A possibilidade da Utopia

A aplicação de uma pequena ética universal é o que se necessita para atingir uma sociedade perfeita

Ao longo da história do pensamento humano, sempre houve relativistas que condicionavam tudo, mesmo as sensações, a fatores culturais, sociais e até individuais.

Hoje estamos numa época de auge do relativismo, tido por muitos como verdade indubitável. Por isso, se alguns já consideram difícil dar um fundamento objetivo ao conhecimento, parece tarefa impossível e vã querer mostrar que a ética, ou seja, o conjunto de valores que prescreve e regula as ações humanas, é universalmente válida - pois o código de conduta humana é realmente muito variável em épocas e lugares diferentes.

Porém, existe um centro ético inquestionável. Cada pessoa vê que existem outras pessoas como ela, que se comportam de tal maneira que tudo leva a crer (desde que não seja um solipsista radical) que os demais pensam, sentem e deseajm de maneira bastante similar. É impossível ver e sentir o que os outros vêem e sentem, mas pelo seu comportamento cada um pode inferir que os demais têm sensações, sentimentos e necessidades básicas iguais aos seu. E, sendo todos iguais neste aspecto, é inevitável a formulação de uma ética muito simples, mas que está acima de qualquer dúvida razoável: não posso fazer aos outros aquilo que eu mesmo não gostaria que me fizessem.

Um relativista pode defender-se, afirmando que os gostos variam muito de indivíduo para indivíduo, e mais ainda em lugares e épocas distintos - e o relativista tem razão. Mas quanto aos sentimentos, sensações e necessidades elementares, não há dúvida que a variação é mínima, pelo menos entre pessoas saudáveis: ninguém quer que outra pessoa simplesmente tome um objeto que utiliza e necessita; ninguém quer ser privado de sono, água, comida, abrigo e liberdade; ninguém quer trabalhar duramente, para que os frutos de seu labor sejam utilizados por outros que nada fazem; ninguém quer sofrer violência, ou ser constantemente ameaçado por ela.

E, por outro lado, todos querem o necessário para viver confortavelmente; todos querem um trabalho produtivo que lhes permita gozar de seus frutos; todos querem ser livres e não estar submetidos à arbitrariedade de ninguém; todos querem ser ajudados quando estão em uma situação difícil; todos querem viver numa comunidade de relações amigáveis entre todos seus membros. Claro, existem os psicopatas, os egocêntricos e outros tipos de pessoas que não se adequam à vida social, e para os quais algumas das necessidades e sentimentos mencionados não valem; mas são poucos, e na maioria das vezes podem ser condicionados a viver harmoniosamente com os demais.

Mas um fato realmente importante é que mesmo as pessoas mais egoístas e sem consideração pelos demais reconhecem a validade deste núcleo ético inquestionável e universal - não faças aos outros aquilo que não gostarias que te fizessem; faz-lhes aquilo que gostarias que te fizessem. Um bom exemplo é o nazismo, a mais brutal, cruel e injusta doutrina dos últimos séculos, se não de toda a história. Vamos dar vários exemplos de que, apesar de ser uma ideologia hedionda, muitos nazistas mostraram reconhecer valores éticos universais, mesmo quando os violavam.

Embora a população alemã fosse bastante anti-semita antes da ascensão de Hitler, em 1933, e embora desde então eles estivessem submetidos a uma constante propaganda dirigida contra os hebreus, ainda assim os autores do holocausto tomaram todos os cuidados possíveis para esconder os massacres. Mesmo aqueles que conheciam o fato e estavam envolvidos na sua perpretação nunca falavam entre si que estavam exterminando, matando ou eliminando os judeus; em vez disso, usavam o eufemismo "solução final". Diziam: "Estamos resolvendo definitivamente o problema judaico na Europa."

Por isso, os nazistas cediam quando havia uma ameaça de que se tornasse público: tiveram que cancelar os planos de dissolver os casamentos mixtos (entre alemães "puros" e judeus) e mandar a campos de concentração os judeus, porque os cônjuges "germânicos" não aceitaram o fato e ameaçavam realizar grandes protestas nacionais, o que faria com que todos soubessem como os nazistas estavam realmente "resolvendo a questão judaica".

