as tensões artificiais. Neste contexto, afirmamos que a chamada "estratégia Indo-Pacífico", tal como foi planejada pelos iniciadores, só leva à separação dos estados da região e, portanto, é carregada de graves consequências para a paz, segurança e estabilidade na Região pacífica da Ásia. Falamos a favor da arquitetura de segurança regional centrada na ASEAN com o objetivo de promover a agenda unificadora, e a preservação do estilo de trabalho consensual e da tomada de decisão consensual nesses mecanismos (...). Estamos vendo tentativas de dividir as fileiras dos membros da ASEAN com os mesmos objetivos: abandonar métodos de trabalho baseados em consenso e fomentar o confronto nesta região."


Novamente, em 18 de setembro, em entrevista à Nikkei Asian Review em Washington, o embaixador russo nos EUA, Anatoly Antonov, afirmou:


"Acreditamos que as tentativas dos EUA de criar alianças anti-China em todo o mundo são contraproducentes. Eles representam uma ameaça à segurança e estabilidade internacionais ... Quanto à política dos EUA na Ásia-Pacífico, ... Washington promove sentimentos anti-chineses e suas relações com os países regionais são baseadas em seu apoio a tal abordagem ... É difícil chamar o Indo -Iniciativa pacífica 'livre e aberta'. Mais provavelmente, é exatamente o oposto: este projeto não é transparente e não inclusivo ... se falarmos sobre os países do Oceano Índico. Em vez de normas bem estabelecidas de direito internacional, Washington promove ali uma obscura "ordem baseada em regras". Quais são essas regras, quem os criou e quem concordou com eles - tudo isso permanece obscuro."


Essas declarações sugerem que, na verdade, a atitude russa está em evolução constante, mesmo com os EUA aumentando a pressão sobre a China no Mar do Sul da China e no Mar da China Oriental.

Pilares da confiança mútua

Os propagandistas ocidentais ignoram levianamente que a aliança sino-russa foi construída sobre pilares sólidos. Não se pode esquecer que a primeira visita de Xi Jinping ao exterior como presidente foi à Rússia - em março de 2013, um ano antes da crise na Ucrânia que levou a sanções ocidentais contra Moscou. Mas analistas ocidentais insistem que a entente russo-chinesa não passaria de movimento de "pivô" da Rússia, decorrente de seu distanciamento com a Europa.

Falando antes da visita à Rússia, Xi disse que os dois países são "parceiros estratégicos mais importantes", que falam uma "língua comum". Xi chamou a Rússia de "vizinho amigo" e disse que o fato de a ter visitado tão cedo após assumir a presidência é "testemunho da grande importância que a China dá às suas relações com a Rússia. As relações China-Rússia entraram em nova fase na qual os dois países oferecem grandes oportunidades de desenvolvimento um ao outro".

Em entrevista à imprensa russa por ocasião da visita de Xi, Putin disse que a cooperação Rússia-China produziria "uma ordem mundial mais justa". Rússia e China, disse ele, demonstraram "abordagem equilibrada e pragmática" das crises internacionais. (Em artigo de 2012, Putin já pedira mais cooperação econômica com a China para "pegar o 'vento chinês' em (suas, da Rússia) velas econômicas".)

Resultado significativo das negociações de Xi com Putin foi a formalização de um contato direto entre os dois altos gabinetes em Moscou e Pequim. Em julho de 2014, Sergei Ivanov, então Chefe de Gabinete do Gabinete Executivo Presidencial no Kremlin e Li Zhanshu, então Chefe do Secretariado do Comitê Central do Partido Comunista Chinês, institucionalizaram esse formato, quando o primeiro visitou Pequim.

Foi a primeira vez que esse tipo e formato de contato foi visto na China, diretamente com outro país. Li e Ivanov (que foi recebido por Xi Jinping em Pequim) traçaram o roteiro para um relacionamento multifacetado concentrado em contatos intensivos de alto nível e cimentaram a parceria estratégica.

Quatro anos depois, em visita a Moscou em setembro de 2019, já no novo posto de Presidente do Comitê Permanente do Congresso Nacional do Povo Chinês, Li Zhanshu disse em reunião com Putin no Kremlin: "Hoje em dia, os EUA estão realizando uma dupla contenção de China e Rússia, além de tentar semear a discórdia entre nós, mas vemos bem claramente o movimento e não vamos morder essa isca. A principal razão é que temos base de confiança política recíproca muito sólida. Continuaremos fortalecendo essa base e apoiando firmemente as aspirações mútuas de trilhar o caminho do nosso próprio desenvolvimento, bem como defendendo os interesses nacionais e garantindo a soberania e segurança dos dois países".

