Os novos ventos na América Latina

ALTAMIRO BORGES

Num cenário em mutação, em que o império se fragiliza e as idéias neoliberais perdem encanto, avançam as lutas dos povos no mundo todo. A heróica resistência iraquiana, fincada numa região rica em petróleo, é hoje o calcanhar de Aquiles dos EUA. Fruto da violência imperial, ela conflagrou toda a região asiática. Outro fenômeno animador é o crescente engajamento da juventude na luta por “outro mundo é possível”.

Este movimento de rebeldia, que ganhou maior organicidade a partir dos Fóruns Sociais Mundiais (FSM) de Porto Alegre, é hoje uma pedra no sapato das corporações empresariais e das potencias capitalistas. E também surgem sinais positivos de uma retomada das lutas sindicais, com as recentes greves gerais na França, Portugal, Grécia e Itália contra as regressões na previdência social e nos direitos trabalhistas.

Um continente em transe

O destaque desta resistência, porém, se dá na América Latina, o que nem sempre é notado pelos lutadores sociais do Brasil – talvez porque ainda não cultivemos a nossa identidade latino-americana. Nos últimos anos, o continente passou por bruscas alterações no tabuleiro político. Para o cientista político José Luis Fiori, esta mudança é inédita na história da região. De laboratório do neoliberalismo, ela se converteu na vanguarda da luta contra os seus efeitos destrutivos.

A resistência avança num ritmo acelerado, utilizando diversas formas de luta. De maneira residual, ainda persistem experiências de guerrilha – com realce para as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farcs), que dominam 40% do território. Outra forma de luta, com marcas insurrecionais, é a dos levantes populares, que já depuseram onze presidentes na região.

A maior forma de expressão desta rebeldia, entretanto, se dá através das urnas, com a insatisfação popular resultando na derrota dos candidatos comprometidos com as idéias neoliberais. Hugo Chávez, um militar rebelde, inaugurou a série de vitórias à esquerda no final de 1998; na seqüência foram eleitos um operário e sindicalista no Brasil, Lula; um líder camponês e indígena na Bolívia, Evo Morales; um ex-guerrilheiro na Nicarágua, Daniel Ortega; um economista heterodoxo no Equador, Rafael Correa; além de René Preval no Haiti, Nestor e Cristina Kirchner na Argentina, Tabaré Vázquez no Uruguai e Michele Bachelet no Chile. Em breve, um teólogo da libertação, Fernando Lugo, poderá se tornar presidente do Paraguai.

Ritmos e processos diferenciados

Cada país destes, com suas particularidades, realiza experiências distintas no enfrentamento à grave crise que devastou a região nas décadas sombrias do neoliberalismo. Alguns governantes adotam posturas mais ousadas, em especial nas nações andinas – Venezuela, Bolívia e Equador.

Outros trilham caminhos mais moderados, evitando confrontos, como no Brasil, Uruguai e Chile. Em comum, todos os novos governos, inclusive por temerem a pressão social, tentam se distanciar dos velhos dogmas neoliberais, paralisando as privatizações em áreas estratégicas da economia, voltando a reforçar o papel indutor do Estado, investindo em programas sociais e reduzindo o ímpeto das medidas de precarização trabalhista.

Como afirmou Chávez no Fórum Social Mundial em Caracas, em 2006, a conduta dos novos governantes reflete a correlação de forças de cada país, não adota um modelo único e segue ritmos diferenciados, mas todos buscam superar as mazelas do neoliberalismo. Para não frustrar as expectativas populares e evitar o retorno do bloco liberal-conservador, as novas forças nos governos necessitam avançar nas mudanças. A vida empurra para maior ousadia e radicalização; do contrário, a revanche da história pode ser brutal. O caso mais exemplar é o da Venezuela, onde o processo bolivariano adquire contornos revolucionários e coloca como desafio a construção do “socialismo do século XXI”.

Ele desafia a arrogância imperialista e ataca a ditadura midiática ao não renovar a concessão da golpista RCTV. Mesmo derrotado “por ahora” no referendo, o seu projeto de reforma constitucional propunha a redução da jornada de trabalho para 36 horas semanais, a reforma agrária antilatifundiária e a inclusão na previdência do trabalhador informal.

Já na Bolívia, Evo Morales nacionaliza campos e refinarias de petróleo e gás. A corajosa iniciativa é um marco na história do país, o mais pobre da América do Sul, apesar deste possuir reservas estimadas em 1,5 trilhão de metros cúbicos de gás, de extrair 40 mil barris de petróleo por dia e de produzir 150 milhões de pés cúbicos de gás por ano. A partir deste gesto soberano, parte da riqueza natural agora é destinada aos programas sociais de combate à fome, à eletrificação da zona rural e à alfabetização.

Já Rafael Correa, no Equador, afirma que não pagará a dívida externa com a fome do povo, vence com folga a eleição para a Constituinte e reafirma sua convicção socialista. Nos outros países, inclusive no Brasil, o processo de mudança é mais contido, o que gera insatisfação nos movimentos sociais e atiça os setores conservadores.

