Portugal: A censura do chefe da oposição

A novela da atribulada vida académica do primeiro-ministro está a ser secundada por um debate despoletado pela acusação de falha de carácter que lhe lançou o chefe da oposição. E se foi preciso os jornais insistirem na tecla da vida académica de Sócrates para que o líder do PSD levantasse a questão de carácter dos políticos – como o tinha feito anteriormente a respeito das eleições autárquicas, para dentro do seu partido – talvez isso venha a valer a pena, isto é, possa ter consequências práticas na política portuguesa.

Ouvi dizer na televisão que a questão do carácter dos políticos não deveria estar a escrutínio público ou político. O que me parece inaceitável em democracia é que os dois argumentos (a censura do debate e a censura do político) sejam alegados conjuntamente. Das duas uma: o debate está na praça e quem não gosta abstém-se; se não se abstêm, que sentido faz estar no debate para dizer que o debate não deve existir, sem explicar porquê?

Este problema tem a ver, nitidamente, com a prática dos órgãos de comunicação social de destacarem políticos para o seu serviço (como acontece com outras empresas do campo financeiro, energético, etc.), para animarem fora de comentários políticos. Como tem a ver com a qualidade da democracia portuguesa, autista e cada vez mais isolada da vida a que falta cidadania. Quando quem comenta não o faz desinteressadamente, produz-se uma enorme confusão entre a tentativa de fazer pedagogia – fazer opinião para povos livres e democráticos, bem formados – e a tentativa de controlo da opinião pública e publicada. Esta rede de conspirações entre partidos e meios de comunicação social faz e desfaz primeiros-ministros e governos, gerando a instabilidade política que emerge da falsa estabilidade produzida nas urnas pela mesma cumplicidade da comunicação social e os políticos, denunciada entre outros por Santana Lopes. [2] Vivemos em Portugal a instabilidade política estabilizada e pouco democrática.

Voltámos à noção de que o povo português não está preparado para assistir e participar em certas discussões, como as do carácter dos políticos, que por isso devem ser censuradas? Ou o que é democrático é organizar a discussão política de forma racional, ampla, participada e inteligível, em liberdade? A promiscuidade entre poder político e direcção dos media, que alegadamente deveria ser combatida pela privatização dos meios de comunicação, deve ser combatida ou auto-regulada?

Pessoalmente entendo a censura da censura de carácter como uma atitude política que pode até ser racional. Mas isso mesmo, a sua racionalidade, precisa de ser melhor debatida, entre comentadores independentes dos partidos/media de preferência, independentemente das suas preferências partidárias.

É racional evitar a demagogia e é fundamental combater o ódio na política. Mas se assim é, como se dá o caso dos cartazes no Marquês? Como fica de pé a mensagem de ódio – entretanto combatida pela polícia judiciária – e é apeada a mensagem humorística? Porque é que os tribunais não estão expressamente mandatados, nestes casos e noutros de emissão de mensagens sociais de ódio, para intervirem preventiva e pedagogicamente? Porque é que os cidadãos justamente indignados e disponíveis para agir civicamente contra o ódio estão democraticamente desarmados, à mercê da disponibilidade dos partidos políticos ou dos dirigentes das instituições – Câmaras Municipais, Procurador Geral da República – para lidarem com a serpente ainda no ovo? É que se os tribunais tivessem poderes para acolher de forma expedita petições contra o ódio e em defesa da democracia, também no caso das conspirações contra o primeiro-ministro certamente teria havido uma ou mais iniciativas de cidadãos a argumentar o inverso do que acredito: não é legítimo aos media levantar o problema de carácter do primeiro-ministro a propósito da vida académica, pelo menos enquanto este não sair de funções. Se um tribunal pudesse pronunciar-se sobre esta questão, qualquer decisão que tivesse tomado, desde que fundamentada na lei e na constituição – que é democrática – seria um acto político útil e de primeira relevância. A falta de capacidade dos sistema judicial em intervir politicamente lá onde faz falta à democracia, como é manifestamente o caso, por desconfiança e/ou inépcia dos partidos, sequiosos de poder, de todo o poder, faz com que Portugal esteja nesta situação ridícula na véspera de uma presidência da União Europeia, desnecessária e antecipadamente frouxa e desacreditada, qualquer que venha a ser a evolução dos acontecimentos.