Li disse a Putin: "Nos últimos anos, nossas relações atingiram alto nível sem precedentes. Foi assim principalmente por causa da liderança estratégica e do esforço pessoal dos dois líderes. O presidente chinês Xi Jinping e Vossa Excelência são grandes políticos e grandes estrategistas que pensam de forma ampla e global".

Na verdade, a declaração conjunta assinada por Xi Jinping e Putin em 5 de junho do ano passado em Moscou durante a visita de estado do líder chinês à Rússia foi amplamente observada como movimento de pivô que elevou o relacionamento à nova conotação da "parceria estratégica abrangente China-Rússia de coordenação para uma nova era".

Comentarista chinês Kong Jun, escrevendo no People's Daily naquela época, descreveu a declaração de junho de 2019 como demonstração


"do nível de maturidade em que operam o mais alto grau de confiança mútua, o mais alto nível de coordenação e o mais alto valor estratégico".


Simplificando, a visita de estado de Xi à Rússia no ano passado sinalizou que os dois países estavam no limiar de construir relações de aliança de facto, embora não de jure.

Uma aliança militar funcional também estava sendo formada naquela época. Exatamente três meses após a visita de Estado de Xi à Rússia, Putin falou publicamente pela primeira vez sobre uma "aliança" com a China - precisamente, diante de uma audiência doméstica em 6 de setembro de 2019, em Vladivostok. Desde então, é claro, as mensagens trocadas entre os líderes russos e chineses rotineiramente começaram a sublinhar sua promessa e firme determinação de salvaguardar conjuntamente a "estabilidade estratégica global", conforme enunciado na declaração conjunta de junho de 2019 emitida após a visita de estado de Xi.

Em outubro do ano passado, quase quatro meses após a visita de Estado de Xi a Moscou, durante uma conferência política em Sochi, Putin lançou uma bomba:


"Atualmente, estamos ajudando nossos parceiros chineses a criar um sistema de alerta contra ataque de mísseis. É coisa séria que aumentará drasticamente as capacidades de defesa da República Popular da China. No momento, apenas os EUA e a Rússia têm esses sistemas".


Um dia depois, o porta-voz de Putin, Dmitry Peskov, elogiou as "relações especiais, parceria avançada com a China (...) inclusive nas (áreas) mais sensíveis ligadas à cooperação técnico-militar e às capacidades de segurança e defesa". Separadamente, Sergei Boyev, diretor-geral da Vympel, maior fabricante de armas da Rússia, confirmou à mídia estatal que a empresa estava trabalhando na "modelagem" do sistema de alerta de ataque com mísseis para a China. "Não podemos falar em detalhes sobre isso por causa dos acordos de confidencialidade" - disse Boyev.

Aliança para estabilidade estratégica global

O discurso de Putin em Sochi em outubro foi extremamente significativo, quando elogiou o "nível sem precedentes de confiança mútua e cooperação em uma relação de aliada em parceria estratégica" entre Rússia e China. Putin observou que o sistema de alerta precoce contra ataque mísseis (Systema Preduprezdenya o Raketnom NapadeniiSPRN) "expandirá seriamente as capacidades de defesa da RPC".

Além disso, Putin denunciou como fúteis as tentativas dos EUA de conter a China mediante pressão econômica e por alianças Ásia-Pacífico ("Quad") com outros estados regionais. Comentando o discurso de Putin, o site de notícias pró-Kremlin Vzglad sinalizou que, embora tão cedo Moscou e Pequim não assinem um tratado de aliança político-militar formal, os dois países já são aliados de fato, coordenando de perto suas atividades em áreas diferentes, construindo juntos, uma nova ordem mundial que pode levar a influência dos EUA a ser despejada da Ásia.

É preciso compreender bem a importação estratégica da transferência de know-how do alerta precoce antimísseis, da Rússia para a China. A transferência já é uma aliança militar virtual. Coincidiu com vasto exercício militar russo, "Centro-2019" (Tsentr-2019), realizado de 16 a 21 de setembro na Rússia Ocidental, para o qual o Comando do Teatro Ocidental do Exército de Libertação Popular mandou número não revelado de tanques de combate, principalmente Tipo 96A, bombardeiros estratégicos H-6K, bombardeiros de combate JH-7A, jatos de combate J-11, aeronaves de transporte Il-76 e Y-9 e helicópteros de ataque Z-10.

Do lado russo, consta que o exercício envolveu 128.000 militares, mais de 20.000 peças de equipamento militar, incluindo 15 navios de guerra, 600 aeronaves, 250 tanques, cerca de 450 veículos de combate de infantaria e veículos blindados de transporte de pessoal e cerca de 200 sistemas de artilharia e Sistemas de Múltiplos Foguetes. O Ministério da Defesa da Rússia afirmou que do exercício do posto de comando estratégico visara a aferir os níveis de prontidão dos militares russos e melhorar a interoperabilidade.