Mesmo os mais cruéis membros da SS e da Gestapo, encarregados de exterminar judeus, eslavos, ciganos e todos aqueles que eram considerados obstáculos à "supremacia alemã", deram mostras de justiça e bondade algumas vezes. R.G. Bell, que escreveu um livro sobre a resistência não-violenta, conta: "Durante a ocupação da França pelos alemães na última grande guerra, um pastor protestante francês ajudou alguns judeus e os escondeu em sua própria casa. A polícia secreta descobriu o que ele fazia, deteve o pastor e o enviou ao quartel-general da Gestapo em Paris. O oficial da Gestapo que o interrogou lhe perguntou por que ele ajudava os judeus, sabendo que isso era contrário à lei da potência ocupante, e o pastor respondeu que nessa matéria não reconhecia a lei ditada pela potência ocupante, mas obececia outra lei que lhe ordena fazer o bem ao próximo.

"O oficial da Gestapo então pediu que o acompanhasse para dar um passeio pelo jardim. O pastor se perguntava o que ia acontecer. Iam golpeá-lo, fuzilá-lo, enviá-lo a um campo de concentração? Em vez disso, quando chegaram ao fundo do jardim, o oficial abriu uma porta, que comunicava com uma rua traseira, e disse: 'O senhor pode ir-se. Faz-me lembrar que fui batizado cristão.' "

O nazismo também adotava oficial e publicamente uma atitude militarista e conquistadora, e apregoava o direito dos alemães de submeter outros povos. Mesmo assim, antes de cada invasão, a propaganda sempre tratava de dizer que estavam simplesmente se defendendo de ameaças futuras (um precursor da doutrina da guerra preventiva de George W. Bush, mas levada a extremos maiores), ou mesmo para acabar com inustiças: assim, Hitler alegava ter invadido a França e a União Soviética apenas para eliminar a ameaça de que estes países atacassem a Alemanha, e a Tchecolováquia e a Polônia para terminar com os supostos maus-tratos destes países à população de origem alemã que aí habitava.

Voltaire já havia escrito, há mais de 200 anos, algo que explica bem os exemplos que acabamos de dar. É um trecho longo, mas vale a pena citar quase na íntegra: "De tal modo a idéia de justiça parece-me uma verdade de primeira ordem, a que todo o universo dá seu assentimento, que os maiores crimes que afligem a humanidade são cometidos sob um falso pretexto de justiça. O maior dos crimes, pelo menos o mais destrutivo, e conseqüentemente o mais oposto à finalidade da natureza, é a guerra. E, no entanto, não há um malfeitor que não tinja essa malfeitoria com o pretexto da justiça.

"Os depredadores romanos obrigavam os chamados padres feciais a declararem todas as suas invasões justas. Todo salteador que se encontra à testa de um exército começa seus furores com um manifesto e implora ao Deus dos exércitos.

"Mesmo os pequenos ladrões, quando se associam, cuidam para não dizer: 'Vamos roubar, vamos arrancar o alimento da viúva e do órfão.' Dizem: 'Sejamos justos, vamos recuperar nossos bens das mãos dos ricos que dele se apoderaram.' (...)

"A palavra injustiça nunca é pronunciada num conselho de Estado em que se proponha o assassinato mais injusto. Mesmo os conspiradores mais sanguinários nunca disseram: 'Cometamos um crime'. Todos disseram: 'Vinguemos a pátria contra os crimes do tiranos; punamos aquilo que parece uma injustiça.' Em uma palavra: aduladores, fracos, ministros bárbaros, conspiradores odiosos, ladrões mergulhados na iniqüidade, todos homenageiam, malgrado eles mesmos, a própria virtude que pisoteiam."

O que tudo isso prova? Em primeiro lugar, que é possível resistir ao mau sem usar a violência, pois mesmo os mais terríveis agressores reconhecem, de alguma maneira, que o que fazem não é correto. Em segundo lugar, que por pior que a humanidade possa ser algumas vezes, não temos nenhum motivo para crer que seja necessário e perpétuo o estado atual, onde existem tantas injustiças, desigualdades, abusos, privilégios, explorações, violências e crueldades. Por incrível que possa parecer, é possível uma sociedade onde todos estes males sejam evitados.

Marx tinha razão: o fim último que devemos buscar, embora ainda distante, é o comunismo - uma sociedade igualitária, sem estado, sem classes, sem opressão, e de cooperação livre e espontânea entre todos. Mas o marxismo se equivocou ao crer que o mecanismo da história, movido pela economia e a luta de classes, traria uma sociedade melhor e mais justa. O remédio para os males sociais não é a revolução ou um novo modo de produção; o remédio consiste apenas na aplicação do pequeno núcleo ético que foi exposto, que todos, mesmo quando o violam, o reconhecem. Quando todos espontaneamente respeitarem a lei simplíssima que diz: "não faças aos outros aquilo que não gostarias que te fizessem; faz-lhes aquilo que gostarias que te fizessem", automaticamente estará implementada a sociedade perfeita.

CarloMOIANA
Pravda.Ru

Buenos Aires

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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