O que parece vir dar razão aos que entendem que é melhor acabar com a liberdade para que os políticos possam, ainda mais tranquilamente, prosseguir os seus negócios que faz deste país ao mesmo tempo o mais pobre e o mais desigual e o mais economicamente comprometido da União. Mas de facto é o inverso que se passa: os partidos devem ser capazes de seguir o exemplo dos militares de Abril e, democraticamente, abrir mão dos seus poderes exagerados e imorais e entregá-los ao povo, nomeadamente formando um sistema de justiça que possa ser uma instância de recurso às fraquezas de carácter dos responsáveis políticos – que se manifestou em José Sócrates sob a soberba de insistir, sabe-se lá porquê, em assegurar ao mundo (ou a si mesmo?) o valor das suas credenciais académicas, manifestamente tão miseráveis como os indicadores de literacia do país.

O que falta ao povo português é liberdade. Falta-lhe um sistema judiciário que defenda, como lhe cumpre mas não é capaz, a liberdade de todos e de cada um, incluindo o governo e o seu primeiro-ministro. Isto porque os partidos portugueses (todos, incluindo os que estão fora do arco do poder) se entendem como sorvedouros de poderes públicos e privados à custa da inibição de órgãos de soberania deficitários, como é manifestamente a judicatura e como passou a ser também, a meio do mandato, o governo.

É claro que a felicidade não está à nossa esquina. A persistente e cada vez mais profunda crise da justiça, que o Presidente da República significativa e surpreendentemente resolveu desvalorizar, deixou os tribunais a pender mais ainda para a tese da ditadura e do ódio, como o demonstram os extraordinários acórdãos legitimadores da violência doméstica e da censura jornalística em caso de eventual ofensa à honra de entidades poderosas com a verdade (outra vez a verdade no caminho dos poderosos que pretendem manter-se irresponsáveis). A falta de preparação e de auto-responsabilização das magistraturas portuguesas e a recorrente chocante irracionalidade do sistema judicial e das decisões que profere, possível pela manutenção persistente de uma situação que atravessa e mina toda a II República, não se ultrapassa de um dia para o outro, nem se ultrapassa subtraindo competências a este pilar da democracia política. Nem é ultrapassada por políticos que desvalorizam a moral e a ética, como gostam de fazer os economistas mas não devem fazer os políticos.

Voltando à vaca fria, como é possível que, no mesmo governo, um ministro despeça um assessor por ter usado um fax do seu gabinete para enviar uma mensagem pessoal para a comunicação social, por alegada incompatibilidade de mistura de funções públicas e actividades privadas, e outro ministro alegar comportamento exemplar do primeiro-ministro que usou timbres e fax públicos para trocar correspondência com um influente professor de uma universidade durante a realização do seu curso superior? Como é possível quem apoie o primeiro-ministro vir censurar a censura de carácter do seu primeiro, sem se ter indignado – ainda que menos intensamente – com a atitude do ministro que despediu o assessor? Há aqui, de facto, questões de equidade e balanços morais e éticos que são relevantes de ver esclarecidos: haverá duas classes de cidadãos em Portugal? Os assessores cujo comportamento ético escape ao controlo dos ministros podem tornar-se primeiros-ministros impolutos? Os últimos ficam autorizados em partilhar livremente e a seu bel-prazer os recursos naturais e institucionais do país e os primeiros devem ser mantidos envergonhados e condenados, excluídos do debate político, reduzidos a fiéis funcionários? Não é por isso que alguns concidadãos perguntam, cada vez mais abertamente, que no tempo do Salazar, como agora, onde está a diferença? Não será melhor para a democracia afirmar, confirmar e defender essa diferença? Não será de dar prioridade ao combate ao medo, à auto-censura e à desmobilização de operadores judiciários, jornalistas e cidadãos perante o poder desmesurado da partidarite portuguesa?

Prof. Dr. A P Dores

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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