1932: a revanche oligárquica

Por Augusto C. Buonicore

"O nosso movimento é do Brasil. Católico,
disciplinado e forte, contra a anarquia em
que queriam que vivêssemos. Uma luta de
Jesus contra Lenine". (Ibrahim Nobre. "Tribuno
do Movimento Constitucionalista", em 12 de
julho de 1932)

Os antecedentes da revolta

A revolução de 1930 foi um dos acontecimentos mais importantes da nossa história recente. A derrubada das velhas oligarquias, ligadas ao financiamento, produção e exportação do café, e do regime que lhes dava sustentação, criou melhores condições para o desenvolvimento do capitalismo brasileiro. Abriu caminho para a diversificação da economia e o impulsionamento da indústria moderna. Embora esse desenvolvimento mantivesse intacta e estrutura fundiária baseada no latifúndio e não rompesse substancialmente com a dependência externa, apenas recolocando-a sob novos termos.

O novo governo revolucionário, dirigido por Vargas, procurou, desde o início, construir uma base social que lhe permitisse resistir aos setores das oligarquias desalojadas do poder. Implantou-se assim uma política bifronte assentada, de um lado, na concessão de direitos sociais e, de outro, na repressão às organizações operárias autônomas. A política de concessões aos trabalhadores descontentaria o conjunto das classes proprietárias brasileiras, enquanto a repressão contra comunistas e anarquistas seria aplaudida.

O movimento armado de 1930 foi recebido com euforia pelo povo paulista. Ao ter notícia da derrocada do presidente Washington Luiz , uma multidão depredou as redações dos jornais governistas, como o Correio Paulistano. Existia uma forte oposição ao Partido Republicano Paulista (PRP) no Estado, que era encabeçada pelo Partido Democrático (PD). Este, embora fosse uma dissidencia oligarquica, tinha influência sobre as camadas médias modernizantes da sociedade paulista. Os "democráticos", até então, tinham tido o seu acesso ao poder interditado pelas fraudes eleitorais típicas daquele período. O PD apoiou a revolução e chegou a tomar o poder na capital de São Paulo, permanecendo ali por 40 dias.

Mas Vargas e os tenentes revolucionários desconfiavam das elites políticas paulistas, inclusive as do aliado Partido Democrático. Por isso, para a interventoria foi indicado o tenente João Alberto, que não era paulista. O interventor, sob forte oposição dos setores conservadores,  buscou apoio junto ao proletariado paulista. Num ato inusitado, chegou a autorizar o funcionamento do Partido Comunista do Brasil. Embora as três pessoas autorizadas não fossem mais militantes do referido partido por haverem composto uma dissidência de caráter trotskista. O objetivo de João Alberto não era, como acusavam seus críticos, incentivar a luta de classes. Pelo contrário, ele pretendia, através de medidas sociais e de melhorias salariais, "conciliar patrões e operários, harmonizando-os para uma obra de paz e prosperidade nacional", segundo os tenentes.

Excluído do poder, em abril de 1931, o Partido Democrático (PD) rompeu com o governo e lançou a denúncia de que São Paulo era um território militarmente ocupado e exigiu a indicação de um interventor civil e paulista (e preferencialmente do PD).  A resposta governista foi o fechamento da sede do Partido, do Diário Nacional e a prisão do chefe de polícia ligado aos "democráticos", Vicente Rao. No final do mês,  tentou-se organizar um levante armado que foi rapidamente desmantelado. Mais de 200 revoltosos foram presos. A situação se agravou. A chefia da Força Pública foi assumida pelo tenente Miguel Costa - ex-comandante da Coluna e chefe da Legião Revolucionária de São Paulo - e a da II Região Militar, pelo General Góes Monteiro.

