Mr. Boicott e a liberdade de expressão

Mr. Boicott e a liberdade de expressão

Em recentes eleições legislativas de algumas províncias no Canadá, como Quebec, o índice de comparecimento às urnas girou em torno dos nove por cento dos eleitores aptos. Para governar a Califórnia, o estado mais rico dos Estados Unidos, foi eleito o midático Schwaznegger, com pouco mais de doze por cento dos votos válidos.


Por Sidnei Liberal

Em recentes eleições legislativas de algumas províncias no Canadá, como Quebec, o índice de comparecimento às urnas girou em torno dos nove por cento dos eleitores aptos. Para governar a Califórnia, o estado mais rico dos Estados Unidos, foi eleito o midático Schwaznegger, com pouco mais de doze por cento dos votos válidos. Na mesma época, as eleições legislativas dos EUA – mesmo circulando muitos dólares, um forte costume por lá – registraram cerca de vinte e cinco por cento de votantes. Há um fato no mínimo curioso: com tão pouco interesse, ninguém ousa questionar a legitimidade do processo representativo daquele que a ingenuidade política e a subserviência global denominam de “o maior país democrata do mundo”.

Essas referências aos números eleitorais do Canadá, da Califórnia e do congresso estadunidense enfraquecem alegações contra a legitimidade eleitoral de Chávez. E quando lhe acusam de querer perpetuar-se no poder, esquecem-se de que na França, a pátria da Democracia, o mesmo presidente pode ser reeleito quantas vezes o eleitor quiser. Em outra frente, os interesses de classe da elite rotulam o presidente venezuelano de “populista”. Detestam políticas de interesse da área social, popular, que costumam chamar de “gastos do governo”. As políticas que lhes interessam são chamadas de “investimentos”. E acusam Chávez de se preparar para a guerra, pelo fato de comprar aviões russos, próprios para vigilância de fronteiras. São aviões do mesmo tipo que vendemos aos EUA e que Bush nos proibiu de vender aos venezuelanos. Pesos e medidas da arbitrária pirotecnia oposicionista.

Em 2002, em vista de sucessivas derrotas eleitorais e prenúncio de mais uma vitória chavista, a ressentida oposição concebeu o boicote. Mudança de estratégia para tentar esvaziar a eleição e deslegitimar o processo eleitoral, possibilitando uma futura degola presidencial. Tão segura estava da eficácia da nova estratégia que não apresentou candidatos legislativos. Campanha intensa com amplo apoio da totalidade da mídia local e, uma vez mais, a forte presença de dólares gringos. Grande repercussão na mídia exterior com destacada participação de Globo e Veja. Ao final, a grande decepção: trinta e três por cento votaram, o dobro em relação ao pleito anterior. Consagração para Chávez. Desmoralização para Mr. Boicott mais de um século após sua morte.

Com base em resultados parciais da apuração e em informações da oposição, a mídia internacional, há muito incomodada com Chávez, tratou de inverter os números e decretar o que considerava uma derrota do seu perigoso inimigo: “ sessenta e sete por cento de abstenção”, alardeou mundo afora. Porém, não informou: primeiro, a tradição venezuelana de pouco comparecimento às urnas; segundo, o derrame de dólares estadunidenses e, terceiro, as invasões de todas as redes privadas de TV aos lares colombianos na batalha do boicote. Foi, no entanto, a maior participação do eleitorado da história recente da Venezuela. Presentes, os observadores da União Européia e da OEA declararam o processo eleitoral legítimo e pacífico.

A mídia é responsável pela desinformação do que acontece na Venezuela de hoje, por sua íntima relação com a elite que há muito se apoderou do país. Agora, incomodada pela perda de poder, pelo não alinhamento automático do país a Washington e pelo compromisso do governo com políticas de interesse popular, cuida de satanizar o presidente Chávez. Lidera o movimento a RCTV, que obteve sua concessão há 20 anos em troca da demissão do jornalista Luiz Herrera, chefe de redação do jornal do mesmo grupo, El Nacional, oposicionista ao governo da época. Tenta, agora, alegando desrespeito à liberdade de expressão, mobilizar a opinião internacional contra a determinação do presidente Chávez de não lhe renovar a concessão.

Liberdade de expressão? Nada se lê na mídia sobre os verdadeiros motivos da negação oficial à renovação daquela concessão. Por outro lado, não é necessário dizer isso ao cidadão comum da Venezuela, pois ele lê a imprensa local ou assiste os canais de TV. Percebe que todos dizem o que irresponsavelmente gostam e querem dizer e abertamente ofendem as instituições democráticas e o poder legitimamente constituído. Aliás, essa prática parece estar contaminando a mídia brasileira (A relação ideológica e comercial da mídia de lá com a de cá é outra boa história). Sabem os venezuelanos que foram as quatro redes privadas de televisão, sob a liderança justamente da RCTV, que urdiram a estratégia da tentativa de golpe contra o presidente Chávez em abril de 2002.

Liberdade de expressão? Aquela ação contra Chávez ficou caracterizada como uma criminosa violação explícita ao estado de direito democrático. Como testemunhas, os documentaristas da TV irlandesa, Kim Bartley e Donnacha O’ Brian, que registraram em fita o crime. Clique aqui e assista. Sobre o mesmo fato, Naomi Klein, do jornal estadunidense The Nation , escreveuque nos dias que precederam o golpe de abril, “a Venevisión, a RCTV (a mesma que quer do governo a renovação de concessão), a Globovisión e a Televen trocaram a programação regular por insistentes discursos contra o governo Chávez, interrompidos apenas por comerciais convocando a população a ocupar as ruas”.

E a população, atendendo a uma outra convocação, a da sua consciência cívica e do seu zelo democrático, literalmente ocupou as ruas. Enfrentou a mídia e os militares golpistas, trazendo de volta o seu presidente. Diferentemente do suspeito conceito de liberdade de imprensa e interesse empresarial da mídia, o povo nas ruas, Lei em punho, exibiu a mais avançada forma de manifestação da liberdade de expressão.

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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