Tsipras, ou a dissolução da política

Da série "A Grécia é aqui":

"Podemos considerar que a Carta ao Povo Brasileiro (2002) representou aquilo que a derrota da emenda Dante de Oliveira representou para o país, se fizermos um paralelo. A derrota da emenda Dante de Oliveira impossibilitou a ruptura que significaria um governo eleito em 1985, provavelmente com o Ulysses Guimarães presidente, e a possibilidade de fazer um governo que não fosse um prolongamento do final do regime militar. Foi uma derrota que impossibilitou a criação do novo, digamos. A Carta também representa a postergação daquilo que vinha do governo FHC. Não houve de fato uma ruptura em termos de política econômica... 

20/10/2011, Marcos Pochmann in "O marco foi a Carta ao Povo Brasileiro", Revista Fórum
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Ao aprovar novo Memorando, o governo e a maioria do grupo parlamentar Syriza não só disseram adeus à política de esquerda, mas também à própria política. Ao fazer essa escolha, eles não renunciam só ao programa do Syriza ou aos compromissos que o governo assumiu.

3º Memorando: "Podem levar tudo" 

Eles sapateiam sobre o "Não" que o povo grego acaba de pronunciar há poucas semanas, para manifestar a recusa categórica - como o próprio governo lhes pedira que fizesse - ao arrocho [não é 'austeridade'; é arrocho] e às políticas dos memorandos anteriores. Ainda mais grave, o arrocho do plano Juncker que os eleitores rejeitaram era claramente mais 'doce' que o que lhes foi imposto pelo acordo ignóbil de 12 de julho. E, ainda mais, ante o governo e a maioria do grupo parlamentar, levantou-se a maioria dos membros do Comitê Central do próprio partido Syriza, quer dizer: a única instância eleita pelo Congresso do partido e representante da vontade coletiva dos militantes do Syriza. 

Mas há também algo mais, que pressupõe tudo isso e, ao mesmo tempo, o transcende: é precisamente porque fizeram o que fizeram, que o governo e sua maioria parlamentar acabaram obrigados a renunciar à própria ideia de política, em primeiríssimo lugar ao fundamento da política: à ideia da responsabilidade política, que obriga a assumir a responsabilidade por uma escolha política.

Nesse sentido, todos nos convertemos em testemunhas de desenvolvimentos sem precedentes na história grega e internacional. Por exemplo, ouvimos o novo ministro das Finanças Euclides Tsakalotos, afirmar ante o Parlamento que o dia seguinte, depois de assinar o acordo, foi "o pior dia" de sua vida; e prosseguiu, dizendo que "não sei se nós fizemos o que era certo, mas não tínhamos escolha". Atenção: ele "não sabe" se fez o certo, mas faz, aceita o acordo e convoca os colegas e camaradas a também aceitarem! E tudo isso, em nome do "não tínhamos escolha", em outras palavras, em nome do famoso TINA [There is no alternative, "Não há alternativa"] de Margaret Thatcher. 

É motivo que não só implica recusar toda e qualquer ideia de esquerda, mas também nega a própria noção de política, sempre inteiramente fundada sobre o fato de que sempre se pode escolher. 

Mas o exemplo mais flagrante dessa operação de renunciar às responsabilidades, que nos dias recentes já tomou dimensões de epidemia, foi dado pelo próprio primeiro-ministro. Já na entrevista que deu a TV grega, ERT, ele disse que "não está de acordo" com o tal 'acordo'; e que "não acredita" nele. Também o primeiro-ministro invocou a inexistência de alternativas dentre as quais escolher. 

Claro que em nenhum momento - uma única vez, que fosse - o primeiro-ministro propôs a questão de saber como seria possível que, depois de cinco meses e meio de governo, com o apoio de 62% que o povo lhe deu no referendum ao qual ele mesmo recorrera, ele repentinamente se visse sem outra escolha além de render-se a um novo Memorando, e documento de barbárie jamais vista. 

