Conflitos

Observamos, semana passada, [1] que, repentinamente, todas as questões chaves da  política externa do presidente Obama para o Oriente Médio azedaram, - às vésperas de rápidas visitas do presidente e de seu secretário de Estado à região. É como se a truculência contra os EUA se tivesse tornado contagiosa. E é possível que, em certo sentido, tenha virado, sim, contagiosa: para muitos líderes na região - vista de pontos de vista muito diferentes - a disparidade (o racha num status quo fortemente implantado, e forças nihilistas desencadeadas por aquele racha) tornou-se grande demais para deixar passar. Disparidade entre (a) as realidades no Oriente Médio que o oriente experiencia e (b) a realidade virtual de um entendimento ocidental sobre os mesmos eventos, mas filtrado por uma ótica do Iluminismo.

O ponto aqui é que tudo isso continua - embora cada realidade particular e os 'males' a ela associados sejam muito diferentes, conforme o líder do Oriente Médio que se considere. Dito de forma mais simples: os estados ocidentais estão sendo vistos como tendo pouco a oferecer, quando todo um 'sistema' (o sistema árabe) está visivelmente ruindo e perdendo pedaços da própria substância - e quando o medo predomina.

Assim sendo, ao final de intensa ação diplomática pelos EUA, o que mudou? A resposta é: pouco.

O presidente Obama foi jantar com o rei Abdullah: foi como casal que não se entende, tentando salvar um casamento fracassado. Mas, apesar de todas as belas palavras e as reclamações de rotina, com o casal forçado a controlar a irritação, o resultado é claro: não haverá divórcio (por enquanto), só separação - a visita de Obama serviu "como remendo, não como cura" para o mal-estar entre os dois países". [2] Manterão comportamento decoroso em público, mas, 'no privado', cada um fará o que bem entender - são livres para escolher outros 'namorados', se conseguirem.

Na esfera israelense-palestina, é claro que nem israelenses nem palestinos veem ou desejam a solução atualmente em discussão ("dois estados"), tanto quanto o mediador, John Kerry, quer que eles a vejam e desejem. O mediador ser mais empenhado e mais entusiasmado por sua própria solução que qualquer dos protagonistas de um conflito, jamais, em toda a história, foi bom sinal. O discurso convencional indica que o 'processo' estaria no fim, mas o fim absolutamente não parece provável.

A fórmula dos "dois estados", que já tem 20 anos, foi um objetivo (no sentido de sugerir a possibilidade de um segundo estado viável e independente) por algum tempo, mas os dois atuais líderes, por razões de autointeresse, precisam, mesmo, mais de 'processo', que de solução. O que parece realmente mais provável é que um 'processo' no qual a posição de negociação dos palestinos vai sendo diariamente fatiada, como salame, em troca de pequenas recompensas (por exemplo, a libertação de prisioneiros), acabe levando à derrubada daquela liderança. Os palestinos jamais estiveram tão fracos, com autoestima mais baixa, tão carentes de cartas viáveis para jogar; e é difícil ver como algum 'processo-em-nome-do-processo' possa prosseguir indefinidamente. Haverá um 'golpe palaciano' (como aconteceu a Yasir Arafat).

O mais frustrante é que provavelmente o 'agente' a ser financiado pelo exterior para fazer o serviço será Mohammad Dahlan. [3]

E as negociações sobre o Irã vão-se tornando cada dia mais semelhantes às negociações palestinas: 'processo-em-nome-do-processo' - como os conservadores da oposição no Irã previam, desde o início, que aconteceria. Declarações de altos funcionários do governo dos EUA sugerem que a tal 'solução' não será tão ampla como inicialmente sugerida, e que não se verá o fim de todas as sanções contra o governo iraniano - algumas (ou muitas) sanções permanecerão: "pela primeira vez Wendy Sherman sugeriu [4] a possibilidade de resultado bem distante de completo e claro, para o processo". Parece que o governo dos EUA (como no caso das conversações palestinas) dá-se por satisfeito com fazer um gesto simbólico - esboçar apenas algum 'mapa do caminho' a ser passado adiante para o próximo governo -, em vez de enfrentar a substância da questão, o que obrigaria a superar intensa oposição política dentro dos EUA, e seria provavelmente motivo de luta política dentro do governo Obama.

