Defesa dos direitos humanos em Moçambique: Onde está o contributo do jornalista?

Josue Bila
Editor Moçambique

Os avanços em relação à agenda dos Direitos Humanos estão, historicamente, associados à actuação da imprensa... in Mídia e Direitos Humanos (ANDI, SEDH e UNESCO, 2006)

Josué Bila [email protected]

Escrevo este texto-proposta sobre jornalismo defensor dos direitos humanos, entendendo-o como um exercício incondicional de cidadania, praticado, de forma consciente, intelectual e profissional, pelo jornalista ou indústria midíatica, para que os direitos da pessoa humana sejam materializados pelos agentes estatais, locais e internacionais – do direito ao sono profundo, até ao direito a ser votado para ocupar o cargo de secretário-geral da Organização das Nações Unidas, que cada cidadão da sociedade global tem. Desta maneira, nessa actividade social de produção de informações jornalísticas, a indústria midíatica e o jornalista devem ampliar, atraves de notícias, reportagens e artigos, a consciência sobre direitos e deveres do cidadão, na sua sociedade local e global.

Da Independência ao decénio de 90

Moçambique alcançou a Independência Nacional no ano de 1975. Dois anos depois, adoptou o chamado regime de partido único de orientação marxista-leninista, até ao ano de 1990. Entretanto, nesse ano (1990), adoptou, uma Constituição respeitadora dos direitos e liberdades fundamentais do Homem, pluralismo de expressão, organização política democrática e outras características de uma carta nacional dos nossos dias. Assim, esse foi o marco de começo do fim de quase 15 anos da era de excessiva concentração de Poder e abusos cometidos pelo partido único, Frelimo.

Deste modo, Moçambique começou a trilhar por um caminho de reforma de sua paisagem jurídico-legal, que culminou com a aprovação, a título exemplificativo, da lei nº. 18/91 de 1º de Agosto, comumente conhecida por Lei de Imprensa.

Ora, lido o regulamento jurídico em referência, no seu artigo 2º, preconiza que a lei de Imprensa compreende, nomeadamente, a liberdade de expressão, o acesso às fontes de informação, a protecção da independência e do sigilo profissional e o direito de criar jornais e outras publicações. O documento legal, no seu artigo 4º, reforça ainda b) a promoção da democracia e da justiça social; d) a elevação do nível de consciência social, educacional e cultural dos cidadãos; f) a educação dos cidadãos dos seus direitos e deveres; g) a promoção do diálogo entre os poderes públicos e os cidadãos; e h) a promoção do diálogo entre as culturas do mundo.

Dentro do exposto, percebe-se que há um ambiente jurídico-legal criado para o aparecimento de órgãos de comunicação social, o que se saldou no registo de rádios, jornais e estações de televisão privadas.

Nulidade de direitos humanos no jornalismo

Porém, apesar de uma quantidade relativamente enorme de órgãos de informação, a existência, de entre eles, dos especializados em direitos humanos, cidadania, justiça social e temáticas similares a essas, é quase nula. Se se atender ao plasmado na Lei de Imprensa moçambicana, a falta de órgãos com linha editorial especializada sobre direitos humanos, cidadania e justiça social não é dificultada pelo ordenamento jurídico, em si, mas por outros factores que pontuaremos um pouco abaixo.

Por ora, o que podemos afirmar é que a quase inexistência de cobertura dedicada ao jornalismo defensor de direitos humanos, cidadania e justiça social gera, em Moçambique, um ambiente de hibernação social quanto à discussão contínua e sistemática de temas supracitados. Contudo, vale lembrar que, tal como dispõe a contracapa do livro-estudo Mídia e Direitos Humanos, (Agência de Notícias dos Direitos da Infância, Secretaria Especial de Direitos Humanos-Brasil e Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, 2006), os avanços em relação à agenda dos Direitos Humanos estão, historicamente, associados à actuação da Imprensa, responsável não apenas por denunciar as violações a tais direitos, mas também por fortalecer o debate público em torno das formas de garanti-los e promovê-los.