Já em maio de 2016, Rússia e EUA deram início aos primeiros exercícios simulados de defesa antimísseis por computador. Anúncio feito em Moscou à época falava de "os primeiros exercícios conjuntos de defesa antimísseis com comando por computador da Rússia e da China", realizado no centro de pesquisa científica das Forças de Defesa Aeroespaciais Russas.

O Ministério da Defesa da Rússia explicou que o principal objetivo dos exercícios era levar a cabo


"manobras e operações conjuntas de unidades de defesa antiaérea e antimísseis de reação rápida de Rússia e China, em operação de defesa do território contra ataques ocasionais e provocativos por mísseis balísticos e mísseis de cruzeiro. Os lados russo e chinês usarão os resultados dos exercícios para discutir propostas de cooperação militar russo-chinesa no campo da defesa antimísseis."


Portanto, a transferência do SPRN estava longe de ser evento "isolado". Em termos simples, trata-se de a Rússia fornecer à China um know-how exclusivo seja para conter os ataques de mísseis dos EUA seja para desenvolver a "capacidade de segundo ataque" - crucial para manter o equilíbrio estratégico.

SPRN consiste de poderosos radares de longo alcance com capacidade para detectar mísseis balísticos e ogivas. Se a China comprar o sistema antimíssil S-500 mais poderoso e de longo alcance (que a Rússia está começando a produzir e implantar), além dos S-400, a Rússia estará em posição de ajudar a China a construir e influenciar a arquitetura do um futuro SPRN para o exército chinês, com capacidade para defesa antimísseis - o que será, para a China, fator estabilizador estratégico vis-à-vis os EUA, fornecendo informações confiáveis sobre potenciais lançamentos de mísseis americanos, cálculo dos pontos de impacto.

Simplificando: o sistema russo pode garantir para a liderança em Pequim alerta confiável de "dezenas de minutos" antes do impacto, no caso de ataque de míssil inimigo iminente, permitindo as decisões apropriadas para lançar mísseis nucleares da China numa salva de resposta.

Claramente, é um prelúdio para cooperação mais profunda Rússia-China na criação de um sistema integrado de defesa antimísseis. Importante ressaltar que isso significa que a Rússia está criando uma aliança militar com a China e aumentando as apostas caso os EUA decidam atacar. Vladimir Frolov, analista de relações exteriores de Moscou, disse à CBS News: "Se o sistema de alerta de ataque de mísseis chinês for integrado ao da Rússia, teremos maior alcance de detecção para os mísseis balísticos dos EUA lançados de submarinos no Pacífico Sul e Oceano Índico, onde temos problemas com detecção rápida."

Com certeza, a aliança Rússia-China é muito mais sutil do que parece à primeira vista. Em rara demonstração de calorosas relações pessoais, Xi disse em entrevista à mídia russa antes de sua viagem à Rússia em junho do ano passado: "Tive uma interação mais estreita com o presidente Putin do que com qualquer outro colega estrangeiro. Ele é meu melhor amigo do peito. Estimo muito nossa profunda amizade." Em cerimônia no Kremlin durante a visita, marcando o 70º aniversário das relações diplomáticas russo-chinesas, Xi disse a Putin que a China estava "pronta para andar de mãos dadas com vocês." Disse ele:


"As relações russo-chinesas, que entram agora em nova fase, são baseadas em sólida confiança mútua e apoio bilateral estratégico. Precisamos valorizar a preciosa confiança mútua. Precisamos aumentar o apoio bilateral em questões que são extremamente importantes para nós, para manter firmemente a direção estratégica das relações russo-chinesas, apesar de todos os tipos de interferência e sabotagem. As relações russo-chinesas, que estão entrando em uma nova era, servem como garantia confiável de paz e estabilidade no globo".


Conclusão

O documento da Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos, datado de dezembro de 2017, primeiro de seu tipo na presidência de Trump, caracterizou Rússia e China como potências "revisionistas". O conceito de revisionismo é flexível o suficiente para conter vários significados que tipicamente distinguem entre (i) estados que aceitam a distribuição de poder do status quo no sistema internacional e (ii) estados que procuram alterá-la em seu benefício.

Quintessencialmente, Rússia e China contestam um conjunto de práticas neoliberais que evoluíram na ordem internacional pós-Segunda Guerra Mundial e validam o uso seletivo de direitos humanos como valor universal que legitimaria a intervenção ocidental nos assuntos internos de Estados soberanos. Por outro lado, também aceitam e continuamente afirmam compromisso com uma série de preceitos fundamentais da ordem internacional - em particular, a primazia da soberania do Estado e da integridade territorial, a importância do direito internacional e a centralidade das Nações Unidas e o papel fundamental do Conselho de Segurança.

