Carta aberta: A saturação do Dólar

Brasília (DF), 24 de setembro de 2007

Exmo. Sr. Senador Aloísio Mercadante,

Fustel de Coulanges em sua magistral obra “A Cidade Antiga” (1830/1889) registra que, já nos primórdios de nossa civilização, os clientes – palavra que na época significava criados, subordinados ou escravos – mantinham o desejo velado e quase secreto de continuarem em sua condição de pertencimento a alguém, ou seja, de subjugados.

Seus patrícios – palavra também com sentido diverso do de hoje, que significava patrão, dono ou senhor – por sua vez, em troca da mão-de-obra, lhes garantiam alimentação, segurança e até mesmo assistência jurídica se necessário. Em tempos difíceis, terem um dono já era alguma coisa.

John Perkins, em sua imperdível obra “Confissões de um Assassino Econômico” (2004), explicita a crueldade dos métodos americanos para escravizar economicamente a maioria dos países do mundo.

Demonstra também o autor que mesmo na era da informação instantânea, no aspecto político/econômico, em nada evoluímos desde Coulanges. Pelo contrário, regredimos muito.

Tal involução se aflora na medida em que “aceitamos” e mesmo “queremos” essa escravidão bem nos moldes descritos em antanho.

O impossível acontece

Existem coisas, muitas coisas, que são inexplicáveis.

Quando o presidente Lula diz que não viu, não ouviu e não sabe, temos que compreendê-lo. São falhas diárias e traiçoeiras que acometem a todos nós, sem exceção. Senão, vejamos.

Senador, como explicar ao cidadão comum que o mundo já se saturou de dólares? Como informa-lo que desde 1944 existe um fluxo de dólares saindo dos Estados Unidos, e que, em contrapartida, um fluxo de igual valor em bens e serviços entrando naquele país? E se falarmos da senhoriagem – uma cédula de US$ 100.00 custa ao erário americano mais ou menos sete centavos – e que o Dr. Henrique Meireles compra o equivalente a US$ 1,5 bilhões ao dia, pagando o valor de face?

Alguém ainda se lembra do Bancor [1] ? Sabem de que se trata? Como é possível o desaparecimento de algo que seria quase perfeito?

Todos os dados todas as pessoas conhecem. O que é inexplicável é a incompreensão do todo e o porquê da aceitação do que nos é empurrado goela abaixo. Como é possível servir a dois senhores? Ou a moeda é americana ou é mundial. Observe que o euro é emitido por cada país que dele faz uso. Assim, todos os usuários de dólares, obrigatoriamente, teriam que ter o direito de emiti-lo.

Consideremos que:

- todos os dólares americanos são emitidos, (perdão, emissão monetária é outra coisa), são impressos pelos Estados Unidos;

- 80% dos dólares existentes no mundo estão fora daquele país;

- que o mundo já se saturou de dólares;

- que tal montante de dólares é dívida americana;

- que jamais existiu e que jamais existirá o propósito de saldar tal dívida por parte dos americanos; e

- que economias “inexpressivas”, tais como Rússia, OPEP, Índia e China, dentre outras, estão diversificando seu tesouro (leia-se “desovando” dólares).

Estes são dados (ou fatos) que por si só condenam o dólar ao seu melancólico fim.

Mas, quem vê isso? Catalepsia geral e irrestrita.

São coisas inexplicáveis.

O presidente Lula declarou recentemente: “... A crise americana não nos causa preocupação, uma vez que o Brasil tem uma reserva de US$ 160 bilhões...”. (hoje já excedendo a US$ 170 bi). Sr. Senador, alguém teria que informar à Sua Excelência que dólares não são nada mais nada menos do que títulos da dívida americana. Se a crise é americana também o é do dólar.

Senador, observando as considerações acima, não é difícil concluir que a economia americana é muito mais vulnerável do que um castelo de cartas. Entretanto, infelizmente, seus colegas economistas, depois de seis anos de estudos, conseguem abstrair o fator “emissão monetária”.

Mais um fenômeno curioso

Nenhum economista ou jornalista especializado em economia fala sobre o excesso de dólares no mundo. Não há mal nisso, pode ser mera ignorância. O inacreditável é como os especialistas (não) explicam como esses dólares vieram parar fora de seu país: dão em árvore, abiogênese (geração espontânea), ou ainda saíram de minas? É impressionante como todos desviam da palavra “emissão”, “impressão” (que seria o mais correto) e, principalmente, “troca”. Abstraem os valores que entram naquele país em troca de papéis pintados. Transparece que seja natural a troca de bens e serviços por inúteis notas.

Seria a síndrome do presidente (não vê e não sabe) em surto endêmico à classe jornalística?

Ginástica

É muito interessante ouvir os especialistas econômicos da imprensa, cujas explicações são contorcionismos para explicar a queda constante e inexorável do dólar. Ali tudo é válido: desde a gripe que atacou a sogra do sobrinho do genro do tio da empregada do motorista da sobrinha do sogro do secretário do tesouro americano, até a menstruação da lesma fétida do lago Chad da África; excesso de dólares no mundo, nem imaginam mencionar. Senador, ouça os noticiários, atente para o detalhe e se divertirá muito. Poucos comediantes são tão engraçados (não fossem tão trágicos, sem o saber, evidentemente).

