Os novos filhos da Europa

Há um ano, os filhos de imigrantes africanos de nacionalidade francesa literalmente incendiaram a França em protesto contra a odiosa discriminação feita por seus compatriotas de pele branca, talvez mais “legítimos” filhos da pátria do que eles, e certamente esquecidos do lema “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”. Naqueles distúrbios dois afrodescendentes morreram eletrocutados enquanto se escondiam da polícia.

Novamente centenas de veículos queimados, embora quase nada, perto dos inacreditáveis cerca de nove mil incendiados no ano passado. Tão eloqüente quanto esses números é o protesto dos jovens franceses filhos de africanos, que, desde então, têm depredado uma média de 50 automóveis por semana.

Todavia, ninguém parece ter refletido acerca do ocorrido, lembrado de que toda discriminação gera rancor, e mais, que a Europa tem uma dívida com a África. Uma dívida secular, de sangue, opressão, espoliação.

Hoje, o povo do continente que foi o berço da humanidade, a origem de todos os que se acham muito diferentes, tenta cobrar, na forma de melhores oportunidades, aquilo que lhes foi subtraído ao longo dos anos, embora as mortes e o sofrimento de seus antepassados não tenham preço.

A França, tão altiva, foi sôfrega no saque africano; entre suas ex-colônias contam-se Benin, Burkina-Fasso, Camarões, Chade, Senegal e outros. O país da igualdade, juntamente com Espanha, Portugal, Holanda e Inglaterra fizeram cerca de onze milhões de escravos, muitos deles levados para a América do Norte. Eis aí um comportamento selvagem, o dos europeus. Que também levaram da África minerais, pedras preciosas e outras matérias primas para suas indústrias, gerando riquezas e prosperidade na velha Europa.

A história da exploração da África é extensa, rica em detalhes tristes, abomináveis, mas cabe mostrar aqui, pelo menos, uma das mais deletérias ações perpetradas pelos saqueadores de além-mar: As nações estrangeiras se reuniram, em 1884, na Conferência de Berlim, com 13 países europeus, além da Turquia e EUA. Fizeram, então, a divisão arbitrária da África, de acordo com seus interesses, sem respeitar grupos étnicos diferentes. Uniram povos diversos e separaram iguais, causando, com isso, guerras tribais infindáveis. Não lhes bastou o saque, foi preciso ir mais longe na torpeza e desprezo pelos semelhantes, riscando o mapa da África com linhas retas a seu bel-prazer.

Foi nesta conferência que o Rei Leopoldo II da Bélgica recebeu o Congo como sua possessão pessoal. E toda a África, com exceção da Etiópia – apesar da ocupação italiana de 1936-41 -, foi possesão ou colonia estrangeira; nem a ilha de Madagascar escapou. A Libéria foi fundada pelos EUA, através da Sociedade Americana de Colonização, outra ação que desencadeou sérias guerras tribais.

Não se pode esquecer também as ações da União Soviética e Cuba, que apoiavam o governo angolano; dos EUA, África do Sul e Zaire, que financiaram a UNITA, movimento guerrilheiro de oposição ao regime de Luanda.

Enfim, é uma longa história, recordada aqui para ressaltar o tamanho da dívida que as maiores potências têm com aquele povo, até hoje barbarizado pelos Senhores da Guerra graças à indústria bélica daquelas mesmas nações que, sempre em busca de mais e mais lucros, não se cansam de semear a dor.

Continuam protegendo seus incompetentes agricultores com odiosos subsídios, fazendo baixar artificialmente os preços dos produtos agrícolas, levando à perpetuação da pobreza de tantas nações.

Pois vá lá que se tolere que as grandes nações não queiram receber mais refugiados africanos, vá lá que não queiram também levar tecnologia, saúde e ducação ao continente de onde tiraram tantas riquezas e a cujo povo fizeram tanto mal, mas que respeitem, pelo menos, os afrodescendentes que se tornaram europeus. Mesmo sabendo que nem assim se redimirão de suas abjeções, se escondem em sua pequenez e alheamento.

A tragédia africana é surreal, tanto quanto a indiferença do restante do mundo, que se lembra sempre do Holocausto, de Hiroshima e Nagasaki. É algo que depõe contra a humanidade.

Que uma nação não renegue seus filhos, nem os discrimine pela cor de sua pele, é o mínimo que se pode exigir. Afinal, eles são os filhos mais novos da Europa.

Luiz Leitão

[email protected] São Paulo, Brasil.

Subscrever Pravda Telegram channel, Facebook, Twitter

Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
X