Esforço da integração regional

Apesar destas diferenças de ritmos e concepções, outro fator unifica estas várias experiências: o esforço da integração latino-americana. Cada governante, por razões pragmáticas ou por convicção, já percebeu que isolado nenhum país terá como enfrentar o poder do “império do mal”, que historicamente sempre tratou o continente como “quintal dos EUA”. Com esta compreensão avançada, importantes passos têm sido dados no rumo da constituição de um bloco regional contra-hegemônico.

Além de fortalecer o Mercosul, que agora suplanta a fase da união comercial e adquire contornos políticos – inclusive com a eleição do seu parlamento –, avança o projeto da Unasul, que integrará toda a América do Sul, e ganha solidez a proposta da construção da Alba (Alternativa Bolivariana das Américas). Passos também são dados no sentido da maior sinergia no setor energético, como no gasoduto que beneficiará toda região, na criação do Banco Sul, como instrumento de fomento ao desenvolvimento regional, e mesmo no reforço da TeleSul, como contraponto à ofensiva ideológica dos EUA através de sua mídia.

Nunca antes na história a América Latina avançou tanto na concretização do antigo sonho do libertador Simon Bolívar da construção da “Pátria Grande” – para o desespero do imperialismo ianque e europeu. É certo que a integração não é um processo fácil. Há muitas assimetrias entre os países da região. Há ainda divergências políticas, como diante da ocupação do Haiti por tropas da ONU, sob comando do Brasil. Já a nacionalização do petróleo na Bolívia atiçou a ira da elite brasileira, que exigiu o rompimento de relações diplomáticas e o envio de tropas à fronteira. Apesar destas dificuldades, os novos governantes sabem que a integração é vital – do contrário será a desintegração da região para a alegria do “império do mal”.

Reação do império e das oligarquias

Mas estes avanços, que confirmam o cenário mais favorável à luta dos povos, não ocorrem impunemente. Os EUA têm poderosos interesses nesta rica e estratégica região e não ficam parados frente às mudanças. O império continua atuando nos campos econômico-comercial, político-diplomático, militar e ideológico.

Derrotado na proposta neocolonial da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), tenta seduzir e atrair países via tratados bilaterais de comércio (TLCs) para isolar as nações rebeldes. Mesmo desmoralizado, ainda investe na desestabilização dos governos da região – como na tentativa frustrada de golpe contra o governo venezuelano e, agora, no incentivo às iniciativas separatistas da burguesia na Bolívia. No terreno militar, ele mantém mais de 850 “consultores” no governo do narcoterrorista Álvaro Uribe, na Colômbia, e monta mais uma base no Paraguai. Já na esfera ideológica, os EUA detêm o controle de mais de 85% das informações que circulam na região e contam com o apoio da mídia venal e servil destes países.

As oligarquias locais, que há séculos controlam o poder e saqueiam as riquezas num consórcio subalterno com os grupos imperialistas, também procuram sair da defensiva. No referendo da reforma constitucional na Venezuela, elas superaram sua divisão e, com o forte apoio dos EUA, conquistaram importante vitória política – após sofrerem dez derrotas eleitorais consecutivas. Na Bolívia, a elite racista organiza grupos de mercenários, promove o desabastecimento do mercado e prega o separatismo, criando um clima de guerra civil para sabotar a nova Constituição.

No Equador, investe contra a Constituinte instalada em novembro e também prega a divisão do país. Mesmo nas experiências mais moderadas, ela tenta criar obstáculos às tímidas mudanças. A recente derrota da CPMF, o “imposto do cheque” usado para financiar os programas sociais e a área da saúde, comprova o ódio da burguesia à “gastança pública” do governo Lula.

Urgência do internacionalismo ativo

Todas estas investidas do imperialismo e das oligarquias associadas indicam que, apesar dos avanços, não está ainda consolidado o projeto de mudanças na região – seja na perspectiva socialista ou mesmo na via moderada. Qualquer deslize tático pode ser fatal para os que defendem a libertação da América Latina. Na prática, os setores populares e democráticos do continente ainda se encontram numa fase de resistência, de acumulação de forças, na qual é fundamental ousadia, inteligência política e forte unidade.

O “império do mal” e as elites abastadas ainda são poderosos e as idéias neoliberais não foram totalmente derrotadas. O projeto de superação do neoliberalismo e de aproximação do objetivo estratégico socialista exige que os trabalhadores sejam protagonistas das mudanças que alterem as estruturas injustas do sistema capitalista. Neste sentido, a ação internacionalista dos trabalhadores é uma exigência ainda mais atual.

Entre outros desafios, é urgente denunciar os planos de dominação e exploração das nações imperialistas, em especial dos EUA. É necessário se solidarizar com todos os povos em luta por soberania e justiça – o que hoje se materializa no apoio ao heróico povo cubano, que resiste há 50 anos de criminoso bloqueio econômico, e na solidariedade ativa às experiências antiimperialistas da Venezuela, Bolívia e Equador. A bandeira da paz, contra as guerras imperialistas, adquire cada vez maior centralidade. É preciso também reforçar todas as iniciativas que marchem no sentido da integração latino-americana, como única forma de se contrapor aos desígnios do “império do mal”.

Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e autor do livro “Venezuela: originalidade e ousadia” (Editora Anita Garibaldi, 3ª edição).

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