Como Xinjiang “interfere” no acordo UE-China

Como Xinjiang "interfere" no acordo UE-China 

15/9/2020, Pepe Escobar, Asia Times (aqui traduzido com permissão do autor)

 

Um "Especial" Pequim-Bruxelas-Berlim: e que videoconferência!

 

De Pequim, tivemos o presidente Xi Jinping. De Berlim, a chanceler Angela Merkel. E de Bruxelas, o presidente do Conselho Europeu Charles Michel e a presidente da Comissão Europeia Ursula von der Leyen. Os chineses definiram a reunião como a primeira cúpula "desse tipo, na história".   

 

Na verdade, foi a segunda reunião de alto nível de líderes chineses e europeus, em dois meses. E aconteceu apenas poucos dias depois do tour de alto nível feito pelo ministro de Relações Exteriores Wang Yi, por França, Alemanha, Itália, Países Baixos e Noruega, e a visita, do poderoso "Yoda" do Conselho de Estado, Yang Jiechi, a Espanha e Grécia.

 

O Santo Graal, ao final desses encontros - presencial e virtual - é o tratado China-União Europeia, para investimentos. A Alemanha preside atualmente a União Europeia, por seis meses. Berlim queria que o tratado fosse assinado em reunião de cúpula em Leipzig, esse mês, com a presença dos 27 países da UE e de Pequim. Mas a Covid-19 tinha outros planos.

 

Assim a reunião converteu-se nessa mini videoconferência. Ainda se espera que o tratado seja assinado antes do fim de 2020. 

 

Como nota intrigante, a minicúpula aconteceu também um dia depois de o premier Li Keqiang participar de um Diálogo Virtual Especial com Líderes de Empresas, promovido pelo Fórum Econômico Mundial (FEM). Ainda não se sabe se Li discutirá com Klaus Schwab os meandros do Great Reset (em port. aqui) - muito menos, se a China subscreve o plano, ou não.

"Continuamos dedicados"

A mini videoconferência UE-China chama atenção pela divulgação muito discreta. A UE agora, oficialmente, considera a China ao mesmo tempo como parceira essencial e "rival estratégica". Bruxelas não abre mão de "cooperar", ao mesmo tempo em que defende seus notórios "valores" de direitos humanos.

 

Quanto ao tratado para investimentos, o Santo Graal do business, em negociação já há sete anos, Ursula von der Leyen disse que "ainda há muito por fazer".  

 

O que a UE deseja, essencialmente, é tratamento igualitário para suas empresas na China, similar ao modo como empresas chinesas são tratadas dentro da UE. Fontes diplomáticas confirmaram que são consideradas áreas chaves as telecomunicações, o mercado de automóveis - que deve ser totalmente aberto - e o fim da concorrência desleal dos chineses, no aço.  

 

Semana passada, o presidente da Siemens, Joe Kaeser, meteu um cavaco extra na engrenagem das negociações, ao dizer a Die Zeit que "condenamos categoricamente todas as formas de opressão, trabalhos forçados e ameaça a direitos humanos" - referindo-se a Hong Kong e a Xinjiang.

 

Provocou grande agitação. Pelo menos 10% dos negócios da Siemens são gerados na China, onde a empresa está presente desde 1872 e emprega mais de 35 mil pessoas. A Siemens foi obrigada a declarar publicamente que "continuamos dedicados" à China. 

 

A China é principal parceira comercial da Alemanha desde 2017 - à frente da França e dos EUA. Assim, não surpreende que as sirenes de alarme tenham disparado sem descanso. Em janeiro do ano passado, pela primeira vez, a Federação das Indústrias da Alemanha (al. BDI) definiu a China como "concorrente sistêmica", não como apenas "parceira". As preocupações giravam em torno de "distorções" de mercado e de barreiras, dentro da China, contra a concorrência dos alemães.     

 

A reunião de cúpula por mini videoconferência aconteceu ao mesmo tempo em que a guerra comercial lançada por Washington contra Pequim alcançava proporções de Guerra Fria 2.0. Diplomatas da UE, incomodados, pessoalmente e off the record, admitem que os europeus estão sitiados no meio do conflito, e que a única estratégica possível é tentar promover os próprios interesses econômicos, ao mesmo tempo em que insistem na mesma panaceia de direitos humanos. 

 

Daí a demanda oficial da UE nessa 2ª-feira - não noticiada na mídia chinesa: queremos autorização para enviar "observadores independentes" a Xinjiang.

Os tais jihadistas uigures

Assim sendo, voltamos, inevitavelmente à questão hiperincandescente dos "campos de concentração" em Xinjiang.

establishment atlanticista lançou campanha ferocíssima, sem limites, no esforço para modelar a narrativa segundo a qual Pequim estaria cometendo nada menos que genocídio cultural em Xinjiang.