Decisivo, nesse quadro, é que Rússia e China atuaram como tomadores de decisão no campo das regras, não como desafiantes, em sua participação nas instituições financeiras globais. China é dos principais expoentes da globalização e do livre comércio. Em suma, a visão de Rússia e China sobre o funcionamento do sistema internacional acompanha em grande parte os termos de Vestfália.

Mas o documento de Estratégia de Segurança Nacional dos EUA de dezembro de 2017 diz:


"China e Rússia desafiam o poder, a influência e os interesses dos EUA, tentando erodir a segurança e a prosperidade americanas (...). China e Rússia querem moldar um mundo antitético em relação aos valores e interesses dos EUA. China pretende deslocar os EUA na região Indo-Pacífico (...). Rússia pretende enfraquecer a influência dos EUA no mundo e nos separar de nossos aliados e parceiros (...) Rússia está investindo em novas capacidades militares, incluindo sistemas nucleares que continuam sendo a ameaça existencial mais significativa contra os EUA."


É certo que a "aliança modelo" anterior entre Rússia e China já evoluiu hoje para ser "aliança real". A dinâmica interna das relações China-Rússia tornou-se cada vez mais forte e supera qualquer influência do ambiente internacional externo.

A parceria estratégica em expansão já trouxe benefícios abrangentes para ambos os países e tornou-se ativo estratégico comum. Ao mesmo tempo, fortalece respectivos status no cenário internacional e fornece suporte básico para a diplomacia de ambos os países.

O cerne da questão é que a aliança Rússia-China não está conforme as normas de um sistema de alianças clássico. Por falta de melhor modo para caracterizá-la, pode-se chamá-la de aliança "plug-in" [aprox., "liga-desliga"]. Na vida normal, pode executar uma variedade de "opções personalizáveis", ao mesmo tempo que fornece suporte para qualquer funcionalidade específica que possa surgir. Tem alta flexibilidade.

A aliança Rússia-China não tem intenção de confrontar militarmente os EUA. Mas, sim, existe para impedir ataque dos EUA a um dos países, ou a ambos. Simplificando, já está em andamento uma corrida de desgaste. E vai ser cada vez mais frustrante para os EUA, já que a Rússia posicionou-se recentemente para desafiar a chamada "estratégia Indo-Pacífico".

A crítica russa à "estratégia Indo-Pacífico" tornou-se estridente. Está acontecendo em um momento em que as tensões aumentam no Estreito de Taiwan, e o "Quad" planeja reunir-se pela primeira vez no Japão em outubro.

Em 17 de setembro, o Kremlin expressou alarme de que "as atividades militares de potências não regionais" (leia-se EUA e liados) estão causando tensões; e o Distrito Militar do Leste baseado em Khabarovsk, um dos quatro comandos estratégicos da Rússia, está sendo reforçado com uma unidade de comando de divisão de aviação mista e uma brigada de defesa aérea.

Pela própria natureza dessa disputa, os EUA não podem vencer. O Quad é inútil, já que três de seus quatro membros - Japão e Índia - não têm motivos para considerar a Rússia como potência revisionista ou para ser hostil contra ela. Alguns analistas americanos dizem que a resposta está na reversão dos EUA aos seus laços transatlânticos, que Trump negligenciou. E que Biden pode energizar o euro-atlântico na Europa, se quiser, da noite para o dia. Mas nada aí é tão simples quanto parece.

A questão é que, como escreveu o ex-ministro das Relações Exteriores da Alemanha, Joschka Fischer, a crescente "fenda" transatlântica nasceu de uma alienação - mistura de desacordos, falta de confiança e respeito mútuos e prioridades divergentes - que remonta ao período anterior, antes de Trump, e não vai acabar mesmo depois que um novo titular entrar na Casa Branca.

Além disso, muitos Estados europeus não compartilham da hostilidade dos EUA contra Rússia e China.

E aí está a paradoxal 'riqueza' da aliança sino-soviética. EUA não podem dominar essa aliança, a menos que derrotem China e Rússia juntas, simultaneamente. A aliança, além do mais, também está do lado certo da história. O tempo trabalha a favor dela, à medida que o declínio dos EUA em relação ao poder nacional abrangente e à influência global continua a se aprofundar, com o mundo já se habituando à vida no "século pós-EUA".

Claramente, as lideranças em Moscou e Pequim, desmamadas do materialismo dialético, fizeram a lição de casa, enquanto construíam nova aliança sintonizada com o século 21.

Foto:  By Kremlin.ru, CC BY 4.0, Link

 

 

 

 

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