"Ajuda" de 60 biliões à África é apenas promessa

"Ajuda" de 60 biliões à África é apenas promessa e deixa dúvidas


Crianças em um povoado na cidade de Intadeyni são as principais vítimas da falta de recursos e da ingerência internacional na soberania de Mali

Em todo o noticiário da grande imprensa, com o tradicional oficialismo governamental predominando, foram notáveis as falhas provocadas pela ausência da crítica ao discurso das potências mundiais.

Por Gustavo Barreto, para o Fazendo Media ( www.fazendomedia.com )

Os países do G-8 anunciaram na semana passada, na Alemanha, a ajuda de 60 bilhões de dólares para combater a Aids e outras doenças na África - como a malária e a tuberculose - em frase repetida continuamente por toda a mídia brasileira. Em todo o noticiário da grande imprensa, com o tradicional oficialismo governamental predominando, foram notáveis as falhas provocadas pela ausência da crítica ao discurso das potências mundiais.

Apesar das promessas, organizações da sociedade civil nos países desenvolvidos fazem notar que o grupo ofereceu poucos fundos verdadeiramente novos para as populações mais pobres, e mesmo os novos ainda são promessas. Para se ter uma idéia, os países ricos descumpriram a promessa de duplicar a ajuda ao desenvolvimento, feita na cúpula do G-8 de 2005, em Gleneagles, na Escócia.

Além disso, a declaração do G-8 não estipula um cronograma. Apenas afirma que o dinheiro "será enviado ao longo dos próximos anos". Também não identifica os países individualmente ou quanto desta quantia já havia sido prometido. "Estou indignado. Acho que essa é uma linguagem deliberada de ofuscamento. Isso é algo feito intencionalmente para nos enganar", resume o roqueiro Bono Vox, que acompanha de perto o problema e freqüentemente alerta para a demagogia promovida pelos países do G-8.

"Não podemos ficar iludidos com as cifras astronômicas. Os 60 bilhões de dólares significam no máximo um aumento de 3 bilhões de dólares na ajuda prometida até 2010", alertou um membro da ONG inglesa Oxfam. "Os líderes reunidos na Alemanha não têm credibilidade para fazer tal anúncio, porque falharam nas promessas feitas anteriormente. Em vez de entregar o que prometeram, tentaram produzir o maior número de manchetes jornalísticas possíveis com o menor aumento possível de ajuda humanitária", concluiu. No Brasil, conseguiram quase uma unanimidade, difundindo uma informação quase que totalmente equivocada, aceita com enorme passividade pela imprensa de grande circulação.

Formato da ajuda não está claro


Outra questão central é que algumas das mais importantes decisões relacionadas ao combate à Aids no mundo são tomadas em eventos como Assembléia Mundial da Organização Mundial da Saúde (OMS). Por coincidência, a 60ª edição da Assembléia ocorreu de 14 a 23 de maio, em Genebra, e os generosos diplomatas norte-americanos rejeitaram proposta dos países menos desenvolvidos, liderados pelo Brasil, para que a OMS preste assistência técnica e normativa às nações que desejem recorrer a medidas que amplie o acesso a medicamentos, como o licenciamento compulsório. A resolução, que teve forte rejeição dos países do G-8, também abre espaço para a criação de um sistema de pesquisa e desenvolvimento na saúde que diferencie o preço das invenções do preço dos produtos.

A organização 'Médicos Sem Fronteiras' (MSF) alerta que existem disponíveis medicamentos muito mais baratos. Os ativistas da MSF lembram que em Camarões, por exemplo, onde a terapia com anti-retrovirais é subsidiada pelo governo, o custo mensal do tratamento com Triomune, medicamento genérico do tipo 3 em 1 que reúne num único comprimido três anti-retrovirais (chamadas combinações de doses fixas), é de 20 dólares por paciente - 15 dólares a menos que a mesma terapia tripla com medicamentos de marca, adquiridos separadamente. Ou seja, com o mesmo volume de recursos pode-se tratar um número até 85% maior de pacientes.

Além disso, há uma diferença significativa entre os dois tipos de tratamentos. O tratamento de primeira escolha (ou primeira linha), normalmente empregado de acordo com o tratamento preconizado pelo Ministério da Saúde para cada doença, é muito mais barato. A resistência aos anti-retrovirais de primeira escolha é inevitável tanto em países ricos quanto em países pobres. Quando os medicamentos de primeira escolha não fazem mais efeito, devido à resistência, ou quando o paciente não pode usá-los devido à gravidez, idade ou intolerância, passa-se ao tratamento de segunda escolha, com medicamentos freqüentemente muito mais caros.