Além da retórica do governo dos EUA, a campanha é feita, na maior parte, por institutos e instituições (think-tanks) norte-americanos 'influenciadores' (aqui, por exemplo) que distribuem material que a mídia-empresa ocidental encarrega-se de viralizar.

Um desses 'relatórios' cita "inúmeros relatos de primeira mão colhidos entre os uigures" que aparecem definidos como "empregados" para cumprir trabalhos forçados. Resultado disso, toda a cadeia global de suprimento, segundo o relatório, é "aparentemente manchada com trabalho forçado".

A palavra-chave é "aparentemente". Assim como a Rússia estaria "aparentemente" interferindo em eleições nos EUA, e vive, "aparentemente", a veracidade do que dizem as fontes citadas nesses relatórios - que são convenientemente financiados por "vários doadores com interesses comerciais na Ásia." Quem são esses doadores? A favor de que agenda operam? Quem lucrará com o tipo de "interesses comerciais na Ásia" promovidos por esses doadores?

Num plano pessoal, Xinjiang estava no alto das minhas prioridades de viagens esse ano - até que a Covid-19 parou tudo -, porque quero verificar eu mesmo todos os aspectos do que está realmente acontecendo no Extremo Oeste da China.

No ponto em que estamos, esses "influenciadores" norte-americanos repetidores-macaqueadores estão tendo plena liberdade para criar e impor a narrativa centrada no trabalho forçado de uigures, repetindo sempre que as próprias roupas que os europeus vestem poderiam - e aqui a palavra-chave é "poderiam" - ser produzidas por trabalhadores condenados a trabalhos forçados.

Que ninguém espere da rede atlanticista que alguém se dê o trabalho de mostrar dados de contexto e noticie a luta que a China faz em Xinjiang contra o terrorismo.

Nos idos anos da al-Qaeda, visitei e entrevistei jihadistas uigures trancafiados numa prisão em expansão construída pelos mujahideen do comandante Masoud, no vale Panjshir, no Afeganistão.[1] Todos passaram por pesada doutrinação de imãs que pregavam em madrassas financiadas pelos sauditas por toda Xinjiang.

Mais recentemente, jihadistas salafistas uigures estiveram muito ativos na Síria: pelo menos 5.000 deles, segundo a embaixada síria em Pequim.

Pequim sabe exatamente o que aconteceria se voltassem para Xinjiang, tanto quanto Moscou sabe o que aconteceria se jihadistas chechenos voltassem para o Cáucaso.

Assim sendo, não surpreende que a China tenha de agir. Essa ação inclui fechar madrassas, deter imãs e prender - e "reeducar" - possíveis jihadistas e respectivas famílias.

Que ninguém espere que o ocidente ofereça contexto e contraponto sobre o Partido Islâmico do Turquistão, o PIT [ing. Turkistan Islamic Party (TIP)], que declarou um Emirado Islâmico ao estilo do ISIS-Daech em novembro de 2019 em Idlib, noroeste da Síria. Esse PIT foi fundado em Xinjiang há 12 anos e é ativo na Síria desde 2011 - exatamente o ano da operação terrorista cuja autoria reivindicaram, em Kashgar, que fez 23 mortos.

É muito patético que o ocidente, que assassinou multidões de muçulmanos e arrancou-as das próprias terras - direta ou indiretamente - com a 'guerra ao terror', agora, depois do que fez, vire assim oh, tão, tão, preocupado com o sofrimento dos uigures.

Muito mais esclarecedor é relembrar a história. Como no outono de 821, quando a princesa Taihe, irmã de um imperador da dinastia Tang, montou num camelo bactriano e, com seu séquito de servas montadas em preciosos cavalos de Fergana, viajou, do palácio imperial em Chang'an, até a terra dos uigures.

A princesa Taihe viajava como presente vivo - para se casar com o kaghan uigure, e assim consagrarem a amizade entre seus dois povos. Taihe partiu do oriente, mas seu vestido e os ornamentos eram ocidentais, das estepes e desertos da Ásia Central, onde viveria a nova vida.

E, já que falamos nisso, uigures e a dinastia Tang eram aliados.*******

 


[1] Aproveitando a deixa: imperdível, como informação e pelo valor histórico, o artigo-entrevista de Pepe Escobar, publicado em Asia Times, dia 12/9/2001, "Masoud: From warrior to statesman" (ing.) em Internet Archive, de Asia Times [NTs]. 

 

Foto: By Eric Feng - https://www.flickr.com/photos/bluehatfyx/7445170614/, CC BY-SA 2.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=85471721

N3 soc

 

 

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