Conversa de John Kerry sobre o ISIL é insulto à nossa inteligência

John Kerry vai ficando cada dia mais parecido com William McGonagall, o "pior poeta do mundo", cujo horror, ante o desastre da Ponte Tay, em 1879, gerou o imortal comentário de que [a tal desgraça] "será lembrada por muito tempo".


"E por que não inventam uma 'coalizão de 50 desejantes' para destruir o Ebola?!"


Quem tenha estudado a Síria já sabe que não existe oposição 'moderada'.

John Kerry vai ficando cada dia mais parecido com William McGonagall, o "pior poeta do mundo", cujo horror, ante o desastre da Ponte Tay, em 1879, gerou o imortal comentário de que [a tal desgraça] "será lembrada por muito tempo".


21/9/2014, Robert Fisk, The Independent, UK - http://goo.gl/3txWYd 


Como no verso de McGonagall, as tentativas de Kerry para explicar a cruzada dos EUA contra o mais recente inimigo malvado são tão ridículas, que se vai ficando viciado nelas. E quando você pensa que a explicação capenga, de Kerry, para os políticos americanos da cruzada iraquiana de Obama - "o ISIL tem de ser derrotado, puro e simples, e fim da história" - não pode(ria) ficar mais infantiloide, ela fica.

Por infantilismo - desafio os leitores a ler a frase seguinte até o fim, sem nenhuma careta de 'mas... ele não pode ter dito uma coisa dessas!':


"Quero deixar bem claro que, quando acabarmos aqui hoje, vocês me dirão o que pensam e eu saberei o que estão pensando" - disse Kerry à Comissão de Relações Exteriores do Senado semana passada -, "e vocês terão ouvido de mim e saberão o que nós estamos pensando, o que o governo Obama está pensando, e que vocês têm uma clara compreensão do que estamos fazendo hoje e faremos na sequência." Tudo coisa complexíssima, disse Kerry - e que, claro, sem dúvida, "será lembrada por muito tempo".


O mais imediatamente chocante foi o mundo de fantasia de Obama o qual Kerry, com seu jeito de moleque pesadão, representou. Quem tenha estudado a Síria, mesmo de longe, e nem se fala dos que a conheçam de perto, sabe que a tal "oposição moderada", ficcional - supostos desertores do Exército Árabe Sírio oficial - absolutamente não existe.

Corrupto, desiludido, assassinado ou simplesmente re-desertado de volta ao ISIL ou para outro grupo associado da al-Qaeda, o velho 'exército sírio livre' é hoje mito tão ridículo - e tão potente, para os Kerrys desse mundo - quanto os arroubos de Mussolini de que o exército italiano poderia derrotar os britânicos no Norte da África. Qualquer soldado sírio pode contar, de viva voz, que está feliz por poder combater contra o tal 'exército sírio livre', porque aquela 'oposição moderada' é especialista só, em fugir feito coelhos. Quem luta até a morte são os "terroristas" de al-Qaeda-Nusra-ISIL.  

Mas Kerry, como os generais da 1ª Guerra Mundial, vive num castelo de fadas de sua própria imaginação. "Na Síria, o combate em campo será feito pela oposição moderada, a qual é o melhor contrapeso da Síria [sic] para extremistas do tipo ISIL" - eis o que ele disse à Comissão de Relações Exteriores da Câmara de Deputados. - "E podemos falar mais sobre aquela oposição moderada - que jeito tem, quem é, do que são capazes hoje e do que poderão fazer - conforme nós avançarmos." Como os generais [Douglas] Haig e [John] French, Kerry entrou em delírio.

O 'exército sírio livre', disse Kerry, vem combatendo contra o ISIL há dois anos - em Idlib, Aleppo, em torno de Damasco e em Deir Ezzor -, e o governo sírio, Kerry insistiu, não dá combate, nem dará, ao ISIL. Isso é absoluto nonsense. A maioria dos 35 mil soldados mortos do exército sírio foram mortos em combates contra al-Qaeda e o ISIL. E as únicas forças que realmente mantêm coturnos em solo contra o ISIL são o Hezbollah e os Guardas Revolucionários do Irã, ao lado dos curdos.