Estamos praticando o crime de lesa-pátria comprando aquela divisa.

O Sr. Nestor [2] , economista do Bacen, questionado sobre tal deletéria aquisição e se não seria melhor entesourar ouro, não pestanejou: “... ouro? Nem pensar! Pode se desvalorizar!...”

Em Fort Knox , Estados Unidos, existe um dos muitos depósitos americanos com uma quantidade absurda de ouro. Claro, muitos o oferecem em troca de papel! E nem cara de idiota o Tio Sam tem!

Outras declarações interessantes são as do ex-ministro Delfim Neto [3] . Há tempos, declarou que economistas não conseguiriam nem explicar à própria mãe o preço da batata. Até aí, nada de interessante. Por outro lado, recentemente, em entrevista a uma revista semanal de grande circulação, indagado sobre os prejuízos decorrentes da absurda compra de dólares feita pelo Bacen, disparou: “... tem-se que comprar não é US$ 1,5 bi ao dia, tem-se que comprar é muito mais!...”

Sapientíssima e longilínea figura, sais de lítio só lhe farão bem!

Problema de logística

É fácil prever o fim desta negociata: ou acabam os bens nacionais ou o acaba o papel americano para a impressão de cédulas verdes.

Problema de lógica

Vários analistas(!) defendem a tese de que a falência americana será o fim do mundo, pois desaparecerá o maior mercado consumidor da terra.

Brilhantíssima conclusão, mas ela não resiste à menor análise. Como não estamos à beira do precipício, podemos dar um passo adiante. Vejamos.

No “day after” à derrocada do império, o restante dos escravos (quase todo o mundo) que fazem a manutenção dos americanos fornecendo-lhes bens e serviços em troca de papel pintado, se livrarão de tão cruel sanguessuga. O produto de seu trabalho se reverterá para seu próprio benefício. Assim, passarão a consumir, como qualquer alforriado. Assumirão as importações que eram assimiladas por seu algoz. Todos os exportadores continuarão exportando todos os seus excedentes, mudando apenas o destinatário. E agora, que falta faria o maior importador? Qual a diferença para os exportadores? Certa, somente uma: pagarão um preço mais justo.

Coitadinho do algoz!

Onde está escrito que além de ser escravo o cidadão têm que gostar de do seu algoz, e ainda cuidar de sua saúde e segurança?

Sr. Senador, terá que haver esclarecimento e coragem para nos livrar do látego deste algoz. Esclarecimento para, diferentemente da maioria que acha que o problema não é seu, mas que continua pagando o pato sem tê-lo comido, sem saber que está sendo espoliado até a alma; e, coragem para não temer as retaliações.

John Perkins relata em sua obra um fato terrificante. Em dada ocasião, foi necessária a ação de um dos seus “chacais”. Chacal é a figura do matador, do eliminador. Quando todos os argumentos falharam nas querelas político-econômicas com o governo do Panamá, um chacal implantou um petardo no helicóptero do dirigente daquele país. Um cidadão qualquer testemunhou o fato, mas nada pode fazer. Foi possível informar às autoridades? Não. Em cinco minutos de vôo a nave foi pulverizada juntamente com todos os ocupantes por violenta explosão.

Similarmente, este que lhe fala já mandou duas cartas ao presidente Lula e uma ao Bacen alertando para o prejuízo e a inocuidade da compra de dólares. Eles as leram? O presidente Lula não. Daí, a ajuda que peço aos senhores senadores.

Uma economista do Bacen tentou responder. Tentou, porque a pergunta foi se não seria temerária a aquisição desenfreada de dólares. Ela respondeu explicando o que é moeda e quais as suas funções.

Ou seja, Senador, se indagado sobre um crime de lesa-pátria, listaria, como resposta, um rol de metabólitos resultantes do ciclo de krebs dos quelônios encontradiços sobre as tortuosas angiospermas do cerrado do planalto central? (Não sei por que fui me lembrar de jabuti em cima de árvore...).

Somos coniventes

Fustel de Coulanges jamais imaginou que a era das trevas descritas em sua obra alcançariam o século XXI.

A Lei Nº 9.069, de 29.06.95 , que regulamenta o Real, é o comprovante de que somos e de que aceitamos a condição de “galinha dos ovos de ouro” dos americanos. A lei reza:

“Art. 3º O Banco Central do Brasil emitirá o REAL mediante a prévia vinculação de reservas internacionais em valor equivalente, observado o disposto no art. 4º desta Lei.

§ 1º As reservas internacionais passíveis de utilização para composição do lastro para emissão do REAL são os ativos de liquidez internacional denominados ou conversíveis em dólares dos Estados Unidos da América(Destaque por nossa conta).

