Experiência Moçambique-Brasil em Jornalismo Pró-Direitos Humanos

Um estagiário moçambicano na REDH-RN traça alguns cenários pessoais, a pedido de Tecido Social

Por Josué Bila

Os responsáveis do jornal on-line Tecido Social pregaram-me uma partida. Boa, certamente. Pedem-me para, por escrito, falar do meu intercâmbio em direitos humanos no Brasil (2006), colocando também a experiência que tenho no jornalismo pró-direitos humanos em Moçambique (2003-2005).

Entendo ser difícil falar na primeira pessoa. Exige responsabilidade ética e humildade intelectual fortes, porque sem essas qualidades acabarei por cair na desgraça (do “louvor na própria boca é vitupério”). Seja como for, o convite está formulado e aceite. Tenho de me encher de acto de coragem para corresponder o mínimo do pedido.

Entretanto, inverterei a ordem do pedido. Penso ter esse direito e prerrogativa. Falarei primeiro da minha experiência em Moçambique, antes do intercâmbio em direitos humanos aqui no Brasil, por entender que a 2ª fase não teria lugar sem a 1ª.

Experiência em Moçambique

Em 2003, sou convidado pela Liga Moçambicana de Direitos Humanos para fazer parte de jornalistas da revista Democracia e Direitos Humanos. Nesse ano, era jornalista do jornal privado O País . A decisão de sair de um órgão para o outro foi difícil, mas viável, porque, desde que entrei no jornalismo, defendi (e ainda defendo) que os jornalistas devem especializar-se em uma área do seu interesse, fugindo, assim, de generalismos, que caracterizam a mídia não só do meu país, mas também de muitos quadrantes do mundo. Dentro dessa lógica e de outras condições de trabalho que me foram propostas, aceitei o desafio que estava em minhas mãos e em minha frente.

Dois anos depois, por razões institucionais e organizacionais da Democracia e Direitos Humanos e da própria Liga Moçambicana de Direitos Humanos, fui obrigado a deixar o órgão que ajudei a crescer, em termos técnicos, de conteúdos e de perspectivas de noticiar, articular e colocar os direitos humanos na reportagem. Claro, houve erros próprios de um processo novo em Moçambique. A pauta de direitos humanos, nas páginas dos nossos jornais, impressos e rádio-teledifundidos, ainda não faz parte da nossa cultura editorial. Apesar das dificuldades próprias de um processo midiático em emergência, dei um passo básico na compreensão dos direitos da pessoa humana.

Foi na Democracia e Direitos Humanos que comecei a ler, sistematicamente, grande parte do acervo internacional de direitos humanos das Nações Unidas, da União Africana, da União Européia, da Anistia Internacional, relatórios de direitos humanos sobre Moçambique, entre outros.

A leitura sistemática era tão necessária, porque em muitos dos artigos, notícias e reportagens a escrever tinha de colocar os artigos, pontos e alíneas violados, seja por actores estatais, interestatais ou outros. Esta experiência fez-me folhear e consultar a Constituição diariamente, uma vez que entre ela e os documentos supracitados há um acasalamento muito forte na primazia da dignidade humana.

Da DHnet e Tecido Social até o Brasil

Tal como disse, não pude continuar a trabalhar na revista Democracia e Direitos Humanos. Além disso, na paisagem midiática moçambicana não existe uma cultura editorial defensora de direitos humanos, que poderia satisfazer os meus interesses. Localmente, tinha, logo a priori, dois factores impeditivos. Lembrei-me de que sempre coloquei na minha agenda profissional tornar-me correspondente de um jornal/revista estrangeiro/a. Que “aprontei”? Sentei, por alguns dia, na sala de Internet do Sindicato Nacional de Jornalistas. Entrei no site de busca Google . Pedi – ele nunca nega o que dispõe – que me desse a lista de jornais e revistas do mundo lusófono, que abordassem os direitos humanos nas matérias que publicam. O Google deu-me muitas opções. Duas delas foram o portal DHnet - Rede Direitos Humanos e Cultura e o jornal Tecido Social. Li-os com atenção. Percebi, durante a minha leitura, que havia encontrado a minha alma jornalística em direitos humanos.