Por assim dizer, qualquer afastamento e negligência dos jornalistas/jornalismo na sua actividade de denunciar as violações aos direitos humanos gera nos actores do Estado e Governo um comportamento e pensamento de que a promoção, a garantia e implementação dos direitos humanos é filantrópico e caridoso ou prestação de favores. O Estado, ao programar e implementar políticas públicas para o melhoramento da vida dos seus cidadãos, não deve fazê-lo como filantropia ou caridade, mas sim como seu legítimo dever e obrigação. Assim, o jornalismo, juntamente com a sociedade civil organizada, deveria ganhar protagonismo social em despertar cada vez mais às populações sobre os seus direitos que devem ser garantidos pelo Estado, cruzando a consciencialização dos deveres daquelas (populações). Infelizmente, isso acontece de forma esquivada e nula.

Ao lado de actuar profissionalmente pela implementação dos direitos humanos pelo Estado, Governo, agências das Nações Unidas, o jornalista deve, igualmente, perceber as influências negativas das políticas neoliberais e da globalização predatória (Richard Falk, 99), que nos desumanizam sem recuos. Nesta compreensão, o jornalista/jornalismo poderá desfazer-se de algum fanatismo tendensioso e manipulador que coloca somente os agentes de autoridade político-governamental local como responsáveis únicos pela violação dos direitos humanos. Na minha compreensão sobre o assunto, Richard Falk e Boaventura de Sousa Santos aconselham, em debate aberto, aos actores estatais, governamentais, internacionais, movimentos sociais locais e globais e, como não deixaria de ser, à indústria da comunicação social para lutarem pela possibilidade de a globalização ser transformada a fim de melhor servir aos interesses dos povos do mundo. De Sousa Santos ensina ainda para a necessidade de se solidificar a solidariedade humana, na luta contra a globalização hegemónica, que delapida as aspirações e os objectivos do bem-estar social das populações, particularmente, dos países do terceiro mundo.

Factores de nulidade de direitos humanos no jornalismo

Os pontos-factores abaixo, não são exaustivos. Coloquei-os para fazer um enquadramento textual, de modo a, eventualmente, justificarem o atraso do debate contínuo e sistemático dos direitos humanos no jornalismo moçambicano, a saber:

relações grupais, comunitárias, familiares e interindividuais, cuja socialização não cultua a dignidade humana e os eixos de liberdade de pensamento e acção;

resquícios históricos, sociais, culturais e políticos da ex-dominação colonial;

sociedade historicamente com pouca possibilitada de reflectir sobre os direitos humanos e o direito internacional;

existência e institucionalização de partido único de orientação marxista-leninista, após a Independência Nacional em 1975, a comandar os destinos do Estado mocambicano;

intelectuais, académicos e actores sociais cooptados;

conformismo sócio-popular exacerbado;

fraqueza institucional dos partidos políticos de Oposição;

existência de iniciativas de um jornalismo especializado em direitos humanos ainda incipente e desarticulada;

pouca paixão e baixo interesse editorial por temas de direitos humanos na sua dimensão interdependente e indivisível;

pouquíssima literatura (bibliografia) sobre direitos humanos nas bibliotecas e nas redacções;

falta de formação especializada em direitos humanos;

fraca cultura de debate de agendas internacionais;

fraquíssimos estímulos institucionais para os interessados;

existência fragilizada de espaços institucionais capazes de responder aos questionamentos jornalísticos sobre direitos humanos;

Respostas às questões de direitos humanos extremamente sensacionalizadas, criminalizadas, policializadas e tribunalizadas, representando um vício sensacionalista

Hierarquização deformada e preconceituosa

Por causa desses factores, a cobertura jornalistica dos direitos humanos, em muitos dos casos, liga-os somente à brutalidade policial, a criminalidade, aos pleitos eleitorais, aos tribunais e a procuradoria. Apenas um tratamento até nalgumas vezes ingênuo, não sistematizado e incompleto dos direitos civis e políticos, como se eles existissem e subsistissem sem os direitos económicos, sociais e culturais. Uma pesquisa em curso (PNUD e Ministério da Justiça local, 2007) sobre a percepção de cidadãos em direitos humanos aponta que uma percentagem acima da metade dos inquiridos por todo o país respondeu que direitos humanos é assunto de agentes anti-sociais. Porquê os inquiridos ligam os direitos humanos aos agentes anti-sociais? Porquê os inquiridos não ligam direitos humanos e malária ou direitos humanos e emprego ou direitos humanos e educação? A simples resposta, passível de ser criticada, é esta: defendemos os direitos humanos como se eles fossem um show.

