Corrupção, Pacto da Justiça e Estado de Direito

Corrupção, corruptela, poder, indiferença e medo são os temas destas linhas, provocadas pelo debate sobre o significado (misterioso) do pacto da justiça e por um pequeno grande evento na minha vida pessoal. Comecemos por aqui:

Ao fim de oito anos em tribunais, recebi decisão transitada em julgado que favorece o meu direito de propriedade sobre um apartamento, num caso simples de alegação de direito de preferência. A conservatória incumpre, recusando o registo de propriedade, alegando “dúvidas”. Dúvidas da conservadora. A mesma que se disponibiliza a ajudar-me a compreender a fragilidade da minha posição legal no seu gabinete.

Não suspeitei da senhora. Simplesmente achei inacreditável a situação. Só pode ser fruto da maior das incompetências que haja a possibilidade de as dúvidas da conservadora poderem ser levantadas através de uma conversa privada com uma das partes interessadas. Irritado, queixei-me a todas as instâncias que me lembrei. Descobri que o livro de reclamações é da responsabilidade da conservadora de quem eu queria fazer queixa. E que as outras três instâncias para que reclamei evitaram tocar no assunto, demitindo-se de o fazer num caso, enviando o assunto para a Secretaria de Estado competente noutro, dando razão à conservadora no caso da Direcção Geral da tutela.

É preciso ser poderoso para manobrar títulos de propriedade em Portugal? Parece que sim. Pelo menos tem que estar preparado para tirar dúvidas aos conservadores. Cujo trabalho não tem evitado a subversão da legislação sobre planos municipais, reservas territoriais ou outros instrumentos de ordenamento do território. Quer dizer: quem tenha títulos de propriedade beneficiou da sorte da administração não alegar “dúvidas”, que por incompetência ou má-fé qualquer conservador poderá alegar a qualquer altura, certo de que contará com a cobertura corporativa dos colegas e da tutela, independentemente do que os tribunais possam decidir? Esta hipótese é arrepiante. Mas é plausível. Explica os factos ocorridos.

Compagina-se bem com declarações de vários quadrantes institucionais de que falta em Portugal um Estado de Direito, sem que os órgãos de soberania do Estado se sintam obrigados a responder à letra a tal alegação, com excepção do Presidente Sampaio, quando disse que a Lei em Portugal tinha apenas o estatuto de sugestão. Não se tratou de ironia: em Portugal a administração pode ter prioridade sobre as decisões dos órgãos de soberania! Ou como diz alguma esquerda: é preciso estripar o que resta do fascismo. Ou como diz alguma direita: é preciso combater o estalinismo. Ou como dizem os liberais que têm convicções: é indispensável construir um Estado de Direito, para que a economia possa subsistir forte e auto-determinada.

O pacto da justiça recém anunciado tratará desta profunda enfermidade anti-liberal do Estado em Portugal? Não tem condições políticas para tal, infelizmente.

O pilar judicial do Estado foi palco, nos últimos anos, de conspirações cruzadas entre partidos e personagens montados em partidos. O que revelou a fragilidade profissional, ética e funcional dos órgãos de justiça portugueses e gerou um imbróglio a que ninguém vê ponta por onde pegar, a começar pelos agentes judiciais que, reunidos em Congresso faz uns meses, não conseguiram auto-regular-se, apesar da situação ameaçadora que vivem. E por isso se agudiza.

A última campanha para as presidências mostrou a discórdia (todos os partidos foram a jogo sós, preferencialmente a mal acompanhados), o descontentamento popular (traduzido na presença recorde de candidatos espontâneos com propósitos políticos, e não apenas folclóricos) e sobretudo a necessidade de ver atalhada a corrupção, a que todos os candidatos foram obrigados a fazer referências mais ou menos incisivas e directas. Por isso, é notícia o facto de a corrupção ficar de fora do pacto da justiça. O que, todavia, não pode ser surpresa.

Fui dos que senti que o povo português estava perante a opção de “evolução na continuidade” que o duelo Cavaco-Soares garantiria – e que tanto agradou à comunicação social dominante – ou de inversão de rota ética na condução dos destinos da Nação, que ameaçou poder vir a ser sufragada (independentemente do candidato mais bem colocado vir a ter, ou não, pernas e coração para a caminhada). Ora, após a eleição do novo presidente, que mais se poderia esperar, com realismo, que não fosse o fechamento defensivo e em copas dos interesses instalados, que sabem como tirar as dúvidas da administração?

Haverá alguma coisa a fazer? Sobre o meu direito de propriedade, vou falar com a minha advogada para a semana. Sobre os direitos dos portugueses, o panorama parece-me mais sombrio ainda, já que é necessário reconhecer a luta judicial dos raros competentes que se dão ao trabalho de darem o corpo ao manifesto pela sua interpretação do que deve ser (arriscando e sofrendo perseguições amedrontadoras para os restantes profissionais-cidadãos). É indispensável revolver de cima a baixo toda a formação académica de juristas, incluindo a organização de acções de reciclagem e actualização com vista a pôr em vigor, tão depressa quanto possível, o respeito pelos princípios gerais do direito, a começar pelo respeito pela Lei, pela dignidade dos profissionais e dos utentes dos tribunais. É preciso fazer acompanhar estes movimentos políticos não apenas de legislação e recursos adequados (poucos mas bons!) mas também estimular no povo português o apoio a tal política de instalação do Estado de Direito em Portugal, através da pedagogia liberal no que se refere a direitos, através da luta contra a corrupção, que manifestamente incomoda muita gente.

A corrupção não é o problema. Ela sempre existiu e há-de existir. O problema é o modelo de desenvolvimento português fazer da promiscuidade político-económica, do desenrasca da cunha, dos gestores avaliados pelos resultados líquidos particulares (hoje bestiais, amanhã bestas, mas sempre dependente dos amigos que avali(z)am), da desigualdade social, na continuidade do que acontecia antes do 25 de Abril, critérios (i)morais de valorização social. Isso não tem que ser assim. Mas é.

Prof. Dr. António Pedro Dores

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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