Exaltar a "oposição moderada" dois dias antes de as mais recentes vitórias do ISIL já os terem trazido até a fronteira da Turquia é absurdo, grotesco, ridículo.

E que estadista ilustra(ria) a própria ideia de que sunitas e xiitas estariam em aliança com os EUA, brandindo no ar a primeira página do The Wall Street Journal em que se vê um líder curdo, um ministro iraquiano xiita e o ministro sunita de Relações Exteriores da Arábia Saudita fotografados lado a lado? Kerry elogiou os clérigos sauditas por condenarem o ISIL sunita, sem mencionar que muitos destacados imãs sauditas consomem muito mais tempo desqualificando os EUA. Nem poderia, mesmo, falar, dos clérigos paquistaneses que também declararam herético o ISIL - porque, claro, passam praticamente todo o tempo acusando os sauditas de financiarem o ISIL.

Como Cameron, Kerry serve-se do vocabulário da autoconfiança. Os EUA "de pleno direito" e "sem dúvida alguma" tinham de apoiar os esforços do governo iraquiano; e há "absoluta clareza" de que os EUA detiveram o ISIL. Quanto ao "Estado Islâmico" propriamente dito, não passa(ria) de "distorção insultante do Islã", "inimigo do Islã", "culto militante fantasiado de movimento religioso" de "assassinos a sangue frio" cuja filosofia "saiu da Idade da Pedra". Mas... e que diabo é isso?! Começamos por declarar que o ISIL 'saiu' da Idade Média; depois, que 'saiu' do século 18. Agora, 'saiu' do ano 2.000 a.C.

Graças aos céus temos o general John Allen - o qual, nem faz muito tempo, andava propondo garantias de "segurança" para o Vale do rio Jordão que ambos, palestinos e israelenses, puseram abaixo -, para resolver o caso no Iraque. É o ex-vice comandante da província Anbar do Iraque, homem - segundo Kerry - com "grande respeito" na região, com "conhecimento das tribos sunitas" e - ah, mas que perfeito momento McGonagall, esse - "de todo o pessoal por lá e que formam o mix a ser capaz de mobilizar a ação" [orig. "of all the folks there that are part of the mix to be able to mobilise action"].

Não surpreende que Kerry também tenha dito ao mundo que, dos 50 aliados internacionais anti-ISIL dos EUA, alguns, sim, se engajarão em "atividade cinética". Ah, é, pode apostar que sim! Embora meu palpite seja que ninguém venha a ver qualquer força aérea árabe unir-se ao bombardeio aéreo franco-norte-americano.

O que Kerry absolutamente não nos pode dizer é tão simples quanto o que ele mente que será simples a luta contra o ISIL: que terá de haver algum tipo de aliança - algum tipo! - entre o 'ocidente' e o Irã, para derrotar o ISIL; que essa aliança inevitavelmente terá de incluir algum entendimento não revelado com a Síria de Bashar al-Assad; e quem sabe até, inclusive, com os apavorantes, impensáveis guerrilheiros "super-terroristas" do  Hezbollah, os quais - diferentes do que Kerry diz do ISIL - não andam por aí "matando e estuprando e mutilando mulheres" ou vendendo meninas "para serem escravas sexuais de jihadistas".

Mas, de homem que pensou que alinhavaria a paz paletinos-israelenses em 12 meses de conversa fiada... o que mais se poderia esperar? Sim, o ISIL é o mais recente espectro a nos assombrar. Mas há outro, não mais distante, que ameaça todos e que, esse sim, tem de ser derrotado, "puro e simples, e fim da história". Ameaça matar infinitamente mais gente que o ISIL. Recebeu o nome de um obscuro rio africano. Quero dizer... E onde está a convocação de uma aliança de 50 'nações desejantes', para destruir o Ebola?! *****

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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