Nisso, há uma hierarquização deformada e preconceituosa dos direitos humanos, o que resvala em uma escolha prioritariamente sensacionalista, fragmentada e esfarrapada da notícia, da reportagem, do artigo e do editorial. Entre um bairro sem escola e posto de saúde, onde as crianças do mesmo são exploradas no chamado trabalho infantil e na exploração e abuso sexual e um outro (bairro) médio, onde um agente policial espancou um cidadão, verifica-se que grande parte dos órgãos midiáticos cobrirá este último caso, com maior destaque. Ora, o último caso é episódico. O primeiro é sistemático. É de salientar ainda que esse eco noticioso dos civis e políticos, não somente é feito primariamente pela mídia, mas também pelos movimentos sociais de defesa e protecção de direitos humanos moçambicanos, que são mais procurados para ressoar suas vozes em relação a violações de direitos humanos. Nao ha com esta colocacao intencao de afirmar que seja menos importante defender direitos humanos do cidadao espancado.

Pretende-se questionar criticamente a hierarquização noticiosa, baseada na percepção vulgar e sensacionalista a que nos nos habituaram os defensores-clássicos locais de direitos humanos. Contudo, já começa, entre nós, em Moçambique, a despontar uma geração nova de defensores de direitos humanos que não confunde defesa de interesses dos direitos humanos como se fossem um espectáculo e filme polícia-ladrão ou polícia-vítima da polícia

Ainda no plano anterior, em 2003, um agente da Polícia moçambicana atinge mortalmente um membro do grupo dos ex-trabalhadores da Alemanha do leste, em plena manifestação, exigindo ao Estado o pagamento de suas indemnizações, quando vendeu a sua força de trabalho na década de 80 naquele país europeu.

Em 2003, os noticiários sobre o assunto destacaram o facto (morte de quem, por quem e causas, ou seja, resposta às seis clássicas perguntas do jornalismo), sem contudo contorná-lo, colocando, assim, as implicações sociais e economicas e financeiras da morte de um pai de família, por exemplo. Soube-se de várias fontes que a vítima mortal do agente do Estado moçambicano acabava de deixar sua viúva e dois filhos. Num caso como este, seria necessário que nos dias posteriores, os jornais trouxessem a vida da família da vítima pós-morte. Aqui começariam reportagens, notícias e artigos que revelassem que o Estado, através do seu agente, não só estilhaçou e violou por completo o direito à vida do ex-trabalhador da Alemanha, mas também informações jornalísticas que colocassem a nu a obrigação de o Estado indemnizar a esposa e os dois filhos.

No caso dos filhos, o Estado passaria a ter obrigação de suportar as despesas das crianças, sem esquecer outros suportes canalizados à esposa em nome da família. Aqui, estaria o debate de direitos humanos, onde os direitos económicos, sociais e culturais (obrigações do Estado para com a família e crianças, pois isso é constitucional) também entrariam, interconectando-se, deste modo, aos direitos civis e políticos. Vale frisar, por outro lado, que, independentemente de o agente do Estado ter baleado mortalmente aquele cidadão ou não, o Estado tem deveres e obrigações que os deve cumprir em cada pessoa em seu território nacional, mesmo sem que tenha antes prejudicado os cidadãos por qualquer que seja o motivo.

Papel do jornalismo

Hoje, pelo que se depreende, nenhuma sociedade ou grupo social devem negligenciar os direitos humanos - na sua dimensão universal, indivisível e interdependente - porque respondem, no mínimo, aos valores pelos quais a humanidade vem lutando para alcançá-los. E, na luta para/pela promoção e defesa de direitos humanos são várias as estratégias a serem usadas. Uma delas é, certamente, o jornalismo.

Ora, em Moçambique, apesar da perfeição constitucional, perfilam, tal como colocamos acima, violações sistemáticas e episódicas aos direitos humanos cometidas pelo Estado, através da Polícia, Tribunais, Procuradoria, Parlamento e sectores sociais (do Estado). Enumeram-se a tortura física e psíquica de polícias a cidadãos; a prisão preventiva extemporânea; a corrupção nos tribunais; a procuradoria inactiva, principalmente quando são crimes cometidos por cidadãos ligados ao Poder Político instituído há 32 anos; a lentidão de tribunais para dar desfecho a casos cíveis e criminais; as cadeias superlotadas, a má nutrição e a falta de saneamento básico.