Depois de ler o site, entre setembro e outubro de 2005, escrevi para o editor-chefe do Tecido Social, manifestando o meu interesse em ser correspondente do DHnet ou do próprio jornal. Meu convite foi aceite.

Nos finais de novembro de 2005, o editor-chefe de Tecido Social passa-me, por e-mail, um site para que me candidatasse ao Intercâmbio Internacional de Direitos Humanos, coordenado pela Conectas Direitos Humanos , no qual estou, aqui no Brasil. Candidatei-me e consegui ganhar a bolsa de 8 meses. Neste intercâmbio, comigo estão duas moçambicanas, três angolanos e um timorense.

O intercâmbio se desdobra em dois momentos indissociáveis: acadêmico (teoria) e estágio (prática). Os primeiros quatro meses estão, fundamentalmente, dedicados às aulas, que se leccionam na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Particularmente, fiz três disciplinas na PUC-SP, a saber: Direitos Humanos, Relações Internacionais e Mídia e Poder. Os últimos quatro meses, em fase de terminarem, faço estágio em jornais. Fiz o meu primeiro estágio na revista Caros Amigos , em São Paulo, de julhoa agosto. Aliás, antes fi-lo no portal informativo da Conectas, ainda no período de aulas.Foram experiências ricas no alargamento do saber e inesquecíveis por saudosas pessoas com as quais trabalhei.

Porquê no Centro de Direitos Humanos e Memória Popular (CDHMP) do Rio Grande do Norte?

Neste momento, encontro-me no Centro de Direitos Humanos e Memória Popular (CDHMP) no Rio Grande do Norte, na cidade de Natal, para continuar com o meu estágio.

Escolhi e escalei Natal por quatro razões. Primeira, quero compreender como é que uma ong de direitos humanos pode actuar na defesa e promoção de tais direitos. Segunda, porque o CDHMP tem também a área de comunicação, tenho de me municiar de ferramentas locais em jornalismo pró-direitos humanos para Moçambique. Claro, não levarei experiências locais, de forma mecânica. Terceiro, o CDHMP vai, dentro de semanas, montar um site de direitos humanos para um jornal moçambicano, no qual trabalharei, à minha volta daqui a dois meses. Quatro, falar de minha experiência no jornalismo sobre direitos humanos, bem como da iniciativa da Associação de Jornalistas Pró-Direitos Humanos em Moçambique (em criação), que tem também um grande apoio técnico e moral do CDHMP, desde o ano passado.

Nas últimas duas semanas, organizei o material que vai ser colocado no site a ser desenhado.

Tal como disse no princípio, falar na primeira pessoa é difícil e complexo. Creio ter colocado o relevante, contudo.

REDE LUSÓFONA - OS DIREITOS HUMANOS EM MOÇAMBIQUE HOJE

Trinta anos de independência nacional: uma teia de direitos (des)humanos em Moçambique

Por Josué Bila

Moçambique celebrou em novembro do ano passado o trigésimo aniversario de sua independência nacional. Tecido Social entrevistou dois juristas baseados no país africano para que deixassem as suas opiniões sobre a situação atual dos direitos humanos lá.

O director-adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Eduardo Mondlane de Maputo, Luis Bitone Nahe, opina que o período que vai de 1975 a 1990 reflecte uma época nebulosa do processo de consolidação da independência nacional, pela Constituição da Republicana de Moçambique não ter dado espaço e privilégio especial aos direitos básicos, nomeadamente o direito à vida, à integridade física e psíquica e à propriedade privada. "Este déficit constitucional", argumenta, " justifica-se no facto de que estávamos numa nova fase de reconstrução nacional que se fundou na opção política de orientação socialista, onde prevalecem os direitos colectivos sobre os individuais".

Nahe referiu ainda que o Estado moçambicano, nesse período, era que dava direitos às pessoas e ao mesmo quem os tirava quando assim o quisesse. Para o nosso entrevistado, não havia o pensamento ético-jurídico de que o direito é pessoal e intransmíssivel, pois cuidava-se que os direitos colectivos prevalecessem sobre os individuais.