Pouco depois, tentando evitar novos confrontos, Vargas cedeu à pressão "paulista" e substituiu João Alberto por Plínio Barreto. Os tenentes se agitaram, pois o indicado havia caluniado a revolta de 1922, acusando os revoltosos de "bandidos". Miguel Costa organizou então um protesto armado na Força Pública e impediu a posse do novo interventor. Vargas indicou um outro interventor paulista e civil, Lauro Camargo. Este, como os anteriores, ficou pouco tempo no cargo. Em seu lugar assumiu um aliado dos tenentes, o comandante da II Região Militar, general Manuel Rabelo.

Dia 25 de janeiro de 1932 realizou-se um grande comício na Praça de Sé no qual foi lançada a palavra de ordem "Luta pela Constituinte". Um novo comício monstro realizou-se em 24 de fevereiro. As oligarquias iniciaram um processo de unificação em nível nacional. Em São Paulo, o Partido Republicano e o Partido Democrático, inimigos históricos, se unificaram na "Frente Única Paulista". Em Minas Gerais e no Rio Grande do Sul, também, formaram-se frentes únicas contra o governo federal. As bandeiras que os unificavam foram: a volta do federalismo e a necessidade de se convocar uma Assembléia Nacional Constituinte.

Visando tirar a bandeira da "constitucionalização" das mãos das oposições oligárquicas, em 23 de fevereiro, Vargas promulgou o novo código eleitoral, estabelecendo o voto feminino e secreto, e anunciou a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte. Em maio nomeou uma comissão de "notáveis" para elaborar um anteprojeto de Constituição e marcou a eleição para 3 de maio de 1933. Foi decretado também o fim da censura à imprensa.

O presidente já havia feito uma outra concessão importante e nomeado um interventor civil, paulista e ligado aos grupos políticos regionais, Pedro de Toledo. Pensou, assim, deter a maré contra-revolucionária, mas cada concessão presidencial aumentava ainda mais a ousadia de seus adversários. Agora a Frente Única exigia a renúncia do próprio governo Vargas.

O movimento operário e o levante constitucionalista

Apesar da sua ausência na história oficial, o movimento operário teve um importante papel na configuração do conflito que opôs as elites paulistas e o governo central. No início de 1932 a cidade de São Paulo foi atingida por uma onda grevista não vista desde 1917. O movimento de contestação operária atingiu seu clímax em maio. No dia 2 paralisaram os ferroviários, seguiu-se a greve dos sapateiros e vidreiros. No dia 11, a paralisação atingiu as indústrias têxteis, e depois se estendeu para os padeiros, empregados de hotéis e da indústria de fumo, além de inúmeras outras fábricas isoladas. O conflito durou mais de um mês e cerca de 100 mil operários entraram em greve.

Visando neutralizar esse movimento, e a crescente influência comunista, o governo federal sancionou várias leis trabalhistas. Em 4 de maio instituiu a lei das oito horas para a indústria; no dia 12, criou as Comissões Mistas de Conciliação; no dia 17, regulamentou o trabalho de mulheres na indústria e no comércio. Os empresários de São Paulo consideraram estas medidas como concessões inaceitáveis aos grevistas e exigiram a sua revogação.

A Fiesp solicitou ao Ministro do Trablaho que se "sustasse provisoriamente em São Paulo a execução das leis sociais", pois "modificações dessa ordem podem ser feitas com sucesso em quadras normais, mas apresentam perigos cuja extensão V. Exa. poderá imaginar em quadras como a atual, de inquietações e desconfianças. Acedendo ao nosso pedido, haverá V. Exa. contribuído fortemente para a debelação da crise política e social". Em resposta afirmou o ministro: "Assegurando-se esses direitos desaparecerá o mal-estar reinante". Não conseguindo os seus objetivos, os industriais paulistas passaram a reforçar a frente oposicionista oligárquica.

O discurso anticomunista foi marca da oposição liberal paulista. Ela procurou sempre vincular o novo regime, instaurado no pós-30, com o crescimento do movimento operário e comunista. No inicio do conflito armado, o presidente do Instituto do Café afirmou: "Lavradores! Os desmandos da ditadura (...) são as melhores armas de que se servem os aventureiros internacionais, desejosos de implantar na terra acolhedora de Santa Cruz os horrores do comunismo". (Diário Nacional, 12/7/1932) O arcebispo de São Paulo, D. Duarte Leopoldo e Silva, não ficou atrás, afirmando: "A erva daninha do comunismo, trouxe-a para São Paulo a mochila de certos próceres de 1930".