De igual forma, os sectores sociais do Estado violam o direito à educação, quando milhares de crianças não têm vagas na escola, logo no 1º grau. Também a unidade de saúde quando consegue piorar a doença dos utentes. Parece estranho: o doente que chega à porta do hospital às 6 da manhã e só é atendido cinco horas depois,mesmo gemendo; e ao chegar à farmácia o medicamento é caro ou não existe; quando o doente se encontra em estado grave, a unidade de saúde (Estado) não evacua o doente, acabando, nalgumas vezes, por morrer, por falta de pronto socorro. O Estado viola direitos humanos dos cidadãos que, para localizarem o posto de saúde mais próximo, percorrem 30 ou 50 quilómetros de distância. O Estado viola direitos humanos quando não garante segurança pública.

O Estado, mais do que os municípios, viola o direito à habitação e ao emprego condignos, quando não traça políticas públicas claras para a materializacao desses direitos. Para melhor compreensão à violação episódica e sistemática dos direitos humanos dos moçambicanos, basta ler a Constituição da República de Moçambique (e outros instrumentos internacionais de defesa dos direitos humanos) e fazer-se uma observação ao redor, observar-se-á gravíssimas violações de seus legítimos direitos.

Os abusos supracitados continuam sendo cometidos e dificilmente são reportados na mídia moçambicana com rigorosidade, prudência e consciência jornalísticas sobre a defesa dos direitos humanos.

Para se ultrapassar essa deficiência no jornalismo, propõe-se a criação de um jornalismo, cujo objectivo seja defender e promover os direitos humanos, através de notícias e reportagens investigativas e textos opinativos e editoriais providos de conteúdos racionais e defensores daqueles valores. Ao lado disso, as escolas locais de formação em jornalismo devem repensar nos seus curriculas, por forma a programar a inclusão da cadeira de direitos humanos, proporcionando debates progressistas.

A investigação jornalística, em referência, pautará não só por fazer pesquisa no palco da violação do Direito X ou Y, mas também por saber, de forma sistemática e profunda, denunciar os articulados dos instrumentos internacionais de direitos humanos e do direito interno violados. Por exemplo: tanto o direito internacional, quanto a lei interna moçambicana consagram o direito à saúde.

Porém, o Estado moçambicano furta-se de ratificar o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, bem como estender, de forma flexível, a instalação de unidades sanitárias em áreas mais próximas da população. Aqui, encontramos, também e extensivamente, a violação do preconizado na Constituição sobre a matéria, para além da visível fraqueza de vontade política quanto à sua implementação. Não descarto dos factores externos que tem uma influência negativa na implementação interna dos direitos humanos: políticas neoliberais e globalização predatória, como acima pontuei.

É dentro dos parâmetros supracitados, e de outros não expostos, que o jornalismo proposto deverá trilhar rumo à defesa e promoção dos Direitos Humanos, na sua amplitude. Aliás, não existe jornalismo sem direitos humanos. Nem direitos humanos sem jornalismo. O fracasso de um é, por extensão, o fracasso do outro. E porque fazemos parte dos países de democracia de baixa intensidade (Boaventura de Sousa Santos, 2000), sofremos, interpreta-se, este fardo pesado: o fracasso dos direitos humanos e do jornalismo.

Por causa disso, e porque o nosso desenvolvimento depende da garantia e protecção dos direitos humanos, é mais do que exigível sairmos desse fracasso doentio e crónico. Assim, defenderemos e colocaremos os direitos humanos na pauta, cobertura e informação jornalísticas, na esperança de que todos os cidadãos possam conhecer e usufruir dos seus legítimos direitos e cumprir os seus deveres, enquanto pessoas humanas e sociais. Em paralelo a isso, o debatido público sobre os direitos humanos, a inclusão e a justiça social será garantido e fortalecido. Por isso, pela inclusão e debate sistemático dos direitos humanos no jornalismo, a luta continua.

Ler original em

http://www.dhnet.org.br/interagir/noticias_mocambique/vernoticia.php?id=132

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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