Segundo a leitura sócio-jurídica do nosso entrevistado, a coletivização de direitos de cidadãos abriu espaço à eliminação física de pessoas singularmente, quando não concordassem com as normas de funcionamento do Estado, implantadas pelo partido único de orientação marxista-leninista. "Veja que", lembra, com muita tristeza, "alguns cidadãos tidos, na altura, de criminosos e reacionários eram mortalmente baleados pelos agentes do Estado em plena praça pública.

Não era possível que Moçambique vivesse o chamado socialismo sem pena de morte, tortura e outras violações de direitos humanos?, questionamo-lo. Respondeu que o socialismo está, intrinsecamente, ligado ao bem estar e nunca colocou como sua tese a eliminação física de pessoas e nem tão pouco sujeitá-las a outros tratamentos degradantes e depreciativos. "Penso que era possível vivermos o chamado socialismo sem eliminar fisicamente as pessoas. Alias, essa é que é a filosofia", enfatizou.

Entretanto, aquele dirigente acadêmico disse que no período 1975-1990 nem tudo era tão espinhoso e negativo, porque "havia direitos econômicos e sociais que eram reconhecidos", nomeadamente a educação, saúde e alimentação, apesar de que o Estado não dispunha de condições financeiras para os satisfazer cabalmente.

Com a aprovação da nova Constituição no ano de 1990, em vigor no país, (uma constituição de estilo ocidental: concorrência de partidos políticos diversos para o Parlamento, eleições de cinco em cinco anos, regime presidencialista, respeito pela sociedade civil; enfim separação dos três poderes do Estado), o nosso interlocutor disse que gozou-se uma "tendência inevitável" de reconhecimento pleno de direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais.

Esta tendência inevitável, segundo ele, forçou o país, pela lógica das circunstancias, a ratificar protocolos e convenções. Luis Nahe sublinhou que Moçambique comparado com os paises africanos, em termos jurídico-constitucionais, deu um "salto gigantesco" e uma "grande reviravolta".

Deplora a agressão física não raras vezes protagonizada pela polícia, pois, para ele, o respeito pelo direito à integridade física de um ser humano não gasta dinheiro para ser cumprido. "Os direitos humanos que requerem fundos para o seu cumprimento são os sociais e econômicos", considera.

A uma pergunta se ha ou não vontade política da parte do poder político moçambicano paramaterializar os direitos humanos, respondeu: "Quero entender que a vontade política expressa-se por discursos e leis concretas. Se se aprova uma lei anti-pena de morte a vontade política esta a expressar-se contra o tirar a vida a alguém", exemplificou.

Congratulou o discurso do actual chefe de Estado, Armando Emílio Guebuza, que o proferiu no dia da sua investitura, em fevereiro de 2005, em cujo conteúdo esta inserido o juramento de defesa e promoção de direitos humanos.
Constituição ofensiva

Por sua vez, o advogado Lázaro dos Santos afirmou que a Constituição da República de Moçambique de 1975 foi "marcadamente ofensiva" em relação aos direitos humanos, o que, segundo ele, "facilitou a violação da dignidade humana".

O nosso entrevistado lamentou o facto de o nosso ordenamento jurídico ter disposto, neste período histórico, de leis pró-fuzilamento. Partilha da opinião do entrevistado supracitado segundo a qual era possível termos vivido o socialismo sem ofensas corporais protagonizados pelas autoridades policiais e militares contra cidadãos indefesos.

Opinando sobre a Constituição de 1990, Dos Santos disse que o Estado moçambicano através dela deixou claro que protege a liberdade, democracia participativa, pelo menos a nível teórico-constitucional. "A nova Constituição revista, por exemplo, consagra os direitos humanos para que estejam na voz do Estado", enfatizou.

Dos Santos revelou ainda que o Estado mocambicano tem-se desdobrado na concretização de quase todos os direitos, apontando para as áreas de educação, saúde, eleições periódicas, construção de estradas, pontes, entre outras.

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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