A Síria também parece, na sequência do tête-a-tête Obama-Abdullah, mais um caso de quanto mais a coisa muda, mais a coisa permanece como antes...
David Ignatius [5] 'noticia', em linguagem notavelmente vaga, que o presidente Obama parece disposto a ampliar a ajuda clandestina à oposição síria, mas só para pressionar o presidente Assad a negociar mais seriamente. Políticos em Washington sabem, é claro, que mandar mais alguns sacos de armas para 'moderados' que ninguém vê é, sim, gesto oco.

No Oriente Médio (e no Afeganistão) pouco mudou por efeito de uma semana de diplomacia; e na Ucrânia, parece que os EUA estão sendo gradualmente levados na direção de desescalar; e de aceitar uma modalidade de sistema federal frouxo, não alinhado, que garantirá autonomia substancial para, parece, três distintas regiões ucranianas.

Contudo, é isso - a Ucrânia e as relações entre EUA e Rússia - que mantém o maior potencial para levar mudanças ao Oriente Médio. Embora o presidente Obama esteja claramente tentando em surdina desescalar com o presidente Putin, o esforço tem seus oponentes. Além dos bem conhecidos guerreiros da guerra fria dentro do próprio governo Obama, o experiente correspondente da Defesa britânica, Richard Norton Taylor, escreveu que "as ações de Putin na Crimeia acertaram um 'tiro no braço da OTAN', disse um ex-secretário da Defesa da Grã-Bretanha, refletindo a preocupação disseminada sobre o futuro da aliança militar ocidental". [6]

"A preocupação era que, com as operações patrocinadas de combate da OTAN no Afeganistão aproximando-se do fim esse ano" - continua Norton Taylor - "a aliança venha a ficar sem ter o que fazer, e que os membros europeus ocidentais façam ainda mais cortes em seus orçamentos de defesa. A esperança no quartel-general da OTAN é que a Crimeia e a Ucrânia chacoalhem os governos membros, tirando-os do que os funcionários da OTAN veem como atitude de complacência. Depois de muita angústia sobre a função da OTAN depois do Afeganistão, a crise da Crimeia aparece como chance de dar novo objetivo à aliança" - disse o Professor Malcolm Chalmers do Royal United Services Institute, think-tank com sede em Londres. E acrescentou: "Se Putin atacar território de algum membro da OTAN, como a Polônia ou a Latvia, outros estados da OTAN, inclusive a Grã-Bretanha, ficarão obrigados a responder militarmente."

Claro que não há nenhuma possibilidade realista de a Rússia empreender esse tipo de ação, mas a Ucrânia continua a ser estado altamente instável e volátil. Se as coisas piorarem na Ucrânia, se irromper conflito civil naquele país, pode acontecer de a Rússia ficar sem alternativa, exceto intervir para proteger os russos étnicos. Nesse caso, a OTAN e o lobby da Defesa com certeza se servirão desse pretexto para arrancar até o último dólar possível para aumentar os gastos de defesa e expandir a 'missão' da OTAN, para fazer frente a uma alguma 'ameaça russa' ressurgente.

A estratégia de desescalada de Obama, portanto, continua altamente exposta à ação dos grupos de interesse da Defesa, a pressões que a OTAN fará, à nostalgia da Guerra Fria - e de eventos internos que podem brotar de dentro do sistema norte-americano, como se vê no seguinte incidente, dessa semana: o banco J. P. Morgan bloqueou uma transferência oficial de dinheiro russo, sob o pretexto de que a transferência desrespeitaria as sanções anti-Rússia impostas pelos EUA."

Diferente da reação que se viu no caso de sanções anteriores que o ocidente impôs à Rússia, e que viraram objeto de piada no establishment russo, a Rússia, dessa vez, ficou furiosa: segundo a rede Bloomberg, [7] o ministro de Relações Exteriores da Rússia classificou a ação do banco JP Morgan como "ilegal e absurda". Imediatamente depois a transferência foi 'desbloqueada' e completada normalmente. Mas, se não tivesse acontecido assim, a ação do Banco JPM poderia desencadear uma guerra 'de moedas' (a Rússia poderia separar-se do dólar para seus pagamentos de energia), o que provavelmente geraria resposta-retaliação pelos EUA, que tomaria por alvo as vendas de gás e petróleo russos (como alguns já pregam, no Congresso dos EUA).

