Teoria da política externa dos EUA – I

por Leo Huberman e Paul M. Sweezy [*]

A política externa dos Estados Unidos tem gerado derrotas há bem mais de uma década mas nunca a um ritmo tão rápido e furioso como durante os últimos meses [NR: escrito em 1960].


Qual é a reacção da classe dominante americana a este fracasso constante e generalizado da política externa? Poder-se-ia esperar uma acumulação de críticas e um apoio crescente a política ou políticas alternativas. Mas olha-se em vão por qualquer coisa desta espécie nos Estados Unidos de hoje. Estamos em meio a uma campanha eleitoral, a qual dá a todos os líderes políticos de ambos os partidos muitas oportunidades para expor ao público os seus pontos de vista. Tanto quanto sabemos, nenhum deles exprimiu qualquer crítica dos fundamentos da política americana ou propôs que fosse mudada em qualquer aspecto importante.


Como explicar isto? Como explicar o facto de que a resposta virtualmente unânime da classe dominante americana é uma evasão a qualquer análise séria das causas e uma adesão teimosa às mesmas políticas que no passado conduziram constantemente ao fracasso?


Sem dar respostas completas a estas questões, [1] podemos no entanto expor algumas considerações relevantes.


Para começar, é crucialmente importante reconhecer que a política externa é modelada e dominada por interesses de classe internos. Isto é verdade para os Estados Unidos de hoje assim como o foi para o Império Romano ou a França de Luís XIV. Em alguns países, em certos momentos, a estrutura de classe e o padrão de interesses reflectido na política externa apresenta um puzzle mais ou menos complicado. Isto foi verdadeiro, por exemplo, nos Estados Unidos dos meados do século XIX quando o país incluía duas formas contraditórias de sociedade a lutarem pelo controle do governo nacional, cada uma com a sua própria estrutura de classe e suas necessidades particulares na área da política externa. Também foi verdadeiro, para dar outro exemplo, na Alemanha Imperial no meio século que antecedeu a I Guerra Mundial, aquela conjugação única de feudalismo e capitalismo que era levada por uma rigorosa lógica interna a antagonizar tanto a Rússia a Leste como a Inglaterra a Oeste e portanto a garantir a sua própria derrocada final.


"WELFARE" OU "WARFARE"
Os Estados Unidos de hoje, em comparação, são um caso muito mais simples. O país é dominado totalmente pelo capitalismo monopolista, pois os remanescentes de formas sociais anteriores (particularmente a classe agrícola independente) são em grande medida destituídos de poder. O estado normal de uma sociedade avançada no capitalismo monopolista – no sentido da norma rumo à qual ela tende sempre – é a depressão crónica. Os Estados Unidos atingiram esta etapa do desenvolvimento em algum momento entre 1910 e 1930, com a norma tornando-se realidade na década de 1930.

A depressão crónica não é uma condição viável, sendo contra os interesses tanto dos capitalistas como dos trabalhadores. Ela pode ser ultrapassada (mas não eliminada como tendência) só e exclusivamente através de um sector público amplo e em crescimento firme. Teoricamente, este sector púbico pode assumir tanto uma forma "welfare" (estado previdência) ou uma forma "warfare" (estado guerreiro). Mas um amplo e crescente programa de previdência contraria os interesses de uma classe dirigente privilegiada, uma vez que necessariamente implica um programa cumulativo de reforma social, a erosão de direitos e privilégios especiais, etc.

Um vasto e crescente programa de guerra, por outro lado, não só "resolve" o problema económico do capitalismo monopolista como também ajuda a preservar intacta a estrutura de classe existente com o seu sistema graduado de classificação, status e privilégio. Além disso, e isto é da máxima importância, o poder militar que cria é essencial para a manutenção do império económico à escala mundial, o qual proporciona ao capitalismo monopolista as indispensáveis (e altamente lucrativas) matérias-primas, mercados e saídas de investimentos. A classe dominante portanto tem todo o interesse em fazer com que o necessário sector público seja um sector guerreiro (warfare). A classe trabalhadora, embora naturalmente os seus interesses objectivos fossem melhor servidos por um sector previdência (welfare), prefere o sector warfare ao desemprego em massa e – a julgar pela experiência até à data – pode ser persuadida em massa de forma relativamente fácil a aceitar isto como um dever patriótico.


Portanto vemos que no caso da América de meados do século XX a investida dos interesses de classe internos imperativamente requer a guerra fria e a corrida às armas, e torna-se tarefa primária da política externa proporcionar a justificação necessária.


Observámos anteriormente que a resposta quase unânime da classe dominante a esta deterioração da posição mundial da América tem sido não o questionar da política que levou a isto mas, ao invés, insistir em que é necessário mais empenho em aplicar aquela política. A análise precedente permite-nos explicar este paradoxo aparente. Até agora, o declínio dos Estados Unidos como potência mundial tem tido apenas repercussões menores sobre a economia interna e portanto deixou imperturbado o padrão de interesses de classe que determina a política externa. Enquanto isto permanecer verdadeiro não há razão para esperar nem uma mudança na política externa nem uma interrupção no processo de declínio.