Com os tratamentos de segunda escolha custando até cinco mil dólares por paciente/ano nos países em desenvolvimento - 15 vezes mais que o custo dos tratamentos de primeira escolha - eles simplesmente não estarão acessíveis. Caso esta situação não mude, constata a MSF, o custo por paciente vai permanecer alto e as pessoas vão morrer quando não mais responderem ao tratamento oferecido com o Triomune.

Este tipo de briga não é alvo de investigação da imprensa. Muito menos a incoerência dos EUA, que efetivamente defendem abertamente os interesses das indústrias farmacêuticas nos fóruns do setor - um fato público, porém inacessível ao grande público.

Em Mali, lições sobre a"ajudahumanitária"
Outra questão que é pouco comentada na imprensa mundial é a "contribuição" dos países ricos por meio dos organismos financeiros internacionais, em grande parte formados por integrantes dos governos das super potências ou indicados por estas. Mali é um dos países onde a ajuda prometida (porém não cumprida) dos países ricos é alocada. Procurando fiscalizar a destinação do dinheiro prometido na Escócia, em 2005, membros da Oxfam e jornalistas do The Guardian visitaram a cidade de Intadeyni e conheceram uma das escolas que poderiam ser beneficiadas pela efetivação das promessas.

Mali, localizado no lado oeste do continente africano e que faz fronteira com a Argélia, sofre tanto com a pobreza quanto com a ingerência do Fundo Monetário Internacional (FMI). É um dos últimos colocados no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), medido pela ONU.

Os funcionários do FMI em Mali defendem o interesse dos investidores nas jazidas de ouro descobertas no final dos anos 90, no sul do País, entre outros recursos, além de promoverem o ajuste fiscal - nada condizente com as imensas necessidades da população.

Além disso, o FMI negociou por muitos anos com governos autoritários e genocidas, como ocorreu em 1992, por exemplo. Depois de anos de enfrentamentos armados entre o governo e os rebeldes tuaregues do norte do País, a organização não-governamental inglesa Anistia Internacional concluiu em relatório que houve prisões arbitrárias de vários representantes da oposição e a decretação de 14 penas de morte, mudadas posteriormente para penas de prisão perpétua. A Anistia também afirmou à época que o Exército do governo teria executado sem julgamento várias dezenas de membros da comunidade tuaregue.

Apoio ao autoritarismo


O ano de 1993 foi marcado pela ocupação da rádio estatal por estudantes (março) e importantes manifestações contra a política econômica (abril). Com o apoio do FMI e de outros organismos financeiros internacionais, no entanto, o governo consolidou arbitrariamente a liberalização econômica em prol dos interesses estrangeiros. O então presidente Alpha Oumar Konaré promoveu uma reforma fiscal, reduziu os gastos públicos, privatizou empresas estatais e eliminou o controle de preços.

Enquanto negociava com rebeldes, o governo continuava a reprimir a população e, por isso, não sofreu nenhuma sanção internacional. Pelo contrário: em 1995 o FMI considerou "positivos" os resultados econômicos de Mali e aprovou o "terceiro plano de ajuste estrutural anual". Em um dos mais violentos incidentes, nas cidades de Gao e Beher em 1994, a repressão política ocasionou a morte de cerca de 200 pessoas, entre as quais muitas mulheres e crianças.

Corrupção e ineficiência administrativa é o resultado de ingerências freqüentes dos organismos financeiros internacionais na economia e na política de Mali. A "ajuda humanitária" dos países ricos, como costuma afirmar o analista político Noam Chomsky, poderia começar pela não interferência nos países pobres em questões de soberania nacional e, quem sabe, na efetivação dos recursos em projetos educacionais como os de Intadeyni.

Enquanto isso, o Jornal da Globo, último telejornal da TV Globo, faz reportagem nesta sexta (8) sobre "formas mais eficientes" de enfrentar os protestos no G-8. Afirma que na Alemanha e nos EUA, por exemplo, as "armas não-letais conseguiram diminuir em 70% o número de mortes em protestos". Como quem não quer nada, faz uma ponte inusitada e - na mesma matéria - fala em "combate à criminalidade em centros urbanos", ouvindo um membro do Batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro.

O policial, seguindo a linha de "raciocínio", diz: "Podemos usar as duas. A arma não-letal espanta as pessoas no campo de confronto". O Jornal da Globo finaliza: "A expectativa de quem já utiliza as modernas armas não-letais é de que comecem a ser utilizadas com mais freqüência". Os ativistas, taxados de criminosos, são agora perseguidos pelos cães de guarda dos países ricos - cada vez mais constituídos como assessores de imprensa do poder constituído.

Visite também:

Oxfam e o G-8
www.oxfam.co.uk/what_you_can_do/campaign/g8/index.htm

Reportagem do The Guardian/Oxfam sobre Mali
www.guardian.co.uk/educatingafrica/0,,2096129,00.html

Original desta matéria em http://www.fazendomedia.com/novas/internacional100607.htm

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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