Pois apesar de "não acreditar" no acordo e de "não estar de acordo" com o acordo, o primeiro-ministro mesmo assim requereu aos deputados de seu partido, fazendo sobre eles verdadeira chantagem, que se tornassem cúmplices dessa liquidação do mandato popular e da soberania nacional, ameaçando demitir-se, se não recebesse o apoio de todos sem exceção. Renúncia à qual renunciou, claro, depois de ouvir o não retumbante de 39 dos deputados do Syriza.   

Mas com sua declaração de 16 de julho, o primeiro-ministro dá mais um passo naquela direção. Porque ele entende que, uma vez que ninguém contesta que ele realmente sofreu chantagem, não apoiá-lo equivaleria a recusar-se a assumir parcela de responsabilidade, e essa recusa "opõe-se aos princípios da relação de solidariedade entre camaradas e, num momento crucial, abriria uma ferida nas nossas fileiras". Em outros termos, pelo mesmo raciocínio, ter cedido a uma chantagem que ninguém nega daria a Alexis Tsipras o direito de exigir dos deputados de seu partido que se tornassem cúmplices daquele gesto desastroso. Como se a realidade da chantagem implicasse automaticamente que não haveria outra resposta além da resposta de Tsipras, que não haveria escolha. 

O argumento subjacente é, mais uma vez, o TINA à Tatcher, mas que, nesse caso, apresenta-se em termos de psicologia individual e dos afetos. Recusar a aceitar a escolha que Tsipras fez equivale a recusar-se a amparar uma pessoa "que 'comeu o pão que o diabo amassou' durante seis meses" (!) e que, como todos os demais, é devorado por um "dilema de consciência ante nossos princípios, valores, posições e referências ideológicas comuns". 

Mas em política e, mais geralmente, na atividade social, o que importa nunca são os dilemas íntimos, as intenções (boas ou más), remorsos eventuais e reflexões secretas. O que importa são os atos e o conteúdo dos atos. Não é absolutamente acaso que as palavras "memorando" ou "acordo" estejam totalmente ausentes da declaração de Alexis Tsipras. Naquela 'ação de comunicação', o objetivo buscado não é defender uma escolha política, mas suscitar uma identificação afetiva com um dirigente duramente posto à prova e, principalmente, estigmatizar os dissidentes, apresentá-los como gente que "trabalha contra o primeiro governo de esquerda eleito na história da Grécia". 

Mais uma vez, o fundo político é dissimulado, e todos são induzidos a esquecer de que se trata, realmente, de não concordar com uma escolha cuja substância não é menos que se render ou não se render aos memorandos; respeitar ou não o duplo mandato popular de 25 de janeiro, reforçado dia 5 de julho; respeitar ou violar o programa e os compromissos do próprio governo e do primeiro-ministro. 

Essa dissolução da própria natureza do discurso político é evidente confissão de fraqueza. A legitimidade do terceiro recurso a um Memorando não é apenas ainda mais fraca que nos casos anteriores: ela já é absolutamente inexistente. Porque, diferente do que se viu em 2010 e 2012, a força política que hoje governa tem como única razão de ser e de ter sido levada ao poder a obrigação de derrubar as políticas às quais hoje aquela força política se submete. Em outros termos: a única verdadeira ameaça que pesa sobre "o primeiro governo de esquerda da história desse país" e, claro, também pesa sobre seu principal ator, o Syriza, não é algum "inimigo interno": são os planos de arrocho [não é 'austeridade': é arrocho], os Memorandos e a rendição suicidária a esses planos e memorandos.

Os memorandos não devoram só governos e primeiros-ministros, mas também os partidos que os aplicam. Eles desmantelam o próprio sentido da ação política mobilizada para defender os que, hoje resistem - resistência de último momento - contra o esmagamento do povo grego e a destruição do que ainda mantém de pé essa sociedade e esse país. *****

 

18/7/2015, Stathis Kouvelakis, gr. The Press Project, trad. gr. fr. Christine Cooreman, Tlaxcala

 

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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