A própria greve se de um lado aguçou o espírito oposicionista das oligarquias, por outro, retardou os preparativos bélicos, como podemos notar nesta carta do líder democrático paulista, J. A Marrey, a Francisco Morato: "Devemos evitar a luta armada por todos os meios, sobretudo agora que se encontram em greve dezenas de milhares de operários. Pressinto a queda de nosso Partido. (...) ele deverá saber mover-se habilmente dentro da situação".

No auge da greve, em 14 de maio de 1932, o jornal O Estado de S. Paulo, que havia sido oposição ao Partido Republicano Paulista, estampou em suas páginas: "O Brasil só se salvará se houver união entre seus filhos, entre os vencedores e vencidos da Revolução que ainda não se transviaram para a loucura bolchevique. Pouco importa, ao menos para nós, que, passada a tormenta e salvo o Brasil, o poder vá para as mãos dos políticos de antanho. O que cumpre, do mais humilde cidadão ao chefe do Governo, é salvar o Brasil da anarquia". A volta ao passado era melhor do que a insegurança criada pelo avanço da luta social.

A revolução constitucionalista

Nos dias 22 e 23 de maio uma multidão, insuflada pela imprensa e por políticos paulistas, depredou a sede do Partido Popular Progressista e do jornal A Razão, ligados aos tenentes. Logo após, um grupo de estudantes tentou atacar a sede da Legião Revolucionária de Miguel Costa. No conflito que se seguiu morreram quatro manifestantes: Miragaia, Martins, Dráusio e Camargo. Com as iniciais dos quatro nomes (MMDC) formou-se um movimento radical anti-Vargas, defensor da luta armada contra o novo regime.

Aproveitando-se da comoção popular, a Frente Única Paulista deu um golpe e assumiu o poder no Estado, mantendo Pedro de Toledo no governo. Todo secretariado passou a ser composto pelos grupos oposicionistas. As oligarquias, finalmente, haviam retomado o poder em São Paulo. Queriam mais. Vargas, recuado, não tomou nenhuma providência pensando assim reduzir a crise e evitar o conflito armado. De nada adiantou.

Em São Paulo aumentou a repressão ao movimento operário e às greve que continuavam. No mesmo dia do golpe em "defesa da constituição e da liberdade" a polícia paulista invadiu o Sindicato dos Padeiros e prendeu duzentos grevistas. A assembléia do Comitê de Greve foi invadida e a maioria dos seus dirigentes encarcerada. Entre eles estavam Leôncio Basbaum, Roberto Morena, Mário Grazini e Caetano Machado, todos dirigentes do Partido Comunista do Brasil (PCB); e Righetti, líder dos trabalhadores gráficos ligado aos tenentes. A greve de maio seria esmagada pela repressão dos constitucionalistas. 

O Diário Nacional, ligado aos "democráticos" regozijou-se do papel repressivo do novo governo: "São Paulo inteiro não ignora que foi à sombra da Ditadura que as doutrinas extremistas encontraram campo de expansão (...). Em 23 de maio, depois que o povo paulista conquistou na praça pública (...) o seu próprio governo, essa situação modificou-se. Uma das principais providências tomadas (...) foi a organização de turma especializada para a repressão ao bolchevismo (...). Iniciou-se dali a campanha contra os estipendiados de Moscou. Que a colheita foi boa, prova-o a relação que abaixo publicamos, das prisões desde os últimos dias de maio" (14/09/1932).

As elites paulistas buscaram então forjar uma aliança político-militar com os dirigentes de Minas e Rio Grande do Sul com o objetivo de derrubar o governo. Formou-se um comando militar paulista da revolta tendo à frente os generais Isidoro Dias Lopes, Bertoldo Klinger e Euclides de Figueiredo. 