Sugestiva esta lei, não? Tal referência ao dólar, como aí colocada, é absolutamente inócua e desnecessária. Se inócua, a que serve a citação ao dólar? Não, haveria de se oficializar e publicar. Só que a leitura é outra: Tio Sam, cocoricó, aqui estamos a seu serviço, precisa de mais um ovo de ouro?

Aqui se oficializa então a submissão. O tupiniquim pode, agora, oficial e orgulhosamente, informar ao Tio Sam: veja só, não disse? Para que não reste dúvida, está aqui, agora é lei! Pode mandar que obedeceremos!

Veja que pérola, o legislador estava realmente inspirado: se o dólar não tem lastro, o Real deverá tê-lo; e, ainda, conversível em dólares. Resumindo , por lei, se o dólar afunda ...

E agora, Bush!!!...

A China acaba de anunciar que está com os Estados Unidos na palma da mão. Seria mais de 50% das ações (dólares) em seu poder? Enredou-se na própria teia? Como sair dessa, Sr. Bush? Explodindo Pequim? Há o risco de os dólares não estarem lá. Zilhões de pessoas carbonizadas? Não é nada, só efeito colateral, não é? O que interessa seria queimar os dólares.

Sr. Bush, está na hora de usar o “Plano B”: anoitecer com o dólar e amanhecer com outra moeda, que é a sua única e brilhante saída, não é? Mas essa é muito imoral. Mas, pensando bem, o que é e para que serve mesmo moral? É de comer ou de passar no cabelo? Algo sem utilidade para os Estados Unidos, não é?

Henrique Meireles

Função: enxugador de gelo. Subfunção: convencer o presidente Lula de que está fazendo a coisa certa. Subfunção II: fazer bonito com o chapéu alheio. A pergunta é: ele compraria dólares para si com o próprio dinheiro? Para o tesouro nacional, em um dia, ele compra US$ 1,5 bi; enquanto isso, o Tio Sam imprime US$ 6 bi.

Negociações comerciais americanas

Não existem. Eles ditam regras e impõem condições. E parece que se forem retiradas as pilhas do negociador ele se desaba.

Acordos

Sabe quantos acordos internacionais assinados pelos Estados Unidos foram cumpridos? Nenhum.

Risco Brasil

Um capítulo à parte. É de singular beleza. É de arrepiar. Acredite se quiser, mas quando há um piripaco (esperava o que?) no sistema imobiliário americano, záz! O risco Brasil sobe 21% de uma só tacada! Depois há quem diga que o Brasil é que não é um país sério! Claro, se o colarinho aperta, extirpe-se os fundilhos das calças, não é?

Ainda existem pessoas que dão crédito a tais avaliadores!

O Risco Brasil, por motivos óbvios, deveria ser expurgado de avaliadores americanos.

De novo, narcose cataléptica generalizada.

Dúvida

Por que somos escravos? Parece que queremos. Não estamos copiando o que Fustel de Coulanges já descrevia nos primórdios de nossa História? Veja como seria fácil sair dessa situação, sem guerra, sem disparar um tiro e ainda a custo zero. Somente tomar as seguintes providências e ficar calado, ou então informar ao Bush o contrário.

Sugestão

Vender todos os dólares entesourados, imediatamente, enquanto ainda valem alguma coisa. Convertê-os em qualquer outra coisa que não vire pó. Melhor ouro. Outro ótimo negócio é empenhar todos os bens do país e fazer o maior empréstimo possível em dólares (este é fácil, o Tio Sam imprimirá quantos tri forem solicitados, com prazer), e, no mesmo dia de seu recebimento, convertê-los em outro bem qualquer.

Seguindo: quanto maior o prazo do empréstimo, melhor. Os dólares vão para o mercado, ajudando a saturar o mundo e consequentemente a se desvalorizarem; o ouro comprado, ao contrário, irá enxugar o mercado e irá se valorizar. Assim, no futuro, quando do vencimento do empréstimo, se ainda houver dólar, ele deverá estar bem baratinho.

Se o fato cair em ouvidos errados estamos sujeitos à ataques de mísseis e podemos tratar de cavar bunkers anti-bombas. Saddam Hussein estaria dormindo tranqüilo se não tivesse abandonado o dólar. As outras trinta desculpas para ocupar o Iraque? Acertou, são desculpas mesmo.

Só para entender

Senador Mercadante, evidentemente existe algo por trás de tudo isso que foge à minha compreensão. Antes que eu comece a atirar pedras em todos, por favor, me esclareça. Por outro lado, se as preocupações aqui levantadas encontrarem ressonância, prometa pelo menos discutir o assunto com seus pares. Vou mandar uma cópia para cada Senador, exceto para o Renam Calheiros. Nada pessoal, é uma questão de gosto.

Não se preocupem comigo, enquanto um chacal não der cabo de quem lhe fala, ficarei de olho.

Indignadas saudações

José Sabino

1 Moeda que seria o padrão internacional; perdeu para o dólar.

2 Nome fictício.

3 Cotado para ser (de novo) Ministro da Fazenda.



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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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