Neste ponto devemos desviar por um momento do ponto principal para responder a uma possível objecção. Pode ser afirmado que a nossa teoria deixa de fora um factor importante, que ao determinar suas acções as pessoas podem e levam em conta não só a situação imediata que as confronta como também tendências e prováveis situações futuras. Não será um mistério a razão por que a classe dominante americana não só nada faz para conter a deterioração da posição mundial dos Estados Unidos como realmente intensifica as políticas que são responsáveis pela deterioração? A resposta, parece-nos, depende da característica mais fundamental de uma sociedade burguesa (ou de qualquer outra sociedade baseada na propriedade privada), nomeadamente que a preocupação predominante de cada indivíduo é e deve ser cuidar dos seus próprios interesses o melhor que puder. O que acontece à sociedade toda é a resultante de um número infinito de acções individuais em causa própria.

A mentalidade dos membros de tal sociedade (além das classes ou grupos revolucionários, se houver) é completamente dominada por esta disposição. Cada um identifica o interesse público com o seu próprio interesse privado e portanto não tem inibições ou sentimentos de culpa acerca da promoção dos seus próprios interesses privados mesmo se chegar a ocupar uma posição governamental arcando com o dever de servir toda a sociedade. [2] Não existe nada em tudo isto que impeça o indivíduo de antecipar e planear seus negócios privados de forma a levar em conta o antecipado bem como situações reais, mesmo que isto signifique algum sacrifício no presente. Mas isto não significa que indivíduos não possam antecipar-se e aproveitar-se ou procurar impor sobre outros os sacrifícios do presente em troca de um antecipado benefício futuro para o grupo. Esta é a razão porque numa sociedade capitalista a previsão colectiva e o planeamento antecipado são possíveis só na medida em que envolvam sacrifícios insignificantes no presente e benefícios finais para todos ou quase todos os indivíduos que contam (isto é, possuidores de propriedade). Se os sacrifícios no presente forem substanciais e os benefícios no futuro forem colectivos, nenhuma acção é possível. A mentalidade burguesa, por outras palavras, é tão condicionada que nunca pode transcender o horizonte dos interesses individuais. Quando uma dada situação histórica parece apelar a um tal esforço, a resposta é um recurso a racionalizações as quais, se bem que distorcendo a realidade, proporcionam a justificação necessária para atitudes e acções que possam passar no teste do interesse privado.


Esta análise explica uma das coisas mais óbvias e ainda assim desconcertantes acerca da sociedade capitalista, a qual nunca pode actuar antecipadamente para impedir uma crise, não importa quão previsível possa ser, mas deve sempre esperar e actuar depois de a crise ter ocorrido. Centenas de ilustrações desta proposição poderiam ser mencionadas, mas basta uma. Sociólogos urbanos e planeadores de cidades são quase unânimes em dizer-nos que os nossos grandes centros metropolitanos caminham para a paralisia e que as políticas de transportes dos dias actuais estão a acelerar o dia do desastre. E ainda assim nenhumas contra-medidas efectivas são tomadas e é seguro prever que nenhuma o será até que interesses privados decisivos sejam imediata e esmagadoramente ameaçados. Sugerimos que precisamente o mesmo princípio se aplica no campo dos assuntos internacionais. Uma política externa que repousa sobre interesses privados está a precipitar o declínio e a queda dos Estados Unidos como potência mundial. Nada será feito quanto a isto, contudo, a menos e até que aqueles mesmos interesses privados comecem a ser prejudicados ao invés de beneficiados.


Quão logo e por que meios podemos esperar que a deterioração da posição mundial da América comece a ter efeitos adversos sérios sobre a economia americana? E quais as formas que estes efeitos adversos provavelmente tomarão?

Notas
1- Elas podem ser uma preocupação primária de cientistas sociais profissionais, mas não são. A razão é que cientistas sociais neste país hoje são dependentes de universidades e fundações as quais por sua vez estão sob o controle directo e estreito de representantes autênticos dos interesses e da ideologia da classe dominante. Os cientistas sociais são tratados generosamente e permite-se-lhes que façam o que quiserem, mas com uma condição, nomeadamente de afastarem-se de qualquer tentativa de uma análise crítica da sociedade americana. Há excepções, naturalmente, mas elas são todas daquelas que confirmam a regra.


2- Recordar a formulação clássica de Charlie Wilson: "O que é bom para a General Motors é bom para os Estados Unidos".


[*] Paul M. Sweezy (1910-2004): economista marxista e fundador da Monthly Review . Leo Huberman (1903-1968): marxista americano, co-fundador e co-editor da MR. O texto acima é um excerto da "Revisão do mês" publicada no número de Setembro de 1960 da MR.
O original encontra-se em http://mrzine.monthlyreview.org/2010/hs120710.html

Este artigo encontra-se em http: //resistir.info/ .

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