Miguel Costa e seus aliados foram presos. Iniciou-se uma dura repressão contra todos os grupos partidários de Vargas, assim como já havia ocorrido em relação aos comunistas e anarquistas. Mais de 1400 pessoas foram presas durante aquele movimento.

Finalmente, no dia 9 de julho, confiantes na vitória, os generais paulistas iniciaram o movimento armado. No entanto, o interventor gaúcho recuou de suas posições e deu o seu apoio político e militar a Vargas. Diante de um convite dos revoltosos paulistas, os comandantes da Força Pública mineira, que havia se comprometido com o levante, afirmaram: "A vossa palavra tocou-nos profundamente o coração", mas "o que nós queremos acima de tudo é a ordem".  Minas Gerais escolheu o caminho da negociação e abandonou seus aliados paulistas.

As oligarquias de São Paulo ficaram isoladas num combate de vida ou morte contra o poder central. No início acreditavam que o movimento seria "uma simples parada militar, mera marcha triunfal até o Rio de Janeiro".  Ledo engano.

A ausência de apoio das classes populares, especialmente da classe operária, foi visível. Das 28 entidades que assinaram o Manifesto de apoio a insurreição apenas 4 eram de trabalhadores. Os grandes sindicatos operários não foram solidários com o levante de 1932. O instinto de classe lhes dizia que aquilo era contra os seus interesses. A pressão pela retirada dos direitos trabalhistas e o esmagamento da greve geral de maio haviam sido bons exemplos do que os esperava com a vitória dos constitucionalistas.

A derrota militar das oligarquias

A luta armada durou três meses e foi bastante desfavorável aos paulistas, inferiorizados em armamento e soldados. As sucessivas derrotas e frustrações levaram a que ocorressem deserções nas tropas. Na retaguarda cresceu o descontentamento das classes populares, submetidas a todo tipo de privações e aos bombardeios governistas. Ocorreram inúmeros casos de saques. Em 2 de outubro o comandante da Força Pública de São Paulo assinou o armistício e destituiu Pedro de Toledo. Justificando a rendição o Coronel Herculano de Carvalho, afirmou: "Aquilo já não era humano, já não era desprendimento; raiava à loucura. Seria um crime continuar a luta daquele modo". Fracassava assim a tentativa das oligarquias paulistas de reconquistar o poder político do país.

Vários combatentes de 1932 se deram conta de que haviam sido usados. Um ano após o fim do conflito, um Manifesto de ex-combatentes denunciava "os privilégios e regalias que galardoavam desigualmente os filhos da fortuna, guerreiros brancos da retaguarda, vistosos e luzidios, ostentando galões e proclamando bravuras imaginárias" e, concluía: "Nós somos aqueles que hoje estão convictos do embuste e da mistificação a que foram atirados pelo manobradores da política profissional, promotores de revoluções com o intuito de reconquista do poder perdido".

Apesar da desorganização do Partido Comunista e das entidades sindicais, existia ainda um medo insano da insurreição comunista em São Paulo. Uma das justificativas da rendição foi a de que "a ordem pública em São Paulo estava seriamente ameaçada por um grande surto comunista". Por sua vez, o general vitorioso, Góis Monteiro, afirmou: "Ordenei ao General Daltro Filho entrar, à frente de suas forças, na capital paulista, a fim de garantir a ordem pois havia ali muita confusão e grande desapontamento, além de levantes de caráter comunista". Naqueles dias tumultuados, o fantasma do comunismo parece que atormentava vencidos e vencedores e contra ele não tardaram a se unificar em 1935, na repressão a Aliança Nacional Libertadora (ANL) e em 1937, com a decretação do Estado Novo.

*  Artigo publicado no Portal Vermelho em 20 de dezembro de 2002

** Augusto C. Buonicore é Historiador, membro do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil, Secretário Geral da Fundação Maurício Grabois e responsável pelo Centro de Documentação e Memória (CDM)

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