Parece não haver dúvidas de que o presidente Obama não dá sinais de desistir da via que escolheu, mas há muitos e tais 'fatores automáticos de desestabilização' (no que tenham a ver com a Rússia e com o presidente Putin) dentro do sistema dos EUA! A lista é longa: NED (National Endowment for Democracy), USAID, Departamento de Estado, a CIA, os grupos de lobby da Rua 'K' e [8] as Forças Especiais, os quais, todos esses, usam hoje elementos de operações clandestinas que, antes, eram de uso exclusivo pela CIA, para desestabilizar os inimigos dos EUA; evento como o do Banco JP Morgan, que se dá o direito de aplicar sanções suas contra o estado russo, numa transação financeira oficial, sempre se podem repetir. Num caso desse tipo, o Oriente Médio ver-se-á na linha de frente, exposto a todos os ataques, de duas guerras: uma 'guerra' contra o dólar e uma guerra contra os oleogasodutos, as quais duas guerras terão implicações profundas.

Será que os líderes ocidentais realmente creem na própria retórica, quando dizem que Putin tem ambições expansionistas e quer reconstruir o Império Soviético? Será que Hillary Clinton, ex-secretária de Estado dos EUA acredita no que disse, que as ações da Rússia na Crimeia seriam "iguais ao que Hitler fez nos anos 1930s"? 

Frank Furedi, ao responder a uma pergunta, feita por um jornalista russo, interessado em saber por que o ocidente recusa-se a admitir ou reconhecer o seu próprio papel na construção da crise na Ucrânia, disse que chegou "à conclusão nada confortável de que os motivos por trás da demonização da Rússia são decorrência de convicções sinceras." [9]

"Claro que há muita propaganda, distorções propositais e muita fantasia nessa campanha" - prossegue Furedi - mas a 'ideia geral' que a campanha manifesta foi tão profundamente internalizada por tantos no ocidente, que, agora, já constitui a realidade deles, uma espécie de para-realidade."

De fato, Obama deu voz a essa narrativa de uma ascensão histórica linear convergindo na direção de valores partilhados do Iluminismo, no discurso de Bruxelas. (Naquele momento, argumentamos que Obama fora obrigado a tomar essa via, para, no mínimo, conseguir demarcar alguma diferença em relação à narrativa dos russos, que denunciavam a cumplicidade da União Europeia na desestabilização da Ucrânia).

Mas Furedi adverte: a postura estreita, de moralismo raso, que essa narrativa de Obama promove, representa real perigo de escalada contra a Rússia e, portanto, de escalada contra a estabilidade global. *****


[1] Conflicts fórum, 7/4/2014, "Comentário semanal de 21 a 28/3/2014", traduzido em http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2014/04/conflicts-forum-comentario-semanal-de.html 

[2] http://theswoop.net/sys/index.php

[3] http://electronicintifada.net/blogs/ali-abunimah/al-jazeera-once-again-removes-joseph-massad-article-palestine

[4] http://www.ipsnews.net/2014/03/u-s-rejected-israeli-demand-iran-nuclear-confession/

[5] http://goo.gl/flfvpF

[6] http://www.theguardian.com/world/2014/mar/28/vladimir-putin-crimea-changed-world

[7] http://www.bloomberg.com/news/2014-04-01/jpmorgan-assailed-by-russian-ministry-for-blocking-transaction.html

[8] http://en.wikipedia.org/wiki/K_Street_(Washington,_D.C.)

[9] Traduzido em http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2014/03/diplomacia-infantiloide-e.html

Conflicts Forum
13/4/2014, Comentários (semana 28/3-4/4/2014)
http://www.conflictsforum.org/2014/conflicts-forums-weekly-comment-28-march-%E2%80%93-4-april-2014/

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