Portugal: Cultura política para um país inculto

No país onde o Primeiro-ministro está a ser sujeito a escrutínio público por ter aparentemente usado meios do Estado para controlar a seu favor a comunicação social, o partido do governo, o maior partido da oposição, as organizações representativas das profissões jurídicas, o Procurador-geral da República, o próprio Presidente da República, todos se queixam publicamente de estarem a ser alvos de conspirações e de, por isso, organizarem contra-conspirações. Perante tais imbróglios, a justiça, através do Supremo Tribunal de Justiça, tenta pôr-se a recato da discussão em que a querem envolver, aparecendo à opinião pública como surda e muda mas de olhos bem abertos para não colidir com as jogadas políticas de bastidores.

A justiça é, aos olhos dos cidadãos portugueses, uma das instituições menos fiáveis e mais temíveis, não apenas pelos intermináveis anos de desgaste que impõe aos litigantes, pelas custas exageradas com que o governo pretende combater o aumento do número de processos, pelos custos dos honorários dos advogados, mas sobretudo pela incapacidade do cidadão em controlar a acção (frequentemente incompreensível ou mesmo danosa) dos respectivos advogados, porque as sentenças são, em si mesmas, frequentemente incompreensíveis e, em todo o caso, imprevisíveis por serem bastante independentes dos meios de prova apresentados.

Uma das características nacionais portuguesas bem estabelecida é a improbabilidade de algum responsável político assumir as suas responsabilidades políticas: a palavra de ordem é ninguém se demite dos cargos, por maiores e mais graves e credíveis que sejam os ataques públicos aos actos ou ao carácter dos titulares de cargos públicos. Em contraponto a esta falta de pudor no enlameamento da honra entre políticos, o cidadão comum é intimado pelos próprios tribunais para não reagir perante as injustiças mais básicas e danosas: como quase todos concordarão, “não vale a pena queixar-se”. Sobretudo quando se trata de abusos de poder.

A disfuncionalidade do sistema judicial português relativamente às necessidades de desenvolvimento – Portugal, apesar da modernização sofrida após a revolução dos Cravos em 1974, é um dos países mais desiguais da Europa e também um dos mais pobres – é reconhecida pelos próprios poderes públicos, nomeadamente quando se trata de avaliar as condições do investimento externo e se constata como os empresários temem ficar atolados em processos judiciais intermináveis e com resultados imprevisíveis. O que não significa que o sistema não seja funcional para outras finalidades, nomeadamente para novas formas de proteccionismo, a que a oposição chama os jornais, a publicidade e os empresários do regime. O sucesso empresarial na economia portuguesa fica assim condicionado por relações políticas suficientes para poder pagar a sua protecção.

As lutas em torno da transparência – dos rendimentos dos titulares de cargos públicos, das empreitadas públicas, das parcerias público-privadas, do acesso do Ministério das Finanças e da investigação criminal aos registos bancários, os sucessivos erros legislativos e as sucessivas mudanças de legislação, as políticas anti-corrupção, etc. – revelam aos olhos dos políticos mais críticos, incluindo no partido do poder, a cumplicidade entre os órgãos de soberania e as práticas de corrupção. O poder político prefere delegar a perseguição dos crimes de corrupção ao braço judicial, ao mesmo tempo que é acusado de desmantelar as polícias competentes encarregues de fazer esse trabalho, passando assim o odioso da situação para o já sobrecarregado sistema de justiça e lavando as mãos do que é o seu (im)próprio modo de financiamento. Poderes judiciais há que, com as dificuldades de meios mas com as liberdades próprias da arbitrariedade de julgamento e de imprensa, atacam o poder político, acusando-o através de fugas de informação para os jornais e de folhetins de descredibilização de personagens, nomeadamente o Primeiro-ministro, cuja resistência aos ataques de carácter é típica da política portuguesa – mesmo se danosa para o Estado e o país. Para a política oficial em Portugal, a estabilidade significa os mesmos nos lugares de poder [1] e, portanto, os mesmos canais de subordinação à ordem vigente, independentemente da liberdade, da igualdade e da sanidade dos mercados.

A noção de haver uma justiça para pobres e desvalidos e outra para ricos e poderosos está muito generalizada na população portuguesa, bem como a noção de que a política é para os doutores e, dentre esses, os especializados na política, cabendo ao vulgo olhá-la como quem comenta o futebol: tomando partido com emoção. Ou então desligando-se do assunto.

As contradições da situação reflectem-se na dependência e atraso económicos, na ausência de alternativas políticas que diminui a democracia, como se reflectem na discussão da liberdade de imprensa concebida como a liberdade dos donos dos meios de comunicação e eventualmente dos jornalistas, alheia à discussão da liberdade de expressão, a que mesmo os jornalistas e os meios de comunicação são insensíveis.